Também a Madre Teresa, aqui
referida, esteve lá, em Calcutá, foi premiada e muito amada, porque de uma
generosidade e esforço inultrapassáveis, mas a situação de desumana abjecção aí
continua, em algumas partes da Índia, por via da corrupção dos políticos,
explica Salles da Fonseca, que conta o que viu, e alerta para o desprezo humano
de trabalhos indignamente remunerados, enriquecendo as gentes vis da exploração
descontrolada, perante a indiferença de um Ocidente mais movido a regras, por
vezes infringidas - mais a ocultas contudo - causando também igual repugnância e
mal-estar por ser mais badalado nos média. Também em tempos ouvi sobre o Dubai,
construído na exploração desses seres da Índia e arredores, que vivem em
condições sub-humanas, num espaço de tanto desafio à beleza e à riqueza que eles
ajudaram a criar, e de tanta indignidade e vileza subterrâneas, de desprezo e
ingratidão. Mas estes alertas das pessoas sensíveis não provocam revoltas, num
mundo onde a maioria vai aguentando a sua carga e a sua canga, num salve-se
quem puder desatento ou indiferente.
São muito curiosas estas
experiências viageiras de Salles da Fonseca, impregnadas da reflexão humanística
e social de tanto interesse, que oxalá resultasse, ao menos como alerta, se não
como execração e repúdio.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 18.12.18
DA GLOBALIZAÇÃO
Sim, reconheço que «cá fora»[1] também
há casos lastimáveis de quem trabalha sem condições de dignidade, remuneração,
higiene e segurança. Dizer o contrário seria mentir e ocultá-lo seria
escandaloso.
No comentário de «Anónimo» no «CHAO-MIN – 3» a que ora me refiro, a crítica incide sobretudo na
minha frase relativa aos produtos resultantes do trabalho prisional na China
que concorrem com os "homólogos produzidos por quem tem direitos
humanos".
Com diplomática ironia, o
Comentador calcula que eu me esteja a referir à «civilizadíssima mercadoria
com etiqueta "ocidental" (que concorre com a chinesa nos mercados
mundiais), produzida em condições laborais fabulosas, com um não menos fabuloso
respeito pelos direitos humanos, em países como o Vietname, Bangladesh, Paquistão, Tunísia, Marrocos e mais alguns felizardos, denodada e
alegremente enquadrados e defendidos por organizações, sindicais e outras, que
lhes conseguem gordíssimas remunerações e condições de vida absolutamente
invejáveis».
A este cenário –
lastimavelmente real - eu acrescentaria ainda a questão do trabalho infantil
que a essa condição, a da infantilidade, soma todas as descritas acima.
Contra factos, os únicos
argumentos que poderão vingar serão os que conduzam à correcção das ditas
condições de miséria.
A diferença que existe entre a China e os outros países «cá de
fora» nessas práticas vergonhosas é a de que na China se trata duma política de
Estado enquanto, nos outros, se trata de desleixo de Estado.
Conheço uma parte da China onde
não me foi possível verificar o que afirmo porque não é suposto os turistas
sequer saberem dessas realidades e muito menos vê-las e conheço outros países
«cá de fora», nomeadamente a Índia em grandíssimas extensões. Dos países
citados acima, posso mesmo dizer que conheço a Índia, Marrocos e o Vietname
melhor do que, respectivamente, a maior parte dos indianos, dos marroquinos e
dos vietnamitas. Quanto à Indonésia, não me arrogo um conhecimento tão
extenso mas, mesmo assim, pude conhecer a ilha de Java (assim como Bali) numa
extensão apreciável, tanto urbana como rural e respectivos matizes intermédios.
Vamos por partes:
Na Indonésia não vi miséria e
mais não me ocorre dizer nesta circunstância;
Em Marrocos vi uma sociedade
medieval que como tal deve ser considerada, mas onde o investimento estrangeiro
(nomeadamente português) vem criando condições de vida bastante mais favoráveis
do que as que se imagina existissem anteriormente;
No Vietname, vi instalações
industriais que me informaram serem o resultado da deslocalização da China mas
como constatei um nível médio de vida muito superior ao chinês, presumo que a
deslocalização não tenha ocorrido em busca de condições laborais mais abjectas
do que no local de onde foram deslocalizadas.
O problema «cá fora do Império do Meio» chama-se Índia onde, aí sim, tudo raia o abjecto. O cúmulo do desprezo dos políticos para com
os respectivos «eleitores» verifica-se, dentre as amplas regiões que conheço,
em Estados tão populosos como o Rajastão, o Uttar Pradesh e, sobretudo e no seu
maior “esplendor”, no Tamil Nadu. Duvido que haja no resto do mundo locais onde
o desprezo pela dignidade humana toque mais baixo na escala dos Valores
concebidos por uma qualquer Civilização. Talvez só em Auschwitz ou em Treblinka
tenham chegado a maior rigor.
E onde quero eu chegar com
estes últimos considerandos? Muito simplesmente à constatação de que tudo o que o investimento
– especialmente o estrangeiro - faça nessas zonas seja da maior importância
para a sobrevivência imediata de alguns (sempre poucos) desgraçados que estavam
encaminhados para a morte ao abandono nas lixeiras que são as ruas das cidades
e aldeias indianas. Então, apesar de muito abaixo do que se exige nas
sociedades ocidentais, os novos padrões de sobrevivência de que os funcionários
dessas empresas estrangeiras na Índia passam a usufruir são tão melhores do que
os que tinham antes, que tudo lhes parece um «el dorado» apesar de, para nós,
tudo continuar a ser horrível.
Há quem diga que essas
condições abjectas de sobrevivência resultam de conceitos civilizacionais, que
não podemos fazer comparações com aquilo que a nós, ocidentais, nos parece
correcto, desejável ou apenas razoável.
Não, eu creio que esse
entendimento não corresponde à essência da questão pois, na mesma Índia, vamos por exemplo ao Estado do Kerala e não vemos um
papel no chão, não vemos hordas de desamparados nem sequer de mendigos
famintos, vemos as obras públicas em andamento e não paradas por falta de
financiamento atempado como no Tamil Nadu, vemos uma classe média tranquila e
firme.
Creio, pois, que a diferença
não é civilizacional; à diferença chama-se corrupção
dos políticos que desprezam os respectivos «eleitores» e não se cansam de
enriquecer enquanto lhes dura o mandato. E, no final, não olham a meios para se
eternizarem no Poder como acontece um pouco por toda a parte nessa a que há
quem chame a maior democracia do planeta.
Exactamente: na Índia, o bem comum não é um conceito tão comum
como o bem individual dos políticos e essa é uma questão que nada tem a ver com
a Civilização mas sim com a qualidade da democracia que por lá dizem existir.
Finalmente, creio que o
investimento, nomeadamente esse que por lá faz produtos de «etiquetas
ocidentais», deve ser aplaudido por estar a minorar as condições degradantes daqueles
desgraçados que, em alternativa, morreriam ao abandono no sítio onde deveria
haver uma sargeta se, ao menos, houvesse saneamento básico.
Quanto ao trabalho infantil, por muito horrível que nos pareça,
sempre são menos essas crianças destinadas à morte abjecta na selva humana.
Eu vi, sei do que falo.
E é para continuar assim? Sim,
será, sobretudo se nós nada fizermos para mudar a condição que criticamos. Anjezë Gonxhe Bojaxhiu[2] não se ficou pela crítica, agiu.
Dezembro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
(Tamil Nadu, em Trichy, nas
margens do rio Cauvery, local de peregrinação e purificação dos hindus na que é
chamada de «a Varanasi do sul»)
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