terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Happy New Year



Malgré tout.  Três artigos elucidativos – Por gente que sabe: do nosso mundo lusíada e do dos outros, o de Trump em especial.
I – OPINIÃO   -   Uma legislatura longa demais para António Costa
António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela.
JOÃO MIGUEL TAVARES    -    PÚBLICO, 29 de Dezembro de 2018
António Costa conseguiu um milagre no qual só mesmo ele acreditaria na noite de 4 de Outubro de 2015, após a sua inesperada derrota eleitoral: completar uma legislatura como primeiro-ministro, com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Esse facto, que muitas vezes é despachado (injustamente) como “habilidade política”, merece o meu respeito e a minha admiração. Contudo, é muito possível que o milagre de 2015 venha agora a revelar-se a maldição de 2019, se as greves continuarem a este ritmo e a degradação dos serviços públicos acelerar. A aprovação do último Orçamento do Estado, celebrada como mais uma vitória de Costa, pode muito bem ter sido menos uma vitória de Costa e mais uma vitória de Pirro, com o primeiro-ministro a acabar refém do seu próprio sucesso.
Se assim for, e se 2019 for o ano em que a esquerda comunista e bloquista se vai vingar de todos os sapos que engoliu durante a legislatura, colocando o governo que diligentemente apoiou a fritar em lume brando até Outubro, é caso para dizer: é muito bem feito, senhor primeiro-ministro. Porque se eu admiro a arte política que António Costa revelou nos últimos anos, e se continuo a considerar – como sempre considerei – que ele é o melhor quadro que o PS tem para oferecer ao país, há uma coisa que não lhe deve ser perdoada: ter assinado um pacto de governo com base numa mentira escandalosa, que fica para a História como “o virar da página da austeridade”.
Quando fazemos o balanço destes três anos, houve muitas medidas económicas que o governo tomou e com as quais não concordo, mas só uma delas posso classificar como verdadeiramente obscena – a redução do horário de trabalho de 40 para 35 horas na função pública. Essa, sim, é uma medida imperdoável. Mas, fora isso, não houve aumentos de 2,9% para a função pública em vésperas de eleições, como nos saudosos tempos de José Sócrates, nem delírios como a Parque Escolar ou o TGV. Ou seja, de um modo geral, a política adoptada por Costa e Centeno está dentro de padrões de responsabilidade financeira aceitáveis, ao contrário do que era prática comum no Partido Socialista.
Aquilo que não está dentro dos padrões aceitáveis é a formação de uma narrativa de enganos em torno do legado do governo anterior, e a demonização do trabalho de Passos Coelho, que na cabeça de muita gente perdura até hoje. Essa narrativa não é apenas injusta – ela conduz, naturalmente, ao relaxamento da sociedade portuguesa, ao regresso a uma certa inconsciência no endividamento e à adopção de um discurso de facilidades que não existem. É verdade que as acções de Costa e Centeno foram sempre mais responsáveis do que as palavras que saíam das suas bocas – só que, a partir de certa altura, o mal estava feito. Se a austeridade prejudicou tanto o país, se ela não era necessária, porque é que as pessoas não podem regressar à vida de antigamente?
Quem por palavras mata, por palavras morre. António Costa começa agora a pagar, com três anos de atraso, o seu pecado original: andar a vender obsessivamente ao país que a austeridade do governo Passos estava errada, quando sabia perfeitamente que não havia alternativa a ela. Agora, na sua mensagem de Natal, o “virar a página de austeridade” deu lugar ao “virar a página dos anos mais difíceis”. Mas já vem tarde. Avizinham-se tempos duros para o governo, e é muito possível que esta legislatura tenha dez meses a mais do que recomendaria a boa saúde política de António Costa.  
II - OPINIÃO - Um Natal no Texas
O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade.
TERESA DE SOUSA  -   PÚBLICO, 30 de Dezembro de 2018
1. Numa mesa cheia de britânicos, outros europeus, alguns americanos e brasileiros, há palavras que não podem ficar de fora nem no Natal, tal como as rabanadas ou o christmas pudding. O que vai acontecer ao "Brexit"? Ninguém sabe nem ninguém se atreve a apostar. O mais recente disparate de Trump? É irresistível, por mais dramático que seja. Também não. O que vai acontecer ao Brasil de Bolsonaro? Há várias hipóteses sobre a mesa. Mesmo assim, nada consegue alterar o ambiente festivo de um subúrbio de Houston onde as crises ficam à porta e se fazem concursos para ver qual é o jardim com a iluminação natalícia mais arrojada, O prémio foi naturalmente para uma casa americana que os europeus são bastante mais sóbrios.
2. No vidro de trás do carro da minha filha ainda se pode ler “Beto for Senate”. Daqui a algum tempo, porventura na minha próxima visita, talvez já se possa ler “Beto for President”. O ideal, discute-se apaixonadamente, seria ter Michelle Obama como vice. Um “dream ticket” que provavelmente nunca acontecerá, embora a anterior primeira-dama seja hoje a mulher mais admirada da América. A mesma América que elegeu Trump há dois anos. Mas é Natal e sonhar é permitido. Ou seja, nem tudo está perdido neste grande país que alguns ainda acreditam que pode e deve voltar a ser “uma força para o bem no mundo”. Uma nação particular, que não nasceu de uma tribo ou de um território, mas de um conjunto de ideais, o primeiro dos quais a liberdade de cada um prosseguir a sua vida em busca da felicidade. Entretanto, o Governo está parcialmente paralisado porque Trump fez birra por causa do muro que quer construir na fronteira com o México, exigindo cinco mil milhões de dólares que o Congresso não está disposto a dar-lhe. Agora ameaça encerrar totalmente a fronteira com o México. O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. Nos jornais, ensinam-se métodos para que os funcionários públicos que estão sem receber salário consigam superar as dificuldades inerentes. Mas isso não impede que centenas de milhares de famílias paguem por uma guerra que não é a deles e vivam o Natal com a ansiedade de quem não sabe o que acontecerá ao seu salário no dia de amanhã.
3. Mas Washington fica longe. As minhas netas deliciam-se com a visita a um rancho gigantesco transformado em museu onde se pode acompanhar a vida dos primeiros colonos que chegaram à região na segunda década do século XIX e que foram progredindo numa típica história de sucesso e de oportunidade americana. A primeira, muito pobre, habitação. A segunda, já com o conforto e a amplitude próprios da época. O negócio foi o gado. A terceira, luxuosa, com a banca a somar-se à prosperidade da família. A quarta, finalmente, uma mansão digna de quem acabou por descobrir petróleo no próprio terreno. Tudo é mantido fielmente igual ao que era. Apenas os cowboys, os cavalos e os touros são actuais, para gáudio dos visitantes. As crianças aprendem História ao vivo. As guias mostram os dois lados da realidade: o que foi bom e o que foi mau ou injusto. Mas não, felizmente, em versão politicamente correcta. Descubro que as minhas netas mais velhas já têm um conhecimento muito razoável da História americana. É assim também que se constrói esta grande democracia às voltas com o seu destino mas capaz de resistir a um momento particularmente mau da sua História.
4. As atenções já estão viradas para 2020, enquanto Trump tenta disfarçar as suas dificuldades internas – que são bastantes – com o cumprimento de promessas eleitorais cujo efeito é muito mais negativo lá fora do que cá dentro. Retirada unilateral da Síria e, para breve, do Afeganistão, o que já levou à demissão do chefe do Pentágono, o general James Mattis, no qual os aliados confiavam para manter alguma racionalidade na política de segurança e defesa dos EUA e garantir a preservação da NATO. Mais um calafrio e mais uma preocupação para a Europa. A França tem tropas no terreno. O Reino Unido também. As forças anti-Assad que os EUA incentivaram, a começar pelos curdos, ficam indefesas. Erdogan rejubila. A mensagem para os aliados da América no mundo inteiro é: não confiem em nós. Mattis estava pelos cabelos, já se sabia. Passou o tempo a tentar tranquilizar os aliados sobre as decisões intempestivas do Presidente, para quem a palavra “aliado” não deve sequer existir no seu dicionário mental. “America First” é mais “America Only”. Mattis desistiu. Trump, em vez de agradecer-lhe os serviços prestados, tentou humilhá-lo publicamente, antecipando em dois meses a data anunciada para a sua saída. Como escrevia o Wall Street Jounal, foi demasiado longe, até para os americanos que se mantêm fieis às ideias mais extravagantes e perigosas da sua campanha. O exército é uma instituição respeitada nos EUA. Nem a visita surpresa que resolveu fazer a uma base secreta das tropas especiais americanas no Iraque ajudou a desviar as atenções. Como sempre acontece com este Presidente, a visita teve um ligeiro percalço: as fotografias que Trump divulgou podem revelar a localização da base. Decididamente, Trump não nasceu para ser Presidente do país mais poderoso do mundo. A história das suas divergências com o secretario da Defesa fala por si. Quando Trump mandou tropas para a fronteira com o México para impedir a entrada de imigrantes, depois de tentar demovê-lo, Mattis foi arrastando os pés até à última ordem do Presidente e ao aviso de que as tropas se defenderiam das pedras com balas. Inquirido pelos jornalistas, Mattis não poderia ter sido mais directo: “Por amor de Deus, eles nem sequer estão armados”. Apenas um exemplo entre muitos. Resta saber quem se segue no Pentágono. Haverá sempre alguém, mesmo que a tarefa de encontrar quem queira trabalhar com Trump se esteja a revelar cada vez mais difícil.
5. Já não falta tudo para 2020, a próxima oportunidade para corrigir este caminho perigoso. A responsabilidade está nas mãos dos Democratas e há tantas cartas em cima da mesa que ainda é muito difícil saber se vão conseguir escolher o ás de trunfo. Joe Biden é o mais popular, de longe. Mas os seus 76 anos, somados a uma carreira política de quase 50 e a um coração demasiado perto da boca (são famosas as suas gafes) desaconselham a sua candidatura, numa altura em que os eleitores anseiam por coisas novas, mesmo que lhes possa sair Trump na rifa. Bernie Sanders, que ia destronando Hillary nas primárias de 2016, padece do mesmo peso dos anos e representa a ala mais à esquerda dos Democratas – dificilmente seria um candidato vitorioso, mesmo que o partido se tenha chegado bastante à esquerda com a eleição de Trump e os movimentos populares de rejeição que alimentou. É o segundo mais popular mas a grande distância de Biden. Diz a imprensa americana que o seu objectivo actual é minar qualquer hipótese de uma candidatura do fenómeno texano Beto O’Rourke. Serão da sua iniciativa as recentes notícias vindas a lume sobre um registo de votos no Congresso que mostra Beto a votar algumas vezes ao lado dos republicanos. Um “defeito” que facilmente se poderia transformar numa virtude, porque as presidenciais não prescindem do eleitorado do centro, que não se revê totalmente num partido ou no outro. Beto é jovem, tem carisma, ganhou dimensão nacional quando desafiou Ted Cruz, o hiper-conservador senador do Texas, nas eleições de meio mandato de Novembro passado e quase ia ganhando, num estado onde eleger um democrata é uma raridade. Beto já mostrou que não tem medo nem das palavras nem das ideias, sejam elas mais ao centro ou mais à esquerda. O seu ar vagamente kennediano (é de origem irlandesa), a sua juventude e o seu carisma nato são trunfos poderosos a seu favor numa América que ainda não desistiu totalmente de ser uma cidade no alto da colina, iluminando o mundo. Como escreve Jake Sullivan no Carnegie Endowment, não nos esqueçamos que, ao longo da sua História, cada grande mudança não ocorreu em tempos de desorientação mas do que veio a seguir. “O New Deal seguiu-se à Grande Depressão, como o Plano Marshall se seguiu à Segunda Guerra”. “Quando Trump sair da Casa Branca, os EUA terão, mais uma vez, a oportunidade para seguir um novo caminho.” Até lá, “os nossos parceiros não vão desistir de nós”. É Natal. Há que ter esperança.
Se não for pedir muito para 2019 /premium
MARIA JOÃO MARQUES     -     OBSERVADOR, 26/12/2018
Podemos prometer violência – ou defender ideias que geram ressentimentos e divisões. Ou podemos exigir moderação e capacidade de consenso. Neste momento temos a responsabilidade de escolher.
Correndo o risco de adoptar o estilo a que as participantes dos concursos de beleza nos acostumaram, dou por mim quase a desejar para 2019 ‘paz no mundo’. Quer dizer, claro que desejo paz no mundo (quem não?) mas o meu desejo é um tudo nada mais específico. Concretizo: para 2019, quero paz social. E, ao contrário da paz no mundo (que nunca existiu em ano nenhum desde que inventaram a humanidade), paz social é uma boa característica a que tenho estado habituada toda a minha vida. Sendo que vejo, pela primeira vez, muitas pessoas a desejarem ardentemente que tal preciosidade se evapore. E muitos mais que, não sendo tão explícitos, elogiam os arruaceiros, os desculpam, os contextualizam, não lhes apontam qualquer crítica de peso, enfim, que no fundo desejam que a desordem suceda para depois se lhes juntarem.
É inútil, por tão evidente, referir que a paz social e o contexto de estabilidade num país é um bem em si mesmo. Níveis baixos de conflitualidade são benéficos para uma comunidade. Pelo contrário, alta conflitualidade e contestação social significativa e agressiva têm custos elevados. Por um lado, para o bem-estar psicológico de cada indivíduo – por muito que o número de arruaceiros tenha crescido, a tendência humana é a de procurar e desejar ambientes tão harmoniosos quanto possível. Qualquer manual de psicologia detalha os efeitos psicológicos do conflito. Depressão, solidão, angústias. Os compêndios de sociologia das organizações ou de comportamento organizacional devotam largas páginas à necessidade de resolução de conflitos nas organizações. Factores negativos como conflitos têm impacto psicológico daninho, enquanto as redes de suporte social impactam positivamente no bem-estar (veja-se por exemplo este meta-estudo de Karen D. Lincoln; ou este paper sobre estudantes universitários).
Por outro lado, conflitualidade social e contestação violenta têm também custos económicos. Gera incerteza e imprevisibilidade, o que extermina a vontade de qualquer um fazer investimento. Corrói a confiança, pelo que as negociações se tornam mais duras e reticentes e os negócios mais difíceis de obter. Famílias e empresas retardam decisões, engavetam projetos, arriscam menos. Stuart Diamond – que propõe modelos colaborativos – aqui estima que, em 2011 (e onde vai 2011?), a conflitualidade social poderia estar a custar a França 5% do PIB.
Há mais efeitos perniciosos. Politicamente a instabilidade cresce, as instituições degradam-se ou perdem credibilidade, os abusos potenciam-se. E gera-se um ciclo vicioso, reforçando o mal-estar individual e a maleita económica, que por sua vez geram mais contestação e conflito social.
Escrevo isto tudo por causa do país que ia parar com os coletes amarelos portugueses e que afinal não parou. Num sinal de sanidade, qualquer das concentrações em que estive nos últimos tempos – em protesto pela infame decisão do Tribunal da relação do Porto sobre os violadores de uma rapariga inconsciente numa discoteca e, no ano passado, em frente ao Palácio de Belém e no Terreiro do Paço por causa das mortes nos fogos florestais – teve bastante mais gente.
Porém nada garante que não haja um grande ajuntamento amarelado. Tenho alguma confiança na bonomia portuguesa. Claro que se adora a bazófia do facebook, ou a transfiguração em psicopata no twitter, as alucinações via whatsapp, no entanto os rendimentos por cá são escassos, a economia periclitante, toda a gente tem muito a perder se de súbito o caos se instalar. Por isto mesmo houve tanta resignação durante o período da troika – porque acima de tudo ninguém queria um segundo resgate com condições ainda mais draconianas. Num ambiente de crescimento económico e de descida de desemprego, mesmo com muitos sinais encarnados para o médio e longo prazo, seria estranho que o país se tornasse suicidário e deitasse tudo a perder.
Em todo o caso, não é de todo impossível que ocorram protestos. Mesmo se pequenos, meia dúzia de híper motivados podem provocar acidentes graves, vandalizar propriedade, emaranhar-se violentamente com a polícia. As políticas que se seguem também propiciarão mais ou menos contestação. Pelos dados apresentados neste artigo da The Economist, corte de apoios sociais (que é visto como um menor esforço de redistribuição) e grandes níveis de desigualdade são potenciadores de conflito social.
Os populismos, como se percebe, vivem dos ressentimentos e, para manter o poder, aprofundam os ressentimentos. Quem tem ido aos Estados Unidos (e agora ao Brasil) conta-me de ambientes de tensão antes inexistente. Na Hungria os protestos são por estes dias contra Orbán. Em França tanto a extrema esquerda como a extrema direita fazem render o ódio.
A retórica e a actuação de Trump têm custos que vão para além das perdas eleitorais dos republicanos. A imprevisibilidade e incerteza que o estilo negocial truculento com a China, Canadá e União Europeia tem tido custos significativos na economia mundial, visíveis numa série de indicadores voláteis que deveriam estar crescentes com estabilidade na conjuntura de crescimento atual. Os insultos, os tweets alucinados, os ataques desenfreados degradam e descredibilizam a presidência, por muito que se agrade à fiel base adepta da boçalidade. O shut down do governo por causa do financiamento do muro (olha, afinal não é o México que vai pagar). As ameaças de despedir o presidente da Federal Reserve por aumentar as taxas de juro. Manifestações de nazis, com mortos, que não são condenadas. O resultado, apesar do crescimento económico, é um nível de infelicidade recorde dos americanos.
A boa notícia é que podemos todos – daí o meu pedido inicial de paz no mundo em geral e paz social no particular – potenciais ambientes sadios, em vez de promover produtos ideológicos malsãos. Podemos prometer violência – ou defender ideias que geram ressentimentos e divisões. Ou podemos exigir moderação e capacidade de consenso. Neste momento temos a responsabilidade de escolher.

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