sábado, 22 de dezembro de 2018

Contrastes



Ontem, 21, nos “Horizontes da Memória” ouvi o extraordinário programa de José Hermano Saraiva, intitulado “A Memória continua”, de 16/Nov/1997, comemorativo do 5º centenário da viagem de Vasco da Gama a Calicut, com mapas creio que da (Real) Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875, assinalando as várias rotas marítimas portuguesas, que abriram o espaço na costa Atlântica, de África e América e do mundo Índico, que ultrapassou a “Taprobana” e seguiu na costa asiática, passando a Nova Guiné… Ao seu jeito de artista com o dom da palavra, tantas vezes sentenciosa e colorida de referências, não deixou de citar, com entusiasmo épico, assinalando paralelamente no portulano, a estrofe 14 do Canto 7º d’ Os Lusíadas:

… não faltarão cristãos atrevimentos
nesta pequena Casa Lusitana:
de África tem marítimos assentos;
é na Ásia mais que todas soberana;
na quarta parte nova os campos ara;
e, se mais Mundo houvera, lá chegara.

Mas antes, referira Fernando Pessoa, ao assinalar o feito de Diogo Cão, da passagem do Cabo Bojador, por ordem do Infante D. Henrique, cujo padrão nos levou a ler com ele: “Eu, Diogo Cão…”, citando, a seguir, Pessoa que não resisto a transcrever na íntegra:

PADRÃO  (MENSAGEM)
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

Foi um programa desassombrado e vasto de referência histórica, num sentido de mensagem de glórias que o 25 de Abril veio desprezar. E a leitura da crónica de João Miguel Tavares e seus comentadores, sobre “heróis” do pós Abril, centrados num José Sócrates, mas com tantos satélites girando despudoradamente no cadáver de uma nação que foi valorosa, deixa um travo amargo de desesperança e receio pelo futuro. Ainda bem que José Hermano Saraiva já não assiste. Ainda bem que vão existindo JMTs a tentar corrigir, pela palavra, e suponho que pela acção.

OPINIÃO
A horrível pergunta de Vítor Gonçalves
Quem nunca teve um primo falido, “muito querido” e “muito próximo”, capaz de emprestar uma casa nova de meio milhão com vista para o mar que atire a primeira pedra.
PÚBLICO, 4 de Dezembro de 2018
Ainda se lembram da horrível pergunta de Vítor Gonçalves? Foi feita no final de uma entrevista a José Sócrates na RTP, em 13 de Outubro de 2017: “Hoje, como é que o senhor vive, como é que o senhor paga as suas despesas?”
José Sócrates, claro está, respondeu com a elegância habitual: “Isso é uma coisa inacreditável. Desculpe lá, mas o que é que o senhor tem a ver com isso? Isso é uma pergunta de um jornalista?” Perante a agressividade da resposta, Vítor Gonçalves engoliu em seco e por um breve momento ficou com cara de miúdo apanhado com a mão na caixa das bolachas. Não tinha razões para isso – aquela era uma pergunta lógica e fundamental, como agora se está a ver.
Na altura, Sócrates avançou com uma (não) explicação. “Eu vivo de uma única coisa. Tive já algumas ofertas, recusei tudo, porque estou nesta situação, não quero prejudicar ninguém. Vivo da minha pensão de ex-deputado. É o meu único rendimento.” Após recuperar o fôlego, Vítor Gonçalves ainda insistiu: “Não vive com empréstimos do seu amigo Carlos Santos Silva?” Sócrates respondeu: “Essa pergunta é uma afronta, essa pergunta é indigna de um jornalista, é uma pergunta típica do Correio da Manhã”. E nada mais acrescentou.
Saltemos para 30 de Novembro de 2018. Correio da Manhã titula em manchete: “Primo compra casa para Sócrates”. Se um amigo já lhe tinha oferecido desinteressadamente uma casa em Paris, agora um primo oferece-lhe desinteressadamente uma casa na Ericeira.
A história é esta: o ex-primeiro-ministro abandonou a casa alugada do Parque das Nações para se instalar numa vivenda de luxo de 300 metros quadrados com vista para o mar, propriedade do primo José Paulo Pinto de Sousa. O mesmo que a acusação do processo Marquês considera ter sido o seu testa-de-ferro até o seu nome passar a circular na imprensa em consequência do caso Freeport. E o mesmo, já agora, que no âmbito do processo Marquês garantiu estar falido.
A equipa da SIC que foi à Ericeira ouvir as explicações de Sócrates levou com a ementa do costume: indignação de entrada; péssima explicação como prato principal; e mais indignação à sobremesa. Entrada:Não sei onde é que o senhor jornalista vai buscar a ideia de que tem o direito de fazer perguntas e incomodar as pessoas apenas por causa de actos banais da sua vida privada. Isso diz respeito a mim e ao meu primo e não diz respeito a mais ninguém.”
Prato principal:Esse meu primo, que é uma pessoa muito querida e muito próxima, tinha uma casa que lhe foi dada como dação em pagamento e estava fechada e eu decidi vir para aqui.” Sobremesa:Há dias em que sentimos pelo jornalismo português uma certa repugnância, porque aquilo que estão a fazer tem apenas a ver com a devassa da vida privada, com o objectivo do espectáculo mediático.”
Curiosamente, a casa que o primo “tinha” e que “estava fechada”, foi, afinal, entregue por um milionário angolano a 16 de Outubro de 2018, poucos dias antes de Sócrates ir para lá viver. Quem nunca teve um primo falido, “muito querido” e “muito próximo”, capaz de emprestar uma casa nova de meio milhão com vista para o mar que atire a primeira pedra.
Hoje em dia, Portugal inteiro lê isto e já se ri. Mas ainda há um ano, mesmo depois de deduzida a acusação do processo Marquês, muito boa gente considerou a pergunta de Vítor Gonçalves inaceitável ou, pelo menos, de mau gosto. E, há dez anos, as explicações de Sócrates já eram tão boas quanto esta – e milhões engoliram-nas sem pestanejar.

Comentários:
Liberal: Como sempre acontecia com Pinto de Sousa, há partes daquilo que ele diz em que tem razão, que estão certas, que são verdade. O que é intolerável é como ele urde com essas afirmações num discurso ilógico, que forma uma nuvem de poeira que atira com toda a desfaçatez para cima dos olhos dos interlocutores, ou do povo inteiro quando foi caso disso. No caso vertente, ele tem razão em abstracto acerca de as perguntas que lhe fizeram serem impróprias e abusivas, mas se puxasse pela memória iria verificar que foi ele mesmo que se pôs na posição para que essas perguntas fossem feitas.
honorato.fernandes, 05.12.2018: E, já agora, falem do Berardo, mais de 900 milhões que foram pró brejo, agora vamos negociar a divida de 850 milhões. Mas já com a ressalva que os bancos têm de perdoar parte desta!!! Eu e muitos outros Portugueses temos o direito de perguntar por que o estado continua a injectar milhões nos bancos. É o dinheiro de todos nós! O Berardo se tirasse dividendos destes empréstimos que contraiu, também o ia dividir com os Portugueses que agora têm de suportar a sua dívida?? E mais ainda, se eu deixar de pagar ao banco os meus minúsculos empréstimos, penhoram-me tudo o que seja penhorável, com uma rapidez tremenda. Com estes casos ñ vejo penhoras, só vejo recursos, interposições e outras lenga-lengas judiciais para tapar as vistas ao comum cidadão. Gostaria que você, JMT, falasse sobre isto, também. L
Liberal: A famosa dívida Berardo estava garantida por activos reais, incluindo a famosa colecção de arte. Se for assim, e foi isso que foi sempre divulgado, não foi nem vai nada para o "brejo", embora o senhor comendador possa mudar de "estatuto" económico! Acontece a todos os que pedem dinheiro emprestado demais, podem sair de tanga. Até acontece a países inteiros.
honorato fernandes: 11.12.2018: Sr. Liberal, obrigado pelo comentário mas eu também sei e foi público que Joe Berardo deu garantias reais nomeadamente às obras de arte que possui, mas há um pormenor que também é conhecido. É que essas garantias não cobrem o total da dívida e foi por isso que fiz o comentário que leu. Em Portugal é fácil para algumas pessoas fazerem este tipo de transacções e levarem bancos à falência como já estamos costumados. Só para concluir: ñ retiro uma virgula do meu primeiro comentário.
  Seixal 04.12.2018: Obviamente que já existe algo de obsessivo entre o jmt e o sócrates, mas tb concordo que foi grave demais para que seja esquecido. Será natural que Sócrates, enquanto PM tenha beneficiado muitos amigos e conhecidos que lhe estarão gratos, mas estes "amigos" que dão casas, dinheiro e pagam viagens são indícios de que algo não é normal..
ALRB, 05.12.2018, às armas, às armas, pela Pátria lutar, contra os LADRÕES marchar, marchar:  Aquilo que Manuel chama de obsessivo para com José Sócrates existe entre muita gente que não gosta de andar a pagar uma bancarrota mesclada com corrupção toleradas por um povão que nem percebe o que paga nem porque paga nem como paga. E o que se paga ou não paga tem implicações na saúde, na educação, na segurança, na própria demografia, etc..
Rui Esteves, 04.12.2018: Tem o JMT toda a razão. E eu iria ainda mais longe, e colocaria os jornalistas a perguntar a alguns ex-governantes daqueles envolvidos na burla do BPN, de que vivem eles agora. É que consta que eles nem património têm. Isto só para esclarecer as coisas. E também para equilibrar os pratos da balança. Pratos tão desequilibrados quando comparamos 23 M do José Sócrates com os milhares de milhões sumidos no BPN. 
ALRB, às armas, às armas, pela Pátria lutar, contra os LADRÕES marchar, marchar 05.12.2018: Quanto à primeira parte do seu comentário estamos de acordo. Já quanto aos pratos da balança, corrijo: o Sócrates no prato dele da balança não têm só os 23 milhões do gamanço, tem uma bancarrota de um país, além da CIMPOR, da CGD, etc..
MARIANA OLIVEIRA: Na semana em que acaba o último prazo dado pela procuradora-geral da República para a investigação a Sócrates terminar, mais de três anos após ter começado, o PÚBLICO recorda as figuras constituídas arguidas no processo, sintetiza as ligações entre elas e os crimes em causa para cada uma. E deixa-lhe ainda as respostas a questões centrais no processo que permitem perceber como tudo começou neste caso e como poderá vir a acabar.

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