quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

“Menina, diga lá como se lê”



O b a  ba! Era o método tradicional, sintético-analítico, de aprendizagem da leitura, que depois virou em global. Como os sentimentos. Também viraram. Sentimentos globais, à escala mundial, vistosa e tagarela, sofisticada, snobe, falsa como Judas. Ou pior, que não leva ao enforcamento. Helena Matos explica. Magistralmente.
POLITICAMENTE CORRECTO: Os sem palavras /premium
HELENA MATOS   OBSERVADOR 13/1/2019
Nada é dito directamente: os trabalhadores são colaboradores e os deficientes pessoas portadoras de deficiência. Somos os perifrásticos. E o PSD enquanto "não esquerda" é a perífrase por excelência.
Primeiro os velhos tornaram-se idosos. E um dia, não se consegue já precisar qual, os cegos passaram a invisuais e o morrer tornou-se partir.
O chumbo ou reprovação transformou-se em retenção.
Os gordos passaram a obesos.
Os trabalhadores deram lugar aos colaboradores. Os despedidos a dispensados.
Depois do incêndio no Pinhal de Leiria, António Costa plantou simbolicamente um sobreiro no terreno ardido do que fora pinhal. Um ano depois, todos os sobreiros plantados no Pinhal de Leiria morreram. E mesmo que algum tivesse sobrevivido nunca atingiria uma dimensão considerável pois os solos arenosos do Pinhal de Leiria não o permitiriam. Tudo não passou portanto de uma operação para jornalista ver. Outrora isto seria considerado populismo. Agora é designado como habilidade.
O sexo passou a género.
Os maridos e mulheres deram lugar ao assexuado cônjuge, ou, como recomenda a União Europeia, a parceiro/parceira.
Os homens e mulheres são agora indistintamente pessoas.
Os homossexuais tornaram-se gays.
Mas eis que se constatou que tal exercício de busca de sinónimos não era suficiente. Foi aí que chegaram as perífrases ou seja esse bizarro falar por rodeios. E assim os idosos que já não eram velhos passaram a terceira idade. As prostitutas tornaram-se trabalhadoras do sexo.
Os invisuais a quem já não se podia chamar cegos deram lugar às pessoas portadoras de deficiência.
Catarina Martins diz que “um segredo bem escondido é que Portugal dá lucro. O excedente primário do OE será de 6 mil milhões de euros mas, devido ao serviço da dívida, mais de 8 mil milhões serão canalizados para o sistema financeiro.”  A sério que Catarina Martins acha que podemos deixar de pagar a dívida? E depois, quem nos empresta dinheiro?  Outrora, uma afirmação deste teor era designada como sintoma de burrice, de má fé  ou de ambas as coisas. Agora tornou-se a expressão de uma necessidade conjuntural de produção de um discurso de apoio ao governo enquanto se mantém uma atitude crítica e combativa face ao mesmo.
As empresas deixaram de falir e passaram a estar em reestruturação de serviços.
Os trabalhadores despedidos que entretanto tinham passado a colaboradores dispensados começaram a ser designados como elementos cuja colaboração cessou.
As coisas mais simples passaram a ter de ser referidas por sequências de palavras frequentemente sem sentido. As categorias profissionais tornaram-se uma espécie de cabides em que se acumulam palavras como quem pendura casacos: as hospedeiras deram lugar às assistentes de bordo e as funcionárias das escolas tornaram-se auxiliares de acção educativa.
Marcelo ligou em directo para o programa da Cristina Ferreira. Marcelo era a favor das propinas mas agora é contra, Marcelo grava mensagem sobre Roberto Leal para programa da RTP. Marcelo aprovou as 35 horas na função pública mas ia avaliar o seu impacto. O impacto já chegou mas Marcelo não o avaliou  ainda. Marcelo responde às críticas de  Manuel Luís Goucha sobre a sua participação no programa de Cristina Ferreira, recordando ao apresentador a entrevista que já lhe deu… Antigamente a isto chamava-se palhaçada e degradação da função presidencial. Agora são afectos.
Neste zelo de uma linguagem livre dos pecados do machismo, racismo, homofobia… as expressões aplaudidas num determinado momento logo se revelam desadequadas. E assim, os velhos depois de terem sido idosos e terceira idade tornaram-se seniores.
Os pretos que tinham passado a negros e em seguida a pessoas de cor são agora referidos como africanos. E para não ser acusado de discriminação de género o “Ladies and gentlemen” passou a “Hello, everyone”.
Tornámo-nos uma sociedade em que nada é dito directamente. Falamos por rodeios. Somos os perifrásticos.  Agarramo-nos a expressões neutras como sinal da nossa tolerância; por todo o país empresas e organismos oficiais produzem documentação recomendando que se recorra à linguagem neutra para “promover  a igualdade entre homens e mulheres” (Porque serão homens e mulheres mais iguais caso usemos, como recomenda esta publicaçâo,  a expressão “o povo português” em vez de “os portugueses”, “a gerência” em vez de “o gerente” ou que digamos que temos “data de nascimento” em vez de sermos “nascidos a” é um mistério)
Compomos frases enormes para não termos de dizer o óbvio. Recorremos ao eufemismo para mascarar a realidade. Temos medo das palavras. Usamo-las com mil cuidados não vão elas revelar o que de facto pensamos e não a forma como devemos ver o mundo.
E que símbolo melhor temos destes tempos de perífrase  do que esse PSD enquanto  partido de “não esquerda” que também “não quer o rótulo da direita”? Um partido que opta definir-se não pelo que é mas sim pelo que não é, não só não existe ideologicamente falando, como abdica de ter outra proposta para a governação que não seja a de fazer, no seu dizer melhorzinho, aquilo que os outros – os donos das palavras  – defendem sem eufemismos nem perífrases.
Em política e na vida a gramática conta. E  a erradicação da perífrase é um programa político urgente.
COMENTÁRIOS:     
Tiago Manso: Genial! Obrigado.
Rita Salgado: Genial HM!! junto mais uma sugestão: os marginais que andam a arrumar carros na rua passam a ser TEUS - Técnicos de Estacionamento Urbano
manel buiça: Crónica admirável sobre alguns dos significados e real substância ideológico-politica desta novilingua, parida nestes dementes tempos de açucaradas, moles e cobardes resignacões. 
Paulo Monteiro: Os Lares da Terceira Idade passaram a ser designados ERPI - Estrutura Residencial Para Idosos.
Jorge Martins: Como sempre, certeira a pôr a descoberto o ridículo da farsa linguística a que chamam politicamente correcto.
Maria José Melo: Concordo plenamente! Vivemos cheios de MEDO... para não “chocar”  A, B, C... Y... Z, usamos metáforas, eufemismos... ai, o politicamente correcto, os direitos das minorias!!! Que hipocrisia! Já agora, um “update”: os funcionários (e funcionárias, claro...) das escolas agora são denominados “ Assistentes operacionais “. Não sei o que é que eles operam, que operações é que existem na Escola... Isto é estapafúrdio!
José Ramos: "On ne prend les mots qu'avec des gants: à 'menstruel' on préfère 'périodique'"
Em 1956, data de "Poète... vos papiers!", de Léo Ferré, já começava a ser assim, mas não imaginávamos as loucuras totalitário-lexicais que por aí viriam. Nem, em Portugal, sonhávamos que vivíamos então numa libertinagem de linguagem salazarista, pese embora o peso das botas do homem. Deram-me para ler O Primo Basílio aos 13 anos. Soube, neste mesmo jornal, que censuraram três versos à Ode Triunfal.
Liberal Impenitente >José Ramos: Mas não é delicioso que o chumbo de um aluno tenha passado a ser uma "retenção"?! Note-se que esse é um processo suave, nada de exageros! Primeiro o aluno passou a ser reprovado, mas como isso era demasiado violento para o mundo edulcorado dos burguesinhos, aparece então o providencial "retido"! Que insondáveis capacidades deve ter um cérebro que propõe a "retenção" do aluno! Como ele deve ficar feliz ao ser retido, em vez de chumbar! Dantes tinha que dizer à família e aos amigos que tinha chumbado, e todos (?) compreendiam a sua infelicidade. Mas agora, ao dizer que foi retido, é duvidoso que possa sequer recolher alguma empatia. É assim como ser retido no tráfego, uma minudência... E prontos, acabou-se o trauma da criança, e cada vez ela estará mais apta a enfrentar a sua vida de facilidades e felicidades futuras. Tal como o seu país, que já não faz bancarrotas, faz pedidos de assistência internacional.
Eurico Monteiro: Saborosíssimo! Com uma riqueza de exemplos muito oportunos e significativos, em seus conceitos escolhidos a dedo, o artigo tem sabor de uma caldeirada bem feita, rica de tempero genuíno, para arrumar de vez com essa gente que teima em ser dogmatícamente políticos correctos. As evasivas os vazios a que se remetem hoje os que falam e escrevem na mídia faz lembrar pinturas que o sol de tal maneira queimou que perderam o colorido. Tem-se mais ou menos ideia da cor primitiva, mas às vezes duvidamos e, com tudo, esbatido, ficamos sem interesse pelo que dizem, escrevem ou agem. E a seta para o PSD veio a calhar como a mão na luva. É o partido programado para ser descolorido, nem rosa, nem vermelho, muito antes pelo contrário cinzentinho, cheio de meio de ser qualquer coisa que preste. Acho que faz parte da peça, para o PS ganhar. Tudo combinadinho. Parabéns, D. Helena. Sempre faço o possível para lhe dar ânimo, pois a senhora não tem nada de descolorida. Tem mesmo sangue na guelra.
Rui Kissol: GEORGE ORWELL  : ~  "O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade." ~ "Enxergar o que está na frente do nariz exige um esforço constante" ~ "Cada geração imagina a si própria como mais inteligente do que aquela que passou antes dela e mais sábia do que a que vem após ela." ~ “A linguagem política dissimula para fazer as mentiras soarem verdadeiras e para dar aparência consistente ao puro vento.” •   "George Orwell certa vez disse que algumas ideias são tão insensatas que somente um intelectual poderia acreditar nelas.", Thomas Sowell.

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