domingo, 30 de dezembro de 2018

Registos da nossa cultura de opinião



Mais directo e assertivo o de João Miguel Tavares, como sempre, de uma exaltação argumentativa  provocatória, própria da sua juventude irreverente, embora disciplinada por um bom senso que os não simpatizantes da outra facção política iracundamente hostilizam. Mais elegante, no seu pensamento literário, o de Maria João Avillez, justo e sedutor. Ambos corajosos e indiferentes às divergências opinativas dos que se regem por outros “ideais” favorecedores da anarquia insciente e lorpa: Ouvi esta noite Catarina Martins do Bloco de Esquerda, boa representante dos tais, despejando medidas de eficiência e bondade, para a promoção da sua estabilidade no comando dos nossos destinos, “big sister” do nosso futuro próximo, de rebanho amansado, por um previsível despotismo provinciano ardiloso, não despiciendo, en tout cas.
I - OPINIÃO   Uma legislatura longa demais para António Costa
António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela.
JOÃO MIGUEL TAVARES     -     PÚBLICO, 29 de Dezembro de 2018
António Costa conseguiu um milagre no qual só mesmo ele acreditaria na noite de 4 de Outubro de 2015, após a sua inesperada derrota eleitoral: completar uma legislatura como primeiro-ministro, com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Esse facto, que muitas vezes é despachado (injustamente) como “habilidade política”, merece o meu respeito e a minha admiração. Contudo, é muito possível que o milagre de 2015 venha agora a revelar-se a maldição de 2019, se as greves continuarem a este ritmo e a degradação dos serviços públicos acelerar. A aprovação do último Orçamento do Estado, celebrada como mais uma vitória de Costa, pode muito bem ter sido menos uma vitória de Costa e mais uma vitória de Pirro, com o primeiro-ministro a acabar refém do seu próprio sucesso.
Se assim for, e se 2019 for o ano em que a esquerda comunista e bloquista se vai vingar de todos os sapos que engoliu durante a legislatura, colocando o governo que diligentemente apoiou a fritar em lume brando até Outubro, é caso para dizer: é muito bem feito, senhor primeiro-ministro. Porque se eu admiro a arte política que António Costa revelou nos últimos anos, e se continuo a considerar – como sempre considerei – que ele é o melhor quadro que o PS tem para oferecer ao país, há uma coisa que não lhe deve ser perdoada: ter assinado um pacto de governo com base numa mentira escandalosa, que fica para a História como “o virar da página da austeridade”.
Quando fazemos o balanço destes três anos, houve muitas medidas económicas que o governo tomou e com as quais não concordo, mas só uma delas posso classificar como verdadeiramente obscena – a redução do horário de trabalho de 40 para 35 horas na função pública. Essa, sim, é uma medida imperdoável. Mas, fora isso, não houve aumentos de 2,9% para a função pública em vésperas de eleições, como nos saudosos tempos de José Sócrates, nem delírios como a Parque Escolar ou o TGV. Ou seja, de um modo geral, a política adoptada por Costa e Centeno está dentro de padrões de responsabilidade financeira aceitáveis, ao contrário do que era prática comum no Partido Socialista.
Aquilo que não está dentro dos padrões aceitáveis é a formação de uma narrativa de enganos em torno do legado do governo anterior, e a demonização do trabalho de Passos Coelho, que na cabeça de muita gente perdura até hoje. Essa narrativa não é apenas injusta – ela conduz, naturalmente, ao relaxamento da sociedade portuguesa, ao regresso a uma certa inconsciência no endividamento e à adopção de um discurso de facilidades que não existem. É verdade que as acções de Costa e Centeno foram sempre mais responsáveis do que as palavras que saíam das suas bocas – só que, a partir de certa altura, o mal estava feito. Se a austeridade prejudicou tanto o país, se ela não era necessária, porque é que as pessoas não podem regressar à vida de antigamente?
Quem por palavras mata, por palavras morre. António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela. Agora, na sua mensagem de Natal, o “virar a página de austeridade” deu lugar aovirar a página dos anos mais difíceis”. Mas já vem tarde. Avizinham-se tempos duros para o governo, e é muito possível que esta legislatura tenha dez meses a mais do que recomendaria a boa saúde política de António Costa.  
COMENTÁRIOS:
 Há 31 minutos: Concordo com o JMT, porque até ao virar do "calendário" não vai haver "Alternativa" nenhuma, porque a Multinacional COSTA/Centeno e Cª., vai a todo o "vapor" para o terceiro ano de Austeridade, com apoio do BE, e PC que "maravilhados" com a Diminuição do Défice, estão convictos que 2019 vai ser o "Ano" da classe Trabalhadora, que tanto tem sofrido com a "Austeridade".
Nuno Silva: Que os deuses nos livrem do PS ter mais do que 33% de votos, senão o PS voltará novamente a roubar e a bater nos mais pobres. E quanto mais o governo aguentar as reivindicações dos quadros médios e superiores do estado (professores, médicos, enfermeiros, juízes, etc), que estão um pouco, não muito, acima do que o povo pode pagar, mais votos terá nas eleições (é o efeito 'Passos austero', que dá votos do centro-direita e trabalhadores do privado). Mas se não meter mais pessoal para aliviar a carga de trabalho daqueles quadros, que também foram martirizados pelo Coelho, perde votos à esquerda a juntar às leis laborais miseráveis e salário mínimo de miséria, apesar de condições económicas favoráveis, apesar da insistência da CDU e Bloco, diminuindo assim mais a desigualdade e pobreza.
Rebelde, Aveiro : E quem paga as reduções de horário? O cobertor não estica e governar implica tomar decisões. Quando dá para uma coisa tem que tirar a outra. Onde tira? Vivem muito mal os médicos e enfermeiros da nossa terra que não possam trabalhar 40 horas? (> Sandra), acessório é contratar pessoal a rodos ou pagar horas extraordinárias para poder fazer face a 35 horas que ninguém percebe. Ah, valoriza a educação, e os desempregados não? E as estradas, podem estar todas esburacadas? e o apoio à deficiência e aos idosos não valoriza? e a habitação valoriza? e a polícia e os tribunais acha importantes ou não? e os presos? Pense. O Costa queria ganhar as eleições a todo o custo e para isso tinha que mentir. Como sempre acontece em Portugal. Lembram-se do choque fiscal do Barroso? O que fez? Aumentou impostos em vez de os diminuir como prometeu. A verdade é que a nossa produtividade só dá para estes remedeios de orçamento.
II - NATAL
Camélias e Haydn. O Natal /premium
MARIA JOÃO AVILLEZ    -    OBSERVADOR, 26/12/2018
Nesses lugares menos poluídos pela azáfama, onde se dão as Boas Festas em nome próprio, andando a pé pelas ruas, numa troca de votos festiva porque há tanto de vagar quanto de sinceridade para isso.
1. E de súbito, por entre as fiéis neblinas matinais que sempre acolhem as manhãs aqui no oeste, abro a janela para o jardim e eis diante dos meus olhos surpresos o primeiro presente de Natal: camélias, muitas, rosa e vermelho, uma profusão delas, despontando no verde das cameleiras. Camélias, Santo Deus, flor entre as flores (de igual talvez só a rosa), deve ter sido o frio, há duas semanas não havia uma que se visse e agora… são um mar embalado pelas neblinas.
2. A verdade é que o Natal já começara há uns dias. Foi em Viena e estava muito frio quando numa manhã de Dezembro, passei a porta da Igreja dos Jesuítas, faltava ainda um bom bocado para a missa mas eu sabia que, lá dentro, já estariam a ensaiar a Missa de Lord Nelson (Haydn). Desde que um dos meus filhos lá vive fui-me apropriando da cidade, criando hábitos, afeiçoando-me a rotinas. A maior é sem dúvida o encontro semanal nesta igreja, situada muito perto do centro, severa por fora, excessiva e excessivamente barroca, por dentro. É de há muito costume do seu pároco fazer acompanhar a missa do domingo por uma orquestra e coro que, a cada vez, toca e canta uma missa de um compositor diferente. Sim, é Viena, mas mesmo assim. Não é fácil descrever o ambiente, o privilégio daquela oferta, a espiritualidade conferida à celebração pelo impacto de uma missa cantada envolvendo a missa celebrada, ambas desenrolando-se recolhidamente, em magnífica acústica, numa quase prodigiosa simbiose. Descobri por puro acaso esta espécie de dádiva – e que outro nome lhe dar? — quando, andando a pé pelo centro histórico, ouvi música. Entrei. Era o som absolutamente arrebatador da Missa da Coroação de Mozart, cantada nos Jesuítas e foi assim que descobri esta igreja e este seu costume. Nunca deixei de voltar. Este ano, uma manhã gelada do feriado santo do dia 8 de Dezembro, cantava-se Haydn, cheguei muito cedo, ainda eles ensaiavam numa quase penumbra. Sentada solitariamente num banco frio, era como se aquela orquestra e aquele coro tocassem só para mim o anúncio do Natal. No dia seguinte, domingo, tocou-se a Missa Alemã de Schubert. O Natal tinha começado. E eu nunca desistirei dele.
3. O Natal fora de portas tem a distingui-lo uma espécie de íntima espessura que pouco se encontra, e talvez já nem sequer exista nos centros urbanos ou nas grandes metrópoles, onde a sua simbologia cristã é cada vez mais marginal, senão objecto de caricatura ou desprezo. Acredito porém que as “diferenças” entre distintas vivências e versões natalícios diga ainda alguma coisa a alguém para quem o Natal não se esgote exclusivamente na mesa ou no centro de comercial.
Onde estou agora há desde logo o silêncio, tão diferente quando se está nas lonjuras do campo, dos arredores, deste ou daquele Portugal mais ou menos “profundo”. Nesses lugares menos poluídos pela azáfama, onde se dão as Boas Festas em nome próprio, andando a pé pelas ruas, numa troca de votos festiva porque há tanto de vagar quanto de sinceridade para isso; onde se vai ao jardim ou à terra buscar azevinho, musgo e bagas vermelhas com que enfeitar casas, presépios e árvores de Natal; onde o tempo tem tempo e não é mais essa lâmina fina a cortar-nos a vida; onde as coisas adquirem importância porque querem de facto significar alguma coisa, dos livros que se lêem à música que se ouve, aos gestos que se têm. Sobretudo ao como se pensa sobre o que inquieta, interpela e dói, e nestes dias dói mais. Quanto pesa a mochila do lutos e da perda, a quantas vai a nossa própria contabilidade das coisas da vida? Dizer “amanhã” que sentido tem? Não que a distância silenciosa do tropel citadino recupere o irrecuperável ou sequer amacie a inquietação. Mas por breves, concretos instantes, troca-se a ameaçadora incerteza dos dias pela convicção praticada de duas ou três certezas. Haverá mais certo, quero eu dizer, que a promessa do Natal e do seu anúncio? Que a luz e o espírito desta quadra tão portadores de promessas? Que a família, reunida e animada pelos muitos que vêm de longe, sabendo que é do seu cais que partimos e a ele que sempre voltamos? Haverá enfim mais certo do que a vontade de querer guardar a sete chaves tudo isto? Puerilidade? Nenhuma. Nostalgia? Imensa. Verdade? Toda. Simplismo? Ainda bem. Não costumam as certezas ser simplicíssimas quando são fortes como âncoras?
4. Falei acima de música, coros e orquestras e lembrei-me do Concerto de Natal de Mafra, um lugar onde vou e volto, sempre com o gosto intacto. Desta vez eram as vozes do Coro Lisboa Cantat dirigido por Jorge Alves, atapetando musicalmente os nossos primeiros passos em direcção ao Natal. E que bem deram a ouvir Haendel, Briten, Vasco Pearce de Azevedo, João Vaz e ouviu-se também o órgão do Evangelho, onde se sentou o próprio João Vaz e o órgão da Epístola, tocado por Sérgio Silva. Já aqui falei várias vezes de Mafra e da excelente direcção que lhe imprime Mário Pereira, director do Palácio. Este conjunto raríssimo, jóia da coroa do património português (os seus seis órgãos são os únicos no mundo construídos para tocarem em conjunto) vale todos os desvios mas por vezes tenho a sensação que os lisboetas valsam entre a preguiça e talvez a ignorância. Não sabem o que perdem. Mas quando descobrirem a moldura da Basílica e o som dos seus órgãos tocando a quatro, a dois ou a seis (um must absolutíssimo) talvez se lembrem desta pobre escriba que lhes deseja um Santo Natal.
5. Boas Festas! E um Dezanove que não nos envergonhe muito.
COMENTÁRIOS
victor guerra: Gente fina é outra missa
Filipe Nunes: Um artigo com a sensibilidade adequada ao NATAL. Para combater - sim, de uma luta se trata quando intelectualóides boçais tomam conta dos artigos de opinião - esses esquerdistas bacocos que só sabem vir com diatribes sobre o NATAL. E são tão toscos e ignorantes nos seus escritos. Por isso, é uma lufada de ar fresco ler um artigo com classe e com uma perspectiva enlevada com a realidade do NATAL. Porque o NATAL é isso: Encanto. Puro e sublime encanto.


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