Que ficou, resultado de uma
crença, provocando expansões de várias dimensões - filosóficas, musicais,
literárias… Não vale a pena sermos resmungões, ou virtuosos, mostrando os
contrastes de luz e sombra, de felicidade e desgraça, vivamos o riso dos
afectos e dos desperdícios, sintamos a magia de uma comunhão que pode ou não
levar-nos a reflectir.
Mas leiamos sempre o Natal
de Fernando Pessoa, síntese das ironias e dos paradoxos de uma
alma tão genialmente meditativa e individualista como a sua. Servirá de
corolário, como contraste, ao conto de André Lamas Leite, de reflexão mais concordante
com as tendências actuais da solidariedade humana.
Borrachas de Natal
ANDRÉ LAMAS LEITE
PÚBLICO, 24/12/18
Temos todos muito medo de parar – e o
consumismo ajuda a não afrouxar a marcha. Mas Natal é a radicalidade do ser e
reconhecer-se como humano.
24 de Dezembro de 2018
Terá sido em 1987 que vivi o
que me pareceu, na altura, o Natal mais triste de uma vida que, até ali,
contava apenas 10 anos. Por motivos profissionais, os meus pais não tinham
dinheiro para comprar presentes para os filhos. O meu irmão tinha 4 anos e, por
isso, não tinha ainda discernimento para entender. Mas eu tinha. E por isso, a
minha mãe – são sempre as mães… – explicara-me, alguns dias antes, o motivo
pelo qual não teria nada da parte deles debaixo da árvore. Armei-me em
homenzinho e ripostei que não havia problema nenhum – sabia bem que montar a
barbearia significou endividamento que era mesmo para pagar e não para gerir,
como hoje sei suceder com as dívidas dos Estados. Naquela noite, porém, a
tristeza tomou conta de mim, recordando-me do esforço que fazia para que tal
não transparecesse. Ainda havia avós e eu já não era nenhuma criança! Contudo,
havia qualquer coisa debaixo do que na altura era um pinheiro natural
provavelmente cortado de forma desordenada de uma mata próxima de casa. Um
conjunto de borrachas para apagar o carvão dos lápis, em forma de casas e de
frutos. Esbocei um sorriso amarelo, por saber que, para os meus pais, mesmo
aquele presente teria sido custoso, mas fiquei ainda mais triste; preferia não ter
recebido nada.
Mais de 30 anos volvidos,
percebo que este episódio trivial e que em tantas e tantas famílias se
reproduzia na altura e hoje, me fez entender verdadeiramente o que é o Natal. Antes
de mais, justifica talvez que nunca tenha gostado muito de receber presentes
nesta época. Sabem-me melhor os inesperados, aqueles em que olhamos para algo e
achamos que têm a cara de alguém. Mas, sobretudo, fez-me ir compreendendo que as
habituais críticas ao consumismo excessivo, apesar de verdadeiras,
podem não afectar o que na essência é Natal.
Estou seguro de que hoje e amanhã aquelas e aqueles que se recordarão
que para os cristãos se celebra o nascimento de Cristo, Salvador do mundo,
correspondem a uma minoria neste Portugal de 2018. E, paradoxalmente, isso não
está mal. Explico-me: se tivermos a sorte de ter connosco as pessoas que
amamos, então elas são o Deus Menino em carne e osso; por cada gesto de afecto,
de concórdia entre famílias desavindas; de sinceras felicitações natalícias, aí
estará o cerne da mensagem cristã Daquele que veio para trazer a Paz.
É claro que existe muita hipocrisia em vários desejos de “Boas Festas”,
em gente que “nos mete no coração” quando, no resto do ano, nos mete em
infernos terrenos. Uma espécie de tréguas numa vida que,
amiúde, se transformou numa guerra sem quartel, por um lugar, uma prebenda,
mais algum dinheiro ao fim do mês ou pela crença militante de alguns de que
viemos ao mundo para lixar a vida de tantos outros.
Natal é hoje, fundamentalmente, um convite à reflexão
ética, a um certo exame de consciência sem pretensões religiosas, a
um novo começo – não é por acaso que é
um Menino que nasce, com todo um conjunto de possibilidades à sua frente. Assim
como também não é ao calhas que daí a uma semana acaba um ano e começa outro,
com um mês que vai buscar ao deus Janus o seu nome – duas cabeças, uma voltada
para o passado e outra contemplando o futuro. Há espaço e tempo para
modificarmos o que não nos faz felizes, sem moralismos e muito menos pretensas
superioridades morais ou éticas – ninguém as tem.
Temos todos muito medo de parar
– e o consumismo ajuda a não afrouxar a marcha –, pois quando deixamos que o
barulho externo se detenha e ouvimos a dimensão interna, tantas vezes o sofrimento
toma conta de nós, como condição objectiva para a mudança (dado que um
sofrimento sem sentido útil para o futuro é uma indesejável incapacidade humana
que havemos de vencer), e opera verdadeiras resoluções muito mais cavadas que
aquelas pretensas intenções de ano novo.
Agora, quando escrevo estas
palavras, já próximo da noite sempre especial da consoada, recordo-me de todas
e todos quantos têm hoje o espaço de tempo mais triste do ano civil, por
estarem sós, presos, doentes, desanimados da alma ou do espírito. Porque acredito,
peço as bênçãos do Deus Menino para todos eles – conhecem sorriso mais belo e
que desarma a maior dor que possamos sentir que o de uma criança? Mesmo não acreditando, se algo de bom nos legou o
pensamento cristão do Natal, foi o apelo a uma ética de
responsabilidade que a todas e a todos convoca, para a qual não é necessário
ter fé. E, para mim, não há diferença entre o gesto concreto de quem estende a
mão ao que precisa e que venha de um “crente” ou de um “não-crente”. Aliás, não
gosto mesmo nada desta distinção. Prefiro dizer “gesto humano”. É mesmo disso
que se trata – o Natal é a radicalidade do ser e reconhecer-se como humano.
As borrachas que nos idos de 80
os meus pais me ofereceram encerram agora um mandamento para mim – que seja
capaz de, à minha minúscula dimensão, ajudar a apagar algum do sofrimento que
me rodeia. Afinal, percebo, hoje, que esta foi a melhor prenda que alguma vez
podia ter recebido pelo Natal!
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
Fernando Pessoa
Natal... Na
província neva.
Natal...
Na província neva.
Nos
lares aconchegados,
Um
sentimento conserva
Os
sentimentos passados.
Coração
oposto ao mundo,
Como
a família é verdade!
Meu
pensamento é profundo,
Estou
só e sonho saudade.
E
como é branca de graça
A
paisagem que não sei,
Vista
de trás da vidraça
Do
lar que nunca terei!
Nenhum comentário:
Postar um comentário