Realmente, o comportamento de
Trump – descrito por Teresa de Sousa, na forma séria da
sua disciplina moral e mental - pode causar grandes convulsões nacionais, que
são as únicas descritas, na originalidade de um comportamento presidencial perfeitamente
apalhaçado. Resta o seu comportamento internacional, que também dá pano para
mangas, talvez, no capítulo das convulsões no mundo.
Mas a crónica de António
Barreto, figura ilustre que reaparece, desta vez no Público,
com grande satisfação nossa, é uma súmula perfeita dos nossos desmandos
comportamentais, ao nível do Parlamento,
comportamento vexatório de falsificação e burla, que nos põe de rastos, e que
nos define como povo sem preceitos nem regras, embora não se possa nunca
generalizar, não seria justo para os cumpridores dos preceitos básicos, de “cumprir com lealdade…”.
OPINIÃO
Trump não é uma piada
Trump não é uma piada, como fazem crer,
muitas vezes, os jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente
indiferente à inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente
que elegeram.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2019
1. Nos dias que correm, começa a ser
perturbador passar algum tempo seguido diante das televisões por cabo
americanas. Os canais de notícias, sejam da CNN ou da MSNBC ou da FOX, têm apenas um tema. Nem vale a
pena dizer qual é. O mundo fica de fora, ou melhor, o mundo fica de fora
desde que o Presidente não se lembre de interferir com ele, o que também não é
raro, dada a omnipresença dos EUA. Donald
Trump, é bom acrescentar, fornece hora a hora, minuto a minuto, matéria para
manter esta corrente ininterrupta de notícias que não são bem notícias. Ou,
pelo menos, que são apresentadas de uma forma que foge ao velho conceito
jornalístico de notícia. Os apresentadores-comentadores-animadores dos
sucessivos programas das televisões por cabo – as estrelas dos respectivos
canais – já não se coíbem de iniciar as notícias sobre o Presidente com um
sorriso irónico nos lábios, antecipando mais um grande espectáculo. Vejam
lá o que ele acaba de dizer! Normalmente, Trump faz jus a esta forma
original de apresentação. Nos últimos dias, o célebre muro ao longo de toda a fronteira com o México e o
consequente shutdown parcial da administração federal (que atinge 800
mil funcionários públicos e que começa a atingir fortemente os mais vulneráveis
e indirectamente os principais serviços) são praticamente a única notícia
que merece referência constante. O que Trump-candidato disse sobre o
muro. O que Trump-Presidente disse sobre o muro. O que diz hoje e dirá
provavelmente amanhã sobre o muro. Com um novo condimento saído directamente da
mudança de maioria na Câmara de Representantes do Congresso, que passou para os
democratas, que deixou de assinar de cruz a sua vontade ou de garantir a sua
imunidade aos escândalos que o envolvem.
2. Mas voltemos às notícias. Ou melhor, à
ausência delas. O apresentador sorri, anuncia a “última” birra ou o
último tweet de
Trump, como quem diz: “Vejam só, o
tipo ultrapassa-se a si próprio” ou
“pensavam que já tinham visto tudo?”. Os comentadores convidados,
analistas de vários órgãos de comunicação social, académicos ou membros de
anteriores administrações, dão a sua própria versão da última ideia peregrina
do Presidente ou do seu comportamento muito pouco (ou mesmo nada)
presidenciável. São poucas as vozes de quem se proponha defendê-lo, à
excepção dos membros do Partido Republicano ou de um ou outro comentador. Trump
tem dificuldade em encontrar gente para preencher os quadros de pessoal da Casa
Branca ou até o chefe do Pentágono. É
natural que a CNN não tenha à sua disposição um leque vasto de gente disposta a
fundamentar as decisões deste Presidente, mas acaba por tornar-se extremamente
redutora esta forma de informar e pode representar, ela própria, um enorme
risco.
3. Claro que esta conversão das notícias
em opiniões e, sobretudo, em piadas, não atinge da mesma maneira os grandes
jornais de referência que, de um modo geral, continuam tão bons como sempre
foram. Mas há apesar de tudo uma tendência inquietante para a transformação das
suas páginas de opinião numa pauta de uma nota só. Apenas o
exemplo do Washington
Post de sábado: “Trump is the president of the
Republican base – not the country”; “The country needs a Republican to
challenge Trump in 2020”; “Sister Norma wanted to show Trump what it is like on
the border. He didn’t care to listen”; “The Wall is a testament to Trump’s
toxic narcissism”. É verdade que qualquer pessoa com um mínimo de bom
senso e de cultura política percebe que ele não foi talhado para ocupar o lugar
que lhe dá um poder enorme sobre o mundo, ainda mais do que um poder enorme
sobre a América. A vitória dos Democratas na Câmara, a saída do último “adulto
na sala” (como se diz por lá sobre a demissão do secretário da Defesa James
Mattis), a queda nas sondagens (mesmo assim, mantém 43 por cento de aprovação),
a aproximação da próxima corrida presidencial (as “primárias” estarão lançadas
no Verão deste ano) tornaram-no uma figura ainda mais solitária, que facilmente
imaginamos a percorrer as salas da Casa Branca vociferando contra todos os que
o querem impedir de construir o “belíssimo muro” que prometeu aos americanos em
2016, a ter de encarar Nancy Pelosi, o rosto da nova realidade que tem de
enfrentar no Congresso, ou ouvir as jovens caras novas da Câmara dos
Representantes exigirem sem pedir autorização a ninguém o seu “impeachment” ou,
sobretudo, o cerco judicial a apertar-se à sua volta, por via dos seus mais
próximos colaboradores na campanha de 2016 (alguns já presos) e com um
Congresso disposto a obrigá-lo finalmente a responder às suas perguntas, sejam
elas sobre a declaração de rendimentos que não entrega, ou eventuais tentativas
de obstrução da justiça ou de conluio com uma potência estrangeira para ganhar
as eleições. Ainda pode contar com
um Senado que lhe é favorável e com um Partido Republicano que manteve refém
durante os dois primeiros anos de mandato, mas que começa a desacreditar na sua
invencibilidade e a fazer contas às próximas eleições para os lugares de
senadores que vão estar em disputa em 2020. Mesmo que continue a não
haver qualquer sinal de uma alternativa à sua recandidatura ou que a sua base
eleitoral que se mantém fiel continue a ser vasta o suficiente para lhe
garantir uma plataforma de lançamento para o segundo mandato, que provavelmente
nenhum outro candidato republicano teria.
4. O
problema é que Trump não é uma piada, como fazem crer, muitas vezes, os
jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente indiferente à
inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente que elegeram. Muito mais importante ainda, Trump não é um fait-divers, um fenómeno passageiro perante o qual nos
baste fechar os olhos e esperar que passe. É, pelo contrário, a expressão
mais ou menos caricatural de uma forte corrente de opinião entre os americanos que vê nos
imigrantes um perigo, no mundo uma despesa supérflua, nas tropas na Síria uma
inutilidade ou nas institucionais multilaterais uma perda de tempo e de
dinheiro. E, acima de tudo, que está farta de uma certa elite “costeira”
geralmente sem problemas na vida, que vêem a uma distância incomensurável dos
seus próprios problemas, que não lhes liga nem os compreende e que tem entre os
seus mais lídimos representantes os jornalistas das grandes cadeias de
informação e da grande imprensa de referência. Fazer dele uma piada é justamente abdicar de debater aquilo que ele
representa. Esperar que passe, não resolver nenhum dos problemas que
levaram à sua eleição nem aqueles que ele próprio criou desde que foi eleito.
Mas mais ainda. Este clima de
polarização mediática acaba por servir às mil maravilhas os seus objectivos
eleitorais. O muro? Que disparate. As próprias sondagens dizem que uma
maioria de americanos o acha desnecessário. Mas a retórica contra os imigrantes, descritos como terroristas,
ladrões, drogados, criminosos de toda a espécie, que vem associada ao muro,
essa não deixou de ser popular entre muita gente. Trump diz que entraram
6 mil terroristas pela fronteira com o México. O FBI diz que foram só meia
dúzia. Trump diz que falou com os
seus antecessores na Casa Branca e que todos eles admitiram a necessidade do
muro. Nenhum falou com ele sobre o assunto. Trump diz que os Democratas querem um muro desde que seja de metal. Não
querem. Chocante? Com certeza.
O problema é que, como escreveu já há algum tempo a revista The
Atlantic, “os media não perceberem o fenómeno Trump na sua real
dimensão porque o levaram à letra mas não o levaram a sério, enquanto os seus
apoiantes o levaram a sério, ainda que não literalmente.”
UM COMENTÁRIO
Eme Rod, Bruxelles 13.01.2019 : Obviamente, em bom inglês, Trump “is a Big joke”, mas
“a very bad joke”. Numa democracia normal ele já teria sido “impeached” e
provavelmente estaria preso, por todas as irregularidades que tem cometido (nem
falemos nas mentiras, porque verdades diz poucas). Mas essa tal suposta base de
apoio continuará a ser assim tão grande? A parte aqueles de extrema direita e
populistas e supremacistas e outros não constituem nenhuma maioria, longe
disso. Mas, todos aqueles deserdados, esquecidos, anti-sistema, que acreditaram
que Trump iria fazer alguma coisa por eles e para mudar as coisas, continuarão
a apoiá-lo? Duvido. Afinal, as disparidades salariais pioraram, os mais ricos
tornaram-se mais ricos e os salários mal pagos continuam mal pagos... a
precariedade mantém-se. Que fez Trump? Nada.
II - OPINIÃO
Em defesa do Parlamento
O Parlamento português parece cada vez
mais uma fortaleza de defesa dos deputados e dos seus privilégios. Com
inusitada frequência surgem no espaço público notícias sobre irregularidades e
vilanagem. E logo se ouve um deputado declarar que tem “a consciência
tranquila”, cliché cada vez mais utilizado pelos corruptos.
ANTÓNIO BARRETO,
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2019
É
a instituição que melhor representa a democracia. Com muitos ou poucos
partidos, com ou sem maiorias absolutas, o Parlamento é condição de democracia.
Não há democracia sem Parlamento. Ainda não se inventou melhor. É talvez a
instituição que melhor defende a democracia. Mas do Parlamento também podem vir
perigos. Um Parlamento que não se dá ao respeito é letal para a democracia.
Os
partidos tratam-no com se fossem seus patrões, proprietários ou cônjuges com
direito a assédio. Fazem o que querem. Nem admitem que os cidadãos se metam com
eles. E assim danificam o Parlamento. Há
hoje casos em que o Parlamento estraga a democracia, como na Venezuela, no
Brasil ou na Hungria. Iniciativas antidemocráticas vêm
liquidando os respectivos parlamentos há vários anos. Quer
dizer, estes podem ser as primeiras vítimas deles próprios. É verdade que o
Parlamento é a instituição que melhor representa o povo e que confere mais
legitimidade aos governos. Mas nem sempre é a instituição que melhor defende o
povo.
Com
duas eleições, este formidável ano de 2019 poderia oferecer a oportunidade para
uma reflexão aprofundada, sem preconceitos, sobre o papel dos parlamentos
nacionais. É bem provável que o futuro da democracia dependa em parte do seu
regresso a uma posição central, deixando de ser a instituição cada vez mais
subsidiária que é actualmente. Melhor seria, por exemplo, fazer com que os
parlamentos nacionais desempenhassem funções essenciais no plano europeu. Ou
até que substituíssem o Parlamento europeu. Com um Parlamento de Babel e
parlamentos nacionais despidos de soberania e despojados de poderes reais, a
democracia europeia ficará pobre e sem sentido.
Entre
os parlamentos nacionais raquíticos e o parlamento europeu obeso, vai-se
criando um espaço vazio, rapidamente preenchido. Por quem? Pelos movimentos
populistas, grupos de pressão, empresas multinacionais, vanguardas políticas,
associações criminosas, organizações de traficantes e toda a espécie de
confrarias financeiras.
O
Parlamento português parece cada vez mais uma fortaleza de defesa dos deputados
e dos seus privilégios. Com inusitada frequência surgem no espaço
público notícias sobre irregularidades e vilanagem. E logo se ouve um deputado declarar que tem “a
consciência tranquila”, cliché cada vez mais utilizado pelos corruptos. Ou o seu presidente garantir que
não tem lições a receber de ninguém e que não “compactua” com as pessoas que criticam
o Parlamento.
No
Parlamento, nem toda a irregularidade é corrupção. Há formas de roubo que o não são. Há
anormalidades que também não são. É o local de eleição para as artimanhas
que, sendo vigarices, não são corrupção. As faltas dos deputados. As palavras-passe que se fornecem aos amigos.
As assinaturas feitas por procuração.
As inscrições em ficheiros informáticos. As falsas declarações de
deslocações e estadias. As ajudas de custo indevidas. As viagens
em grupo, mas contadas como individuais. Os endereços de empréstimo.
As declarações de património “marteladas”. As contas de familiares
maquilhadas. O “dinheiro vivo” que não deixa rastos. Este
universo de trapalhice não é corrupção. É mais desvio e mentira.
Alguns
deputados ilustram-se com declarações de fidelidade moral, outros ficam
escandalizados quando alguém denuncia os trafulhas (indignados com quem
denuncia, não necessariamente com o culpado…). Outros ainda, mais solenes,
queixam-se das “campanhas antidemocráticas”! Como é cada vez mais evidente e se
tem descoberto, os autores das piores campanhas contra o Parlamento são os
deputados. Pelo que fazem. Pelo que não dizem. Pelo que deixam correr,
sem apurar responsabilidades.
A democracia tem geografia
(círculos eleitorais) e indivíduos (uma pessoa, um voto). Com este sistema proporcional e sem responsabilidades
pessoais, com disciplina de voto e com os votos colectivos (que se podem
observar todos os dias na televisão), o que vigora é uma democracia de
anónimos e de responsabilidade limitada, sem comunidades e nem individualidade.
Nenhum deputado é pessoalmente responsável. Nenhum eleitor pode pedir contas
ao “seu” deputado. Nenhum deputado deve a sua eleição a um eleitorado real.
Tudo o que um deputado é deve-o ao partido.
Assim
se vai o Parlamento debilitando. Brevemente, sem liberdade de voto, bastará um
deputado de cada grupo votar por todos. Os
hipotéticos rebeldes ficam calados ou são convidados a sair da sala. O actual
modo de votação por colectivo, sem nome nem contagem, é já há muito o anúncio
deste admirável Parlamento novo, em que qualquer deputado é substituído por
doença, casamento, férias, emprego, lazer, negócios ou interesse do partido…
As
aparentes boas intenções dos responsáveis parlamentares são inúteis. Querem
curar com adesivos os pés da cadeira partida. Toda a lógica actual dos grupos, da disciplina
de voto, das listas partidárias e das substituições sem eleição é a mesma dos
sistemas de faltas, de ajudas de custo, de transmissão de passwords, de
votos por barriga de aluguer e de marcação de presenças por ausentes. O que
parece ser uma falta grave para a opinião pública é praticado há décadas por
muitos membros dos grupos parlamentares. Não todos. Mas muitos.
O
método de votar por procuração e “tirar a falta” tem quarenta anos. Antes dos computadores, muitos deputados tinham
nas suas carteiras fac-simile de assinaturas de amigos, em geral da província,
por quem rubricavam. Viam-se alguns mais descarados tirar a agenda do bolso
para copiar a rubrica dos faltosos. As sextas-feiras eram dias particularmente
cheios de trabalho para os procuradores. Nesse dia, uma assinatura valia por
três, pois incluía o fim-de-semana, a ajuda de custo e a deslocação. As
palavras-passe não fizeram mais do que modernizar a tramóia.
Votar
em colectivo, com disciplina, não é muito diferente de tirar a falta. O
deputado pode estar lá dentro, em comissão, no seu gabinete, no Chiado, na
Avenida dos Aliados ou em Tavira! Qual é a diferença, neste mundo
informatizado?
Há três anos, foi criada uma
Comissão especializada para tratar destes assuntos relativos à fraude
parlamentar. Ao fim de três anos e dezenas de reuniões, não há conclusões!
Típico! Em três anos, os deputados não conseguiram chegar a um acordo sobre o
Código de Ética, as faltas, as incompatibilidades, os deveres de lealdade, de
cumprimento de deveres e de declaração de despesas… Parece que nem o
Parlamento, nem os partidos, conseguem estimular a honestidade de todos os
deputados!
UM COMENTÁRIO
Manuel Caetano: Faro 13.01.2019 Este é um tema que permite detectar
facilmente os democratas e os não-democratas. Os democratas criticam (e
não toleram) os deputados com rosto e nome que sucumbem à corrupção e aos
arranjinhos mas são intransigentes na defesa da instituição parlamentar porque
sabem que sem parlamento não há democracia. Os não-democratas (e os
antidemocratas) generalizam atribuindo estas máculas a todos os
deputados para (com mais ou menos consciência) poderem atacar a
instituição parlamentar e, por essa via, a democracia representativa. É urgente
separar o trigo do joio nos partidos e neste debate.
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