Habituada à série policial de Georges Simenon em torno das lucubrações
detectivescas do comissário Maigret, na pessoa do actor Bruno Cremer, com os seus inseparáveis cachimbo e chapéu, segundo o
esquema televisivo dos anos 90 a dar conta de meios e ambientes mais ou menos sombrios
e limitados dos anos 50 - e tendo, como única leitura na língua original L’Homme de Londres – romance psicológico
que põe em cena um controlador de tráfego portuário testemunha nocturna de um
crime e aproveitando-se dele – por intermédio da maleta recheada de dinheiro
que consegue repescar, na escuridão da noite, e o transforma em personagem timorata,
dividida entre os escrúpulos de honestidade de entrega à polícia da maleta e o
desejo de a manter consigo, por amor dos seus, e sobretudo da filha, de parco
trabalho explorado - foi com surpresa que deparei com o livrinho “Carta
para minha mãe”, da editora Livros
Cotovia, que me trouxe, de certo modo, em autobiografia, a reprodução desses ambientes policiais
sombrios e de lutas psicológicas de grande densidade analítica.
“Carta para minha mãe”, de
Georges Simenon, reproduz, em
evocação datada – Quinta-feira, 18 de Abril de 1974 - em alternância de momentos de visita à mãe
moribunda, numa cama de hospital, factos de um relacionamento de atrito entre
mãe e filho, ao longo da vida, e que resultam num estranho retrato de uma mulher
de aparência rigorosa e lutadora, porque de pequena foi colocada numa posição
de subalternidade amarga, que se esforçou por vencer trabalhando arduamente,
retraída nas emoções, e obstinada na ideia de vencer pela riqueza.
Transcrevo, por me parecer
lapidar, o excerto colocado na justificação do livro pela “Livros Cotovia”:
«”Carta para minha mãe” (1974) é,
mais que um título, outra excepção que confirma a regra. Como um último espasmo
de génio de alguém que se retirou da ficção romanesca. O livro escapa às
normas, tanto pelo contexto quanto pelo poder evocativo. (…) É uma crónica da
incompreensão através da história de dois seres que nunca conseguiram amar-se
por nunca terem sabido conversar. Simenon revela-nos o nódulo do seu
sofrimento, o sofrimento de um grande escritor reconhecido por todos e em toda
a parte, excepto pela sua própria mãe”.»
Pierre Assouline, “Simenon: biographie”
Sendo um livro autobiográfico,
parece-me, todavia, uma narrativa de estranha dureza, de um filho aparentemente
maltratado por uma mãe que lhe não reconhecendo o génio, o expulsou
orgulhosamente da sua ternura, uma justificação unilateral a maior parte das
vezes acusatória, de filho vítima de procedimentos maternos de estranha
incompreensão, que o escritor famoso vem exibir, na sua posição vantajosa de
executor da última palavra, embora com assomos, por vezes, de admiração por
essa figura de mulher amarga e sofredora que com requinte escalpeliza.
Um livro que traz à ideia a
frase bem conhecida de Óscar Wilde que a Internet nos fornece: “No
início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los.
Raramente ou quase nunca os perdoam.”
Julgo que, todavia, ao
retratá-la por vezes bem duramente, vai tentando justificar os procedimentos da
mãe, em atenção à vida de amarguras que desde criança ela sofreu, acabando por
nos dar uma perspectiva final de apaziguamento e ternura pela mulher de
carácter que, afinal, ela sempre se revelou. A sua superioridade de escritor
famoso traduziu-se, assim, aparentemente, numa real admiração pela mãe, em
tentativa de justificação da aberração que foi o relacionamento entre ele e a mãe.
De toda a maneira, foi sua a
última palavra, os filhos têm sempre a última palavra, embora julgue que a
maior parte das vezes é de amor a lembrança. A imagem que me acode a
comprová-lo é, num dos programas “E o
resto são cantigas”, tendo este como convidada Amália Rodrigues – a figura comovida da filha de Frederico Valério – em tímido choro
incontido pelo seu pai doente - enquanto Amália lhe prestava homenagem cantando
um dos fados que o compositor criara para si. Julgo que sim, que o elo entre
filhos e pais não poderá nunca extinguir-se, apesar das transformações sociais
de egoísmos a explodirem.
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