segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Furor criativo, furor destrutivo




Os comentadores da crónica de Rui Tavares, põem o dedo na ferida, apontando o que se pode considerar de “ingenuidade” de Rui Tavares, na sua tentativa utópica de advertir contra a “diarreia” imparável que leva a Humanidade continuamente à próxima guerra. O certo é que se vive permanentemente em guerra, o longo comentário de José Manuel Martins - julgo que o correspondente a «professor Universitário na Universidade de Évora», (segundo a informação mediática) - de grande qualidade informativa, embora faseada, aponta bem, com apoio filosófico e ironia de mistura, a dimensão de tal ingenuidade ou utopia, comprovada pelos outros dois comentadores, igualmente cépticos na questão anti belicista. Realmente, basta reportarmo-nos aos primórdios da Bíblia, para sabermos que a guerra começou logo a partir de um simples direito de primogenitura entre os filhos de Adão e Eva, e nunca mais escapámos, o próprio Jeová se encarregando de distribuir os castigos e as benesses, segundo narrativas de frequente violência, e maior ou menor dimensão trágica, que a Bíblia fornece, sendo que da História verdadeira do Homem, nem se fala, os castelos permanecendo ainda como testemunhos da violência e ambição que regeram o Homem do passado, as pinturas ou as fotos os testemunhos do presente próximo e actual. Além dos campos de concentração, embora hoje transformados, que nos cobrem de horror. Guerra ao nível mundial, só as do século passado, porque nos vitimou a nós, cidadãos de um mundo de valores e de máximas que nos dizem respeito, como ocidentais evoluídos. Mas hoje em dia abstemo-nos de contar das monstruosidades que cobrem o mundo inteiro, só nos interessando o que nos pode cair em cima, civilizados que somos, a merecer o escape destinado aos eleitos. Realmente, o mundo inteiro vive em guerra, e cruéis são as suas manifestações, cujas referências não nos são poupadas, nem mesmo na literatura. Mas por enquanto vamos escapando a um envolvimento geral. Rui Tavares refere-se, é certo, a uma guerra de dimensão universal, que leve à destruição da própria Terra. Com efeito, vivemos no terror do fim, pela sorte dos nossos descendentes, e de tudo o que de bom existe, sob o céu azul, o que justifica a tentativa angustiosa de Rui Tavares, de apelo à sensatez dos homens.
OPINIÃO: Eles não eram mais estúpidos do que nós
Temos de viver balizados por aquilo a que chamaram “optimismo trágico”: extrair sentido do pior do nosso passado para irmos a tempo de salvar o futuro.
  PÚBLICO, 18 de Janeiro de 2019
O filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger tem uma expressão de que gosto muito: diz ele que na actual situação em que a humanidade se encontra é necessário “termos a imaginação do pós-guerra, antes de haver guerra”.
Quer ele com isso relembrar que momentos como o do pós-II Guerra Mundial trouxeram consigo um grande furor criativo: nos meros cinco anos que passaram depois do fim da II.ª Guerra Mundial nasceram as Nações Unidas como organização política internacional (as Nações Unidas já eram, antes, a aliança militar que venceu a guerra); foi redigida e proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda que apenas como documento moral; nasceram convenções regionais de direitos humanos, essas sim com tribunais próprios e mecanismos de implementação (a Inter-americana, primeiro, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, depois); no nosso continente nasceu o Conselho da Europa e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que viria a ser a União Europeia.
Como é evidente, se fôssemos agora tentar reinventar tudo isto, os compromissos a que os nossos políticos actuais chegariam ficariam certamente muito aquém daqueles que foram logrados no final dos anos 1940. A destruição que a guerra trouxera aguçara as mentes; todos sabiam aquilo que estava em jogo; todos aliás, temiam uma nova Guerra Mundial nos dez anos seguintes ou assim (e tiveram-na, mas em modo Guerra Fria).
Por isso aquela geração de homens e mulheres já bastante velhos — Eleanor Roosevelt, Churchill, Adenauer, Monnet, PC Chang, Charles Malik —, no fundo os sobreviventes da I e da II guerras mundiais, correu como louca para cumprir com o máximo possível dos sonhos de paz perpétua que desde os filósofos do Renascimento e do Iluminismo tinham sido sonhados. Pelo fracasso pagar-se-ia um preço altíssimo; em consequência, não se podia fracassar.
A segunda parte da frase de Mangabeira Unger diz-nos que hoje é preciso ter aquele tipo de imaginação audaz que normalmente só aparece depois das guerras, sim — mas que é preciso tê-la antes de haver guerra. Porque os edifícios dos direitos humanos e do sistema internacional precisam de ser reparados ou mesmo refundados, e adaptados à época das alterações climáticas, da inteligência artificial, e da financeirização globalizada. Mas também porque não nos podemos dar ao luxo de arriscar uma guerra. Aliás, é difícil imaginar sequer o que seria uma guerra de todos contra todos no atual estado tecnológico da humanidade. Aí está a razão suprema para não a arriscarmos.
A pergunta decisiva é: se a imaginação criativa de que demos provas depois da guerra só existe depois da guerra, será sequer possível convocá-la para um momento em que as imaginações não estão aguçadas, mas confusas, em que as vontades não estão unidas, mas dispersas, em que o sentido de progresso moral da humanidade não é intenso, mas difuso? Ou estará para lá das nossas capacidades ter a imaginação do pós-guerra não só depois da guerra, mas ainda antes, talvez para evitar a guerra?
Essa é uma daquelas perguntas, diria Kant, que não é para responder adivinhando. É para responder fazendo. Se desistirmos, estaremos a condenar o nosso futuro. Se persistirmos, estaremos talvez a salvar-nos.
Há exactamente cem anos, no dia 18 de janeiro de 1919, umas quantas centenas de homens chegaram a Paris para negociar a paz após a I Guerra Mundial (sim, eram só homens; uma Liga Internacional de Mulheres reuniu-se separadamente a partir de maio de 1919 em Zurique). Vinham investidos da tal imaginação do pós-guerra de que fala Mangabeira Unger. Inventaram a Sociedade das Nações, reorganizaram a Europa e o Médio Oriente segundo o princípio da autodeterminação e estabeleceram as bases de onde viriam a nascer uma série de tratados e convenções importantes nos domínios do direito da guerra ou da protecção de refugiados. Não foi coisa pouca. Mas aquilo em que falharam foi mais do que aquilo em que acertaram.
Os homens da Conferência de Paris não estavam só investidos da tal imaginação criadora; estavam dominados também — talvez mais ainda — pelo espírito da cupidez e da vingança. A França queria vingar-se da Alemanha e impor-lhe as condições de paz mais punitivas possível. Na Grã-Bretanha prometia-se também “espremer a Alemanha como um limão, até guinchar”. Os EUA quiseram a Sociedade das Nações, mas nunca lá puseram os pés.
Os mandatos internacionais criados para espartilhar as colónias dos impérios derrotados mais não eram do que o velho colonialismo com um novo nome. O nacionalismo elevado a princípio organizativo foi aplicado ao sabor das conveniências — e, de qualquer forma, não tinha como ser aplicado consistentemente em regiões onde todas as nacionalidades estavam misturadas e onde muita gente não se tinha dedicado a pensar-se “nacionalmente”. Alguns tiveram direito a uma nacionalidade. Outros — os curdos, os arménios — foram traídos. Passadas duas décadas, o mundo estava de novo em guerra. Houve imaginação, mas não chegou. Foi por isso que o falhanço dos homens de há cem anos inspirou os homens e mulheres de há setenta a não arriscarem falhar.
Hoje arriscamos de novo falhar. E quando penso nisso vem-me sempre à memória a frase do meu professor António Hespanha: “Eles não eram mais estúpidos do que nós.” Ou seja, podemos falhar onde eles falharam. Por outro lado, nós somos tão espertos como aqueles que acertaram. Temos de viver baptizados por aquilo a que chamaram “optimismo trágico”: extrair sentido do pior do nosso passado para irmos a tempo de salvar o futuro.
COMENTÁRIOS:
José Manuel Martins,  évora 19.01.2019 06:19: entre a cenoura e o chicote exactamente, é onde o diabo escolhe situar-se. Sim, um pessimismo de sobrevivência (é a minha maneira de ver meio vazia a meia-garrafa do 'optimismo trágico'), que ensina, com Nietzsche, que 'as coisas boas foram um dia coisas más', e que o motor secreto da paz perpétua é, perpetuamente - a guerra. Si vis pacem para bellum é ainda outra maneira de inventar retrospectivamente esta pólvora pífia e de formular o mesmíssimo raciocínio: pensa na guerra e, depois, inventa a paz q se lhe seguiria, se guerra houvera: lógica da vacina (lembram-se das altas esperanças de Kissinger numa revolução cunhalista-soviética na ponta da europa ocidental, para dar o exemplo?). Deus e o céu têm o seu ‘tremendum’ na espada de Dâmocles, o inferno: e, a paz, na guerra, suspensa agora
José Manuel Martins, évora 19.01.2019 06:20: (2) directamente na cabeça da imaginação política desate ‘filósofo’ (?) brasileiro. Sartre, aproximadamente o idiota histórico-político mais inteligente de sempre, deveria ter atentado no citado Nietzsche, na suspeição freudiana, no gene egoísta: o bem é apenas a esquiva ou a máscara do mal, com o qual efectua uma troca vantajosa. O génio da ontologia fenomenológica converteu-se à patranha revolucionária porque observou que os homens ‘se revelavam’ colectivamente de uma abnegação altruísta quase santificada… ali, ali mesmo – nos campos alemães de prisioneiros de guerra! Tirando que poderia extrair p. ex. dos Sonderkommandos de campos bem outros a conclusão oposta – homo homini lupus –, não reparou que esse humanismo postiço de pacotilha supunha precisamente… o campo de concentração.
José Manuel Martins, évora 19.01.2019 06:30: (3) Confundiu a cenoura com o chicote, como o diabo gosta. Imaginou que podia ter o bem menos o mal, esse mal que todos os dias a todo o derredor do primeiro o acarinhava, cuidava, regava, fertilizava, encorajava e inspirava, manu militari. Não percebeu que a bondade humana requer desesperadamente o mal (por isso se deu tão bem com o totalitarismo soviético, do qual ia receber ordens de coronéis a Moscovo), ou ainda, no dito popular, ‘se queres aprender a rezar, entra no mar’ (o ‘filósofo’ brasileiro confia que basta imaginar entrar: era como a mim me bastar imaginar a Cicciolina, é o bastas). Por isso a imaginação política do tiririca brasileiro pertence à mesma genealogia do blablá ornamental: pelo contrário, só se pode imaginar o pós-guerra com metade da família morta há menos de três
 José Manuel Martins, évora 19.01.2019 06:31: (4) anos. O resto é História: tempo ficcional inofensivo. É um bocadinho como o argumento ontológico: demonstra a existência de deus como raciocínio – e nada mais do que como raciocínio. O raciocínio é ao mesmo tempo absolutamente correcto e correcto apenas como, em absoluto, raciocínio. E é por isso que podemos imaginar, com Sartre, a sociedade perfeita, com o padre, o reino dos céus, com santo Anselmo, que deus não pode não existir, com Kant, que a tempestade sublime nos aniquilaria se ao menos conseguisse chegar a molhar-nos a biqueira dos sapatos, com o brasileiro, que estamos no pós-guerra, devastados, a tentar reconstruir o mundo, e que não precisamos de nenhuma guerra efectiva (nem de nenhum deus existente, nem dos campos de concentração, etc.) para o imaginar.
José Manuel Martins, évora 19.01.2019 07:15: (5) Pobre tavares, ainda não viu quantas vezes e em quantas variantes categoriais e qualitativas o mesmo erro estúpido e constitutivo do Sísifo obstinado já foi repetido desde o cro-magnon até hoje pelos salvadores. São Hitler foi o padroeiro de monet e adenauer, e as bombas atómicas americanas, explodidas, e as russas, prometidas, essas velas acesas, ajudaram imenso à ladainha infernal das boas intenções da ‘geração de 45’ (Loach), realizadas com afinco a fingir que até eram mesmo verdade – e, dizem alguns espíritos insalubres, tudo isso graças também ainda ao último fôlego do assalto imperialista às reservas laborais e materiais do terceiro mundo. De maneira que estes minigolfes ‘de opinião’ levam onde a doxa sempre levou: à beatitude alienada. Tentemos não sermos mais estúpidos do q nós
Raquel Azulay, 18.01.2019 21:41: Roosevelt, Churchill, Adenauer, De Gaulle, ben-gurion, golda meir, yitzhak rabin são alguns dos meus preferidos (líderes eleitos, porque a Rainha-Mom era grande Senhora, tal como Elizabeth IIl. Sabia, por ex, que ela, Rainha Mom, recusou-se a abandonar Buckingham enquanto Londres estava a ser bombardeada. É preciso coragem! Aparentemente disse: eu não abandono o meu povo! mas devo confessar que tenho um fraquinho por FDR e pelo Winston, ambos doentes, o Winston com o seu "black dog" (depressão) e o FDR com a sua paralisia. Bons amigos, até ao fim. Sonhos de paz perpétua????? Depois da Segunda, começou logo a Guerra Fria, q de fria nada teve. Depois da Fria,....ó Rui, seja realista, a história do homem confunde-se com a história da guerra....estamos e sempre estivemos em guerra.
Manuel Caetano, Faro 18.01.2019 09:10: Em síntese: quando a necessidade e a criatividade dão as mãos os milagres e os prodígios acontecem. Sabemos que individualmente, como comunidade ou como espécie somos capazes do pior... e do melhor. Sabemos também que não existe (nem nunca existirá) ideologia ou ideal que nos proteja do lado negro da condição humana (de nós mesmos), como a História (a dos vencedores e a dos vencidos) evidencia. Somos fruto das circunstâncias e da necessidade (como o próprio Universo e tudo o que nele existe) mas somos, também, "animais que sonham" e temos essa capacidade maravilhosa da compaixão que faz de Nós seres únicos. Enquanto assim for nada estará irremediavelmente perdido e tudo será possível.



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