quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

“Carta para minha mãe”



Habituada à série policial de Georges Simenon em torno das lucubrações detectivescas do comissário Maigret, na pessoa do actor Bruno Cremer, com os seus inseparáveis cachimbo e chapéu, segundo o esquema televisivo dos anos 90 a dar conta de meios e ambientes mais ou menos sombrios e limitados dos anos 50 - e tendo, como única leitura na língua original L’Homme de Londres – romance psicológico que põe em cena um controlador de tráfego portuário testemunha nocturna de um crime e aproveitando-se dele – por intermédio da maleta recheada de dinheiro que consegue repescar, na escuridão da noite, e o transforma em personagem timorata, dividida entre os escrúpulos de honestidade de entrega à polícia da maleta e o desejo de a manter consigo, por amor dos seus, e sobretudo da filha, de parco trabalho explorado - foi com surpresa que deparei com o livrinho “Carta para minha mãe”, da editora Livros Cotovia, que me trouxe, de certo modo, em autobiografia, a reprodução desses ambientes policiais sombrios e de lutas psicológicas de grande densidade analítica.
Carta para minha mãe”, de Georges Simenon, reproduz, em evocação datada – Quinta-feira, 18 de Abril de 1974 - em alternância de momentos de visita à mãe moribunda, numa cama de hospital, factos de um relacionamento de atrito entre mãe e filho, ao longo da vida, e que resultam num estranho retrato de uma mulher de aparência rigorosa e lutadora, porque de pequena foi colocada numa posição de subalternidade amarga, que se esforçou por vencer trabalhando arduamente, retraída nas emoções, e obstinada na ideia de vencer pela riqueza.
Transcrevo, por me parecer lapidar, o excerto colocado na justificação do livro pela “Livros Cotovia”:
«”Carta para minha mãe” (1974) é, mais que um título, outra excepção que confirma a regra. Como um último espasmo de génio de alguém que se retirou da ficção romanesca. O livro escapa às normas, tanto pelo contexto quanto pelo poder evocativo. (…) É uma crónica da incompreensão através da história de dois seres que nunca conseguiram amar-se por nunca terem sabido conversar. Simenon revela-nos o nódulo do seu sofrimento, o sofrimento de um grande escritor reconhecido por todos e em toda a parte, excepto pela sua própria mãe”.»
Pierre Assouline, “Simenon: biographie”
Sendo um livro autobiográfico, parece-me, todavia, uma narrativa de estranha dureza, de um filho aparentemente maltratado por uma mãe que lhe não reconhecendo o génio, o expulsou orgulhosamente da sua ternura, uma justificação unilateral a maior parte das vezes acusatória, de filho vítima de procedimentos maternos de estranha incompreensão, que o escritor famoso vem exibir, na sua posição vantajosa de executor da última palavra, embora com assomos, por vezes, de admiração por essa figura de mulher amarga e sofredora que com requinte escalpeliza.
Um livro que traz à ideia a frase bem conhecida de Óscar Wilde que a Internet nos fornece: “No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam.”
Julgo que, todavia, ao retratá-la por vezes bem duramente, vai tentando justificar os procedimentos da mãe, em atenção à vida de amarguras que desde criança ela sofreu, acabando por nos dar uma perspectiva final de apaziguamento e ternura pela mulher de carácter que, afinal, ela sempre se revelou. A sua superioridade de escritor famoso traduziu-se, assim, aparentemente, numa real admiração pela mãe, em tentativa de justificação da aberração que foi o relacionamento entre ele e a mãe.
De toda a maneira, foi sua a última palavra, os filhos têm sempre a última palavra, embora julgue que a maior parte das vezes é de amor a lembrança. A imagem que me acode a comprová-lo é, num dos programas “E o resto são cantigas”, tendo este como convidada Amália Rodrigues – a figura comovida da filha de Frederico Valério – em tímido choro incontido pelo seu pai doente - enquanto Amália lhe prestava homenagem cantando um dos fados que o compositor criara para si. Julgo que sim, que o elo entre filhos e pais não poderá nunca extinguir-se, apesar das transformações sociais de egoísmos a explodirem.

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