segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Um exemplo de integridade e uma receita de bebinca



Chegou por email o artigo, enviado por João Sena, uma história de fadas, ainda possível hoje.
FERNANDO VAZ, UM HOMEM BOM
Nos Seus Noventa Anos
Óscar Monteiro
Há várias maneiras de identificar uma personalidade, a empatia, o sorriso, os gestos, a maior ou menor vivacidade, a capacidade de comunicação, a forma inovadora de ver as coisas, capturados hoje através de formulações e conceitos como inteligência emocional, visão lateral, pensamento estratégico, e ainda o que se chama pensar fora da caixa”.
Para falar do Fernando Vaz, eu vou tomar um outro ângulo, um outro aspecto da exteriorização da personalidade humana: a voz. A do Fernando Vaz é uma voz que nos fala directo ao coração, seja nos grandes temas, seja nas coisas da vida quotidiana. Uma voz ao mesmo tempo grave e diria terna, na falta de melhor caracterização. Uma voz que transporta carradas de pensamento, meditação, pensamento profundo, reflexão permanente, que nos faz parar a todos para escutar e ponderar. Era assim o Fernando quando falava no Conselho de Ministros, é assim quando nos fala hoje, intemporalmente igual nas suas atitudes e nas suas convicções.
É com a mesma voz que exalta a epopeia da libertação e a não menos gloriosa epopeia da construção do país independente, a do sonho de justiça social. Quando todos se eximem de responsabilidade consciente nesse período de busca por uma sociedade mais justa, e Fernando Voz se levanta para dizer o que fizemos foi grandioso e foi belo, nós constatamos que a teia de sonhos e valores que sustentava esse momento e essa acção tinham um alcance mais vasto. E que fora de um quadro de valores, seja de esquerda, como eram os nossos, seja de direita, jaz a desordem subreptícia e silenciosa, a corrupção aceite, o silêncio cúmplice e o medo desesperançado. O medo propugnado como virtude, meu Deus! o que pensará de tudo isto o Fernando?
Todos nós somos produto de um meio que é por sua vez produto de outros meios. Assim, o meio familiar, os valores da família são produto dos nossos pais, mas são produto de uma sociedade mais vasta. No decorrer do tempo esse meio se transforma e se alarga. Mas essa transformação só é fecunda e sustentada quando os valores da família -- como ser bom, agir bem, respeitar os outros, ser solidário, ser caridoso -- , esses valores familiares te acompanham nas várias fases da vida. Fernando Vaz foi exposto a outros mundos e outras influências, conheceu os Amílcares e Netos, e incontáveis outras figuras de valor, portadores do ideal de sociedades livres e mais justas. Mas o seu segredo está em ter sido o Fernando Vaz, filho do Sr. Olegário Vaz, o mesmo que entrou no ramo do movimento nacionalista que se desenvolveu na Casa dos Estudantes do Império, de que que foi Presidente da Assembleia Geral. Num processo identificado pelo sistema vigente como claramente anticolonial.
É desse tempo que eu o conheço sem o conhecer, ele estava em Lisboa, eu em Coimbra, mas sua imagem e prestígio eram tais que ainda me lembro graficamente de quando o vi pela primeira vez no Rossio, lembro o sol desse dia, com um fato jaquetão e um casaco de abas largas já como interno dos Hospitais da Universidade, uma distinção só dada aos melhores. A despeito do jaquetão, ajudou-me a reconhecê-lo, uma foto que pelos meus treze anos tinha visto na página  desportiva do jornal Notícias, com ele a defender um remate enquanto guarda redes do Clube Desportivo Indo-Português, e também como lembrou Hélder há dias, o Fernando foi também guarda-redes da selecção provincial. Era o mesmo Fernando amável e distinto, igual no Rocio e no campo do Desportivo.
Ao longo do tempo em que privei com o Fernando mais se vem radicando a ideia que para se ser consequente nos processos de transformação social é preciso ter alguns princípios sólidos, independentemente da camada ou mesmo classe social de origem. É daí que vem a capacidade, diria, a necessidade, de ser consequente na sua maneira de ser. No movimento de libertação nós chamamos a isso, interiorizar os princípios, isto é, fazer dos objectivos nobres parte da nossa conduta e gradualmente absorver esses princípios, fazer deles parte da nossa personalidade. Para sermos, na essência, bons. Mas isso não pode estar apenas colado, ter de estar ancorado numa parte intrínseca, por menor que pareça, da nossa personalidade original. Vou ilustrar com uma história que liga as nossas famílias e que só vim a conhecer agora nos anos noventa. Estava o pai Vaz no Chinde como responsável da Fazenda e zelador das caixas de libras-ouro com que se pagavam os funcionários naquela época. Desencadeia-se um tremendo temporal, o primeiro dos que destruíram e fizeram deslocar a vila do Chinde. O meu pai, jovem aspirante do Correios hospedava na casa Vaz e perante a gravidade da situação, o pai Vaz deixou o meu pai a tomar conta da família, a mãe, as irmãs e todos os irmãos sentados na cama. Perante o agravar da situação, a casa rangia e abanava, o meu pai ainda inexperiente, tomou a decisão de fazer evacuar a casa e esperar ao relento. Pouco tempo depois a casa ruiu.
Mas o ponto não é este, aliás esta história já foi contada. O ponto é, que interesse mais alto levou o pai Vaz a ausentar-se: era a defesa do património público, as libras-ouro que eram propriedade do Estado, bem a preservar com algo que é pertença comum, e ao mesmo tempo se destinavam a pagar vencimentos e despesas, garantir a justa remuneração dos servidores do Estado e outro incontáveis trabalhadores simples. O Fernando Vaz que conhecemos como médico do serviço público, como militante nacionalista, como dirigente do sector da saúde, como dirigente governamental descende directamente dessas caixas de libras-ouro, desta noção do respeito do bem público, do respeito de algo que nos transcende, que transcende os nossos apetites imediatos. E a sua experiência em outros horizontes, onde casou e conviveu – uma lembrança à Mimi – só o enriqueceu, de Lisboa a Timor.
É por isso que ainda hoje ele está a conceber curricula, a quer dar o seu saber, que ele sabe ser um bem colectivo, a ser criativo para que a o país prossiga e as novas gerações sejam melhores do que nós.
Há recompensa? Sim! Aqui estamos a assistir a esta tocante homenagem da Universidade e dos seus alunos. No último domingo testemunhei uma igualmente tocante: os filhos, noras e vários grupos de netos a prezar os valores de profissionalismo (uma neta é cirurgiã!), e os valores de honradez, de amor ao próximo, de dedicação ao progresso da sociedade que são os esteios do patriotismo verdadeiro.
Nesse mesmo Domingo comemos bebinca, um doce da culinária goesa, o seu apogeu, feito em em camadas sucessivas (podem ser dezenas), colocadas pacientemente após esfriar, umas sobre outras, ovos e colesterol às pazadas. Nós também estamos aqui a acrescentar uma camada à bebinca de amizade e admiração que vem rodeando o Fernando Vaz desde sempre.
Talvez não nos seja dado a todos chegar como o Fernando Vaz aos 90 anos, assim capaz, lúcido e competente. Seja! Mas se tivermos ao nível dos nossos filhos, noras e netos, ao nível dos nossos amigos, do nosso núcleo de amigos que resiste às tentações, dos nossos discípulos como certamente deve haver entre alguns dos alunos da UP aqui presentes, estes que nos ajudam a resistir, terá valido a pena e teremos aí nesse momento quase íntimo a justa recompensa. Como está merecendo o Fernando Vaz. Ninguém controla o futuro dos outros, mas os filhos e netos do Fernando já controlam o deles.
E finalmente, pensei agora no fim deste texto, no nome que deverei colocar em epígrafe do texto para o poder referenciar na imensidão dos ficheiros dos computadores: pensei em “A Voz do Fernando Vaz”, ou “Uma Camada de Bebinca”. Mas recordei que, muito simplesmente, que para além da bondade de cariz caritativo que nos vem da educação religiosa, qualquer religião, o ser pessoa íntegra, amar os outros, amar o seu país, transmitir o saber, é o que caracteriza os homens bons. Por isso eu chamaria este texto, simplesmente, Fernando Vaz, um Homem Bom!
Matola, 19 de Dezembro de 2018

José Oscar Monteiro nasceu em Lourenço Marques (actual cidade de Maputo) em 1941. Filho de pais goeses, foi levado pelos contornos do colonialismo a uma consciência nacionalista ativa. Representante da Frelimo na Argélia e na Europa do Sul, organiza a audiência do Papa Paulo VI com os dirigentes nacionalistas, contribui para a adoção do estatuto de prisioneiros de guerra para os combatentes das lutas de libertação. Participa nas negociações públicas e confidenciais sobre os Acordos de Lusaka, é um dos seis Ministros da Frelimo no Governo de Transição e é Ministro no Primeiro Governo independente. Lecciona Direito Constitucional na Universidade Eduardo Mondlane, dirige o Governo de Gaza onde fica conhecido como "madlhaya ndlala" (mata-fome).
Faz parte do Bureau Político do Partido Frelimo, assessora o movimento de libertação da Namíbia, trabalha com Xanana Gusmão na prisão de Salemba em Jakarta. Participa na formação da nova geração de dirigentes da África do Sul multirracial, como Professor na Universidade de Wits, faz parte do Comité de Peritos em Administração Pública das Nações Unidas.

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