sábado, 29 de dezembro de 2018

Fantasias de antigamente transpostas ao presente


Duas histórias contadas por Salles da Fonseca, mais ou menos epigramáticas, ou de leitura amena.
Quanto à primeira – de amor, generosamente provado - também nós, portugueses, tivemos um caso de oferta de cidades, não somos menos do que os americanos. É certo que foi no dote da princesa Catarina de Bragança, quando casou com o rei Carlos II de Inglaterra, não, pois, como preito à beleza feminina, mas como negócio matrimonial: demos Tânger ao Rei, de mistura com muito chá. Hoje, essas histórias de bem querença limitam-se, por cá, a empréstimos de palacetes à beira-mar, por familiares muito amigos, mais ou menos arredados da história, mas evocados com a ternura necessária à sua plausibilidade perante a desconfiada media. Não sei se estava no pensamento subtil de Salles da Fonseca a analogia.
Quanto à história das máscaras de Carnaval, é assunto hoje banalizado, mas que nos conta as suas origens, afinal bem sinistras, e hoje só servindo de referência inócua de sátira, pois, nos tempos que correm, já nem se precisa de máscara. Qualquer pode usurpar o seu condado, bem às claras, desde que tenha arte para tal.
Mas é com Schiller que fecham as anotações do blog “A Bem da Nação”, a destacar-se altivamente da teoria democrática, libertadora de todos os instintos:  “A voz da maioria não é garantia de justiça”.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 28.12.18
Da Wikipédia extraio que William Tecumseh Sherman foi um soldado, empresário, educador e autor norte-americano.
General no Exército da União durante a Guerra de Secessão, foi reconhecido como um estratega militar visionário.
Nascimento: 8 de fevereiro de 1820, Lancaster, Ohio, EUA
Falecimento: 14 de fevereiro de 1891, Nova Iorque, Nova Iorque, EUA
Cônjuge: Ellen Ewing Sherman (de 1850 a 1888)
Enterrado no Calvary Cemetery & Mausoleum, St. Louis, Missouri, EUA
Filhos: Thomas Ewing Sherman, Eleanor Sherman Thackara

Do romance «Música de praia» de Pat Conroy[1], extraio que o personagem principal é Jack McCall, nascido em Waterford, na Carolina do Sul, crescido até quase aos dois metros e que já referi  num texto anterior sobre a palavra «perfunctório». Contei então que a mulher dele, Shyla, se suicidara ao atirar-se duma ponte por não ser capaz de continuar a suportar as vozes que a esquizofrenia a fazia ouvir constantemente.
A mãe de Jack transformara-se de stripper analfabeta quando era solteira em cicerone da sua própria casa, histórica, depois de casada com um juiz e mãe de cinco filhos em que Jack era o primogénito. Ali acediam (pagando, claro) grupos de turistas, tanto locais como forasteiros.
Quando o rapaz estava a concluir o liceu, a casa foi visitada pela sua turma de finalistas e ele próprio foi, como turista, ouvir a mãe explicar tudo o que o rodeara desde que nascera. Como seria de esperar, a mãe não cobrou a visita da turma do filho.
E naquela sala, a «biblioteca», a mãe explicava que, quando os ianques ocuparam Waterford logo no início das hostilidades, a dona da casa se tinha recusado a fugir e passara toda a Guerra Civil sob ocupação nortista e fingia que lia uma carta emoldurada e pendurada na parede em que o General Sherman escrevia à antiga-antiga dona daquela casa pedindo para transmitir um recado à sua ex-amada, Elizabeth, a filha da dita Senhora:
Cara Senhora Cotesworth,
«Lembro-me do serão que passei em sua casa com imenso prazer (em que pedira ao pai a mão de Elizabeth, que anuíra, mas que as obrigações militares do putativo noivo impediram a concretização) e muita tristeza. Soube da morte do seu marido em Charleston e a notícia causou-me grande pesar. Contaram-me que a carga de cavalaria que ele comandava rompeu as nossas linhas infligindo pesadas perdas. Teve uma morte honrosa e espero que isso a console.
Já deve ter ouvido que vou atacar as forças confederadas que defendem Colúmbia. O Sul está aniquilado e a guerra em breve terminará. Gostaria igualmente de apresentar os meus cumprimentos à sua filha, Elizabeth, e muito apreciaria que lhe dissesse que ainda a tenho em grande estima. Não estou certo de que a guerra contra o México e as grandes vitórias alcançadas pelas forças americanas sejam merecedoras da perda de Elizabeth. Enquanto o meu exército avança através do Sul e se aproxima inexoravelmente do lugar que Elizabeth tornou mágico pela sua mera presença, penso muito nela.
Ficar-lhe-ia muito grato se fizesse chegar às mãos de sua filha um recado: diga a Elizabeth que lhe ofereço a cidade de Charleston.
Muito sinceramente,
Wiliam T. Sherman
General do Exército
 Na época em que os finalistas do liceu de Waterford visitavam a casa de Jack, a sua futura mulher, Shyla, ainda namorava com um outro colega de turma e, à saída, a mãe chamou o filho com uma frase sonante que a todos fez virar para trás: - Eh, bonitão! Não me digas que te vais embora sem me dares um beijo de despedida. O rapaz voltou a subir as escadas para beijar a mãe, quase caiu de joelhos perante ela e recebeu uma festa na cara. Foi então que do grupo de liceais se soltou uma voz feminina bradando – General Sherman! General Sherman! Vamos embora! Ao que a mãe de Jack respondeu - Ele vai já, Elizabeth!
Era Shyla que o tinha chamado e que assim declarava a toda a gente mudar de namorado.
 * * *
 Acredito nas informações da Wikipédia mas não acredito numa única linha do romance. E dado que parte importante da história se passa em Roma, digo como os italianos: «Se non è vero, è ben trovato».
De qualquer modo, gostei da qualidade literária do cenário romanceado e por isso o trago aqui.
Dezembro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
 [1] - Ed. Círculo de Leitores, Setembro de 1996, pág.215 e seg.
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,  27.12.18
CARNAVAL DE VENEZA 
O rosto da mulher estava tapado por uma máscara, mas a minha imaginação desenhava-lhe as feições. Mascaradas, todas as mulheres se transformam em beldades famosas que todos os homens conquistam pelo seu encanto. A mulher com quem dançava pôs-se a fazer-me perguntas em italiano. Se eu dissesse uma palavra, todo o país ficaria ao corrente de que eu era americano.
- Ah! – exclamou ela numa voz cantante. – Esperava que fosse chinês.
- Então, sou chinês – disse eu em italiano.
- Sou condessa – disse com orgulho. – A minha família descende do décimo segundo Doge.
- É verdade? – perguntei.
- Esta noite, tudo é verdade. No Carnaval, todas as mulheres são condessas.
O meu italiano tinha chegado aos seus limites, assim, falei-lhe em inglês.
- A máscara torna a mentira mais fácil?
- A máscara torna a mentira necessária – respondeu-me.
- Então, não é condessa.
- Sou condessa, todos os anos, na mesma noite. E espero que toda a gente me preste as homenagens que mereço.
Dei um passo atrás e fiz-lhe uma profunda vénia.
- Minha condessa adorada.
- Meu servo – disse ela e, fazendo uma reverência, desapareceu na multidão.
 MÚSICA DE PRAIA – Pat Conroy - Círculo de Leitores, ed. Setembro de 1996, pág. 62
  Henrique Salles da Fonseca  27.12.2018  

COMENTÁRIO
Olá! Henrique 
A Sereníssima tinha um governo ditatorial. Havia várias bocas de leão para se depositarem denúncias anónimas. Desgraçados dos que entrassem por "aquela" porta, dentro do palácio dos Doges.
Perante isto, recorrendo à sua forte imaginação e apurado sentido de humor, os venezianos foram alargando a época do Carnaval, alargaram tanto que a Sereníssima teve de o datar.
Já deve saber isto tudo. Eu relembro o pavor de venezianos a falarem das bocas de leão e do humor a falarem nas máscaras. 
Chegaram a andar mascarados seis meses. A capa preta fazia parte do traje diário e a máscara preta era usada nas muitas pestes.
Gena Múrias

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇão, 28.12.18

A voz da maioria não é garantia de justiça
Friedrich von Schiller



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