segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Cá também



Realmente, o comportamento de Trump – descrito por Teresa de Sousa, na forma séria da sua disciplina moral e mental - pode causar grandes convulsões nacionais, que são as únicas descritas, na originalidade de um comportamento presidencial perfeitamente apalhaçado. Resta o seu comportamento internacional, que também dá pano para mangas, talvez, no capítulo das convulsões no mundo.
Mas a crónica de António Barreto, figura ilustre que reaparece, desta vez no Público, com grande satisfação nossa, é uma súmula perfeita dos nossos desmandos comportamentais, ao nível do Parlamento, comportamento vexatório de falsificação e burla, que nos põe de rastos, e que nos define como povo sem preceitos nem regras, embora não se possa nunca generalizar, não seria justo para os cumpridores dos preceitos básicos, de “cumprir com lealdade…”.
OPINIÃO
Trump não é uma piada
Trump não é uma piada, como fazem crer, muitas vezes, os jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente indiferente à inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente que elegeram.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2019
1. Nos dias que correm, começa a ser perturbador passar algum tempo seguido diante das televisões por cabo americanas. Os canais de notícias, sejam da CNN ou da MSNBC ou da FOX, têm apenas um tema. Nem vale a pena dizer qual é. O mundo fica de fora, ou melhor, o mundo fica de fora desde que o Presidente não se lembre de interferir com ele, o que também não é raro, dada a omnipresença dos EUA. Donald Trump, é bom acrescentar, fornece hora a hora, minuto a minuto, matéria para manter esta corrente ininterrupta de notícias que não são bem notícias. Ou, pelo menos, que são apresentadas de uma forma que foge ao velho conceito jornalístico de notícia. Os apresentadores-comentadores-animadores dos sucessivos programas das televisões por cabo – as estrelas dos respectivos canais – já não se coíbem de iniciar as notícias sobre o Presidente com um sorriso irónico nos lábios, antecipando mais um grande espectáculo. Vejam lá o que ele acaba de dizer! Normalmente, Trump faz jus a esta forma original de apresentação. Nos últimos dias, o célebre muro ao longo de toda a fronteira com o México e o consequente shutdown parcial da administração federal (que atinge 800 mil funcionários públicos e que começa a atingir fortemente os mais vulneráveis e indirectamente os principais serviços) são praticamente a única notícia que merece referência constante. O que Trump-candidato disse sobre o muro. O que Trump-Presidente disse sobre o muro. O que diz hoje e dirá provavelmente amanhã sobre o muro. Com um novo condimento saído directamente da mudança de maioria na Câmara de Representantes do Congresso, que passou para os democratas, que deixou de assinar de cruz a sua vontade ou de garantir a sua imunidade aos escândalos que o envolvem.
2. Mas voltemos às notícias. Ou melhor, à ausência delas. O apresentador sorri, anuncia a “última” birra ou o último tweet de Trump, como quem diz: “Vejam só, o tipo ultrapassa-se a si próprio” ou “pensavam que já tinham visto tudo?”. Os comentadores convidados, analistas de vários órgãos de comunicação social, académicos ou membros de anteriores administrações, dão a sua própria versão da última ideia peregrina do Presidente ou do seu comportamento muito pouco (ou mesmo nada) presidenciável. São poucas as vozes de quem se proponha defendê-lo, à excepção dos membros do Partido Republicano ou de um ou outro comentador. Trump tem dificuldade em encontrar gente para preencher os quadros de pessoal da Casa Branca ou até o chefe do Pentágono. É natural que a CNN não tenha à sua disposição um leque vasto de gente disposta a fundamentar as decisões deste Presidente, mas acaba por tornar-se extremamente redutora esta forma de informar e pode representar, ela própria, um enorme risco.
3. Claro que esta conversão das notícias em opiniões e, sobretudo, em piadas, não atinge da mesma maneira os grandes jornais de referência que, de um modo geral, continuam tão bons como sempre foram. Mas há apesar de tudo uma tendência inquietante para a transformação das suas páginas de opinião numa pauta de uma nota só. Apenas o exemplo do Washington Post de sábado: “Trump is the president of the Republican base – not the country”; “The country needs a Republican to challenge Trump in 2020”; “Sister Norma wanted to show Trump what it is like on the border. He didn’t care to listen”; “The Wall is a testament to Trump’s toxic narcissism”. É verdade que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e de cultura política percebe que ele não foi talhado para ocupar o lugar que lhe dá um poder enorme sobre o mundo, ainda mais do que um poder enorme sobre a América. A vitória dos Democratas na Câmara, a saída do último “adulto na sala” (como se diz por lá sobre a demissão do secretário da Defesa James Mattis), a queda nas sondagens (mesmo assim, mantém 43 por cento de aprovação), a aproximação da próxima corrida presidencial (as “primárias” estarão lançadas no Verão deste ano) tornaram-no uma figura ainda mais solitária, que facilmente imaginamos a percorrer as salas da Casa Branca vociferando contra todos os que o querem impedir de construir o “belíssimo muro” que prometeu aos americanos em 2016, a ter de encarar Nancy Pelosi, o rosto da nova realidade que tem de enfrentar no Congresso, ou ouvir as jovens caras novas da Câmara dos Representantes exigirem sem pedir autorização a ninguém o seu “impeachment” ou, sobretudo, o cerco judicial a apertar-se à sua volta, por via dos seus mais próximos colaboradores na campanha de 2016 (alguns já presos) e com um Congresso disposto a obrigá-lo finalmente a responder às suas perguntas, sejam elas sobre a declaração de rendimentos que não entrega, ou eventuais tentativas de obstrução da justiça ou de conluio com uma potência estrangeira para ganhar as eleições. Ainda pode contar com um Senado que lhe é favorável e com um Partido Republicano que manteve refém durante os dois primeiros anos de mandato, mas que começa a desacreditar na sua invencibilidade e a fazer contas às próximas eleições para os lugares de senadores que vão estar em disputa em 2020. Mesmo que continue a não haver qualquer sinal de uma alternativa à sua recandidatura ou que a sua base eleitoral que se mantém fiel continue a ser vasta o suficiente para lhe garantir uma plataforma de lançamento para o segundo mandato, que provavelmente nenhum outro candidato republicano teria.
4. O  problema é que Trump não é uma piada, como fazem crer, muitas vezes, os jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente indiferente à inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente que elegeram. Muito mais importante ainda, Trump não é um fait-divers, um fenómeno passageiro perante o qual nos baste fechar os olhos e esperar que passe. É, pelo contrário, a expressão mais ou menos caricatural de uma forte corrente de opinião entre os americanos que vê nos imigrantes um perigo, no mundo uma despesa supérflua, nas tropas na Síria uma inutilidade ou nas institucionais multilaterais uma perda de tempo e de dinheiro. E, acima de tudo, que está farta de uma certa elite “costeira” geralmente sem problemas na vida, que vêem a uma distância incomensurável dos seus próprios problemas, que não lhes liga nem os compreende e que tem entre os seus mais lídimos representantes os jornalistas das grandes cadeias de informação e da grande imprensa de referência. Fazer dele uma piada é justamente abdicar de debater aquilo que ele representa. Esperar que passe, não resolver nenhum dos problemas que levaram à sua eleição nem aqueles que ele próprio criou desde que foi eleito. Mas mais ainda. Este clima de polarização mediática acaba por servir às mil maravilhas os seus objectivos eleitorais. O muro? Que disparate. As próprias sondagens dizem que uma maioria de americanos o acha desnecessário. Mas a retórica contra os imigrantes, descritos como terroristas, ladrões, drogados, criminosos de toda a espécie, que vem associada ao muro, essa não deixou de ser popular entre muita gente. Trump diz que entraram 6 mil terroristas pela fronteira com o México. O FBI diz que foram só meia dúzia. Trump diz que falou com os seus antecessores na Casa Branca e que todos eles admitiram a necessidade do muro. Nenhum falou com ele sobre o assunto. Trump diz que os Democratas querem um muro desde que seja de metal. Não querem. Chocante? Com certeza. O problema é que, como escreveu já há algum tempo a revista The Atlantic, “os media não perceberem o fenómeno Trump na sua real dimensão porque o levaram à letra mas não o levaram a sério, enquanto os seus apoiantes o levaram a sério, ainda que não literalmente.”

UM COMENTÁRIO
Eme Rod, Bruxelles 13.01.2019 : Obviamente, em bom inglês, Trump “is a Big joke”, mas “a very bad joke”. Numa democracia normal ele já teria sido “impeached” e provavelmente estaria preso, por todas as irregularidades que tem cometido (nem falemos nas mentiras, porque verdades diz poucas). Mas essa tal suposta base de apoio continuará a ser assim tão grande? A parte aqueles de extrema direita e populistas e supremacistas e outros não constituem nenhuma maioria, longe disso. Mas, todos aqueles deserdados, esquecidos, anti-sistema, que acreditaram que Trump iria fazer alguma coisa por eles e para mudar as coisas, continuarão a apoiá-lo? Duvido. Afinal, as disparidades salariais pioraram, os mais ricos tornaram-se mais ricos e os salários mal pagos continuam mal pagos... a precariedade mantém-se. Que fez Trump? Nada.

II - OPINIÃO
Em defesa do Parlamento
O Parlamento português parece cada vez mais uma fortaleza de defesa dos deputados e dos seus privilégios. Com inusitada frequência surgem no espaço público notícias sobre irregularidades e vilanagem. E logo se ouve um deputado declarar que tem “a consciência tranquila”, cliché cada vez mais utilizado pelos corruptos.
ANTÓNIO BARRETO,
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2019
É a instituição que melhor representa a democracia. Com muitos ou poucos partidos, com ou sem maiorias absolutas, o Parlamento é condição de democracia. Não há democracia sem Parlamento. Ainda não se inventou melhor. É talvez a instituição que melhor defende a democracia. Mas do Parlamento também podem vir perigos. Um Parlamento que não se dá ao respeito é letal para a democracia.
Os partidos tratam-no com se fossem seus patrões, proprietários ou cônjuges com direito a assédio. Fazem o que querem. Nem admitem que os cidadãos se metam com eles. E assim danificam o Parlamento. Há hoje casos em que o Parlamento estraga a democracia, como na Venezuela, no Brasil ou na Hungria. Iniciativas antidemocráticas vêm liquidando os respectivos parlamentos há vários anos. Quer dizer, estes podem ser as primeiras vítimas deles próprios. É verdade que o Parlamento é a instituição que melhor representa o povo e que confere mais legitimidade aos governos. Mas nem sempre é a instituição que melhor defende o povo.
Com duas eleições, este formidável ano de 2019 poderia oferecer a oportunidade para uma reflexão aprofundada, sem preconceitos, sobre o papel dos parlamentos nacionais. É bem provável que o futuro da democracia dependa em parte do seu regresso a uma posição central, deixando de ser a instituição cada vez mais subsidiária que é actualmente. Melhor seria, por exemplo, fazer com que os parlamentos nacionais desempenhassem funções essenciais no plano europeu. Ou até que substituíssem o Parlamento europeu. Com um Parlamento de Babel e parlamentos nacionais despidos de soberania e despojados de poderes reais, a democracia europeia ficará pobre e sem sentido.
Entre os parlamentos nacionais raquíticos e o parlamento europeu obeso, vai-se criando um espaço vazio, rapidamente preenchido. Por quem? Pelos movimentos populistas, grupos de pressão, empresas multinacionais, vanguardas políticas, associações criminosas, organizações de traficantes e toda a espécie de confrarias financeiras.
O Parlamento português parece cada vez mais uma fortaleza de defesa dos deputados e dos seus privilégios. Com inusitada frequência surgem no espaço público notícias sobre irregularidades e vilanagem. E logo se ouve um deputado declarar que tem “a consciência tranquila”, cliché cada vez mais utilizado pelos corruptos. Ou o seu presidente garantir que não tem lições a receber de ninguém e que não “compactua” com as pessoas que criticam o Parlamento.
No Parlamento, nem toda a irregularidade é corrupção. Há formas de roubo que o não são. Há anormalidades que também não são. É o local de eleição para as artimanhas que, sendo vigarices, não são corrupção. As faltas dos deputadosAs palavras-passe que se fornecem aos amigos. As assinaturas feitas por procuração. As inscrições em ficheiros informáticos. As falsas declarações de deslocações e estadias. As ajudas de custo indevidas. As viagens em grupo, mas contadas como individuais. Os endereços de empréstimo. As declarações de património “marteladas”. As contas de familiares maquilhadas. O “dinheiro vivo” que não deixa rastos. Este universo de trapalhice não é corrupção. É mais desvio e mentira.
Alguns deputados ilustram-se com declarações de fidelidade moral, outros ficam escandalizados quando alguém denuncia os trafulhas (indignados com quem denuncia, não necessariamente com o culpado…). Outros ainda, mais solenes, queixam-se das “campanhas antidemocráticas”! Como é cada vez mais evidente e se tem descoberto, os autores das piores campanhas contra o Parlamento são os deputados. Pelo que fazem. Pelo que não dizem. Pelo que deixam correr, sem apurar responsabilidades.
A democracia tem geografia (círculos eleitorais) e indivíduos (uma pessoa, um voto). Com este sistema proporcional e sem responsabilidades pessoais, com disciplina de voto e com os votos colectivos (que se podem observar todos os dias na televisão), o que vigora é uma democracia de anónimos e de responsabilidade limitada, sem comunidades e nem individualidade. Nenhum deputado é pessoalmente responsável. Nenhum eleitor pode pedir contas ao “seu” deputado. Nenhum deputado deve a sua eleição a um eleitorado real. Tudo o que um deputado é deve-o ao partido.
Assim se vai o Parlamento debilitando. Brevemente, sem liberdade de voto, bastará um deputado de cada grupo votar por todos. Os hipotéticos rebeldes ficam calados ou são convidados a sair da sala. O actual modo de votação por colectivo, sem nome nem contagem, é já há muito o anúncio deste admirável Parlamento novo, em que qualquer deputado é substituído por doença, casamento, férias, emprego, lazer, negócios ou interesse do partido
As aparentes boas intenções dos responsáveis parlamentares são inúteis. Querem curar com adesivos os pés da cadeira partida. Toda a lógica actual dos grupos, da disciplina de voto, das listas partidárias e das substituições sem eleição é a mesma dos sistemas de faltas, de ajudas de custo, de transmissão de passwords, de votos por barriga de aluguer e de marcação de presenças por ausentes. O que parece ser uma falta grave para a opinião pública é praticado há décadas por muitos membros dos grupos parlamentares. Não todos. Mas muitos.
O método de votar por procuração e “tirar a falta” tem quarenta anos. Antes dos computadores, muitos deputados tinham nas suas carteiras fac-simile de assinaturas de amigos, em geral da província, por quem rubricavam. Viam-se alguns mais descarados tirar a agenda do bolso para copiar a rubrica dos faltosos. As sextas-feiras eram dias particularmente cheios de trabalho para os procuradores. Nesse dia, uma assinatura valia por três, pois incluía o fim-de-semana, a ajuda de custo e a deslocação. As palavras-passe não fizeram mais do que modernizar a tramóia.
Votar em colectivo, com disciplina, não é muito diferente de tirar a falta. O deputado pode estar lá dentro, em comissão, no seu gabinete, no Chiado, na Avenida dos Aliados ou em Tavira! Qual é a diferença, neste mundo informatizado?
Há três anos, foi criada uma Comissão especializada para tratar destes assuntos relativos à fraude parlamentar. Ao fim de três anos e dezenas de reuniões, não há conclusões! Típico! Em três anos, os deputados não conseguiram chegar a um acordo sobre o Código de Ética, as faltas, as incompatibilidades, os deveres de lealdade, de cumprimento de deveres e de declaração de despesas… Parece que nem o Parlamento, nem os partidos, conseguem estimular a honestidade de todos os deputados!

UM COMENTÁRIO
Manuel CaetanoFaro 13.01.2019 Este é um tema que permite detectar facilmente os democratas e os não-democratas. Os democratas criticam (e não toleram) os deputados com rosto e nome que sucumbem à corrupção e aos arranjinhos mas são intransigentes na defesa da instituição parlamentar porque sabem que sem parlamento não há democracia. Os não-democratas (e os antidemocratas) generalizam atribuindo estas máculas a todos os deputados para (com mais ou menos consciência) poderem atacar a instituição parlamentar e, por essa via, a democracia representativa. É urgente separar o trigo do joio nos partidos e neste debate.



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