Uma excelente crónica de Rui
Tavares, a que comentadores prestam homenagem e vão opinando, com conhecimento
próprio e facundo. Uma bela lição, en
tout cas. E o prazer destas leituras lusas, de saber e de sabor. E, para
confirmar liricamente a questão independentista irlandesa, lembro o magnífico
filme “A Filha de Ryan”, que nos enche as medidas de emoções várias.
OPINIÃO: Estranha forma de assumir
controlo
Qualquer solução para o
"Brexit" só pode vir de dentro do Reino Unido. Esta é uma ressaca de
que só os britânicos podem acordar sozinhos.
RUI TAVARES, PÚBLICO, 15 de Janeiro de 2019
Há
um conto de George Orwell, com o título Abatendo um Elefante, que descreve o "Brexit" bem melhor do
que qualquer reportagem ou ensaio atual. Nesse conto, que se baseia num
episódio da sua vida real enquanto agente da polícia imperial britânica na
então Birmânia, Orwell (cujo verdadeiro nome era Eric Arthur Blair) é
chamado a abater um elefante que a população em geral afirma estar
descontrolado. Quando finalmente chega perto do elefante, ele já está
calmo e longe de qualquer aldeia, pelo que matar aquele magnífico animal é
cruel e desnecessário. Mesmo assim, o narrador e protagonista do conto dispara
sobre o elefante, e acaba por matá-lo. Porquê? “Para evitar fazer figura de
tolo”, diz ele no fim do conto. George Orwell explica que foi aí que entendeu a
natureza do imperialismo europeu, e em particular do britânico. Por mais
fúteis, cruéis ou desnecessários que se revelem os seus actos, o agente do
imperialismo tinha de os levar até ao fim “para evitar fazer figura de tolo”.
O
"Brexit" mais não tem sido, desde o seu início, do que uma ressaca
pós-imperial inglesa (digo inglesa, sim, e não britânica — ver-se-á à frente
porquê). Não que
não haja razões para criticar a União Europeia, ou mesmo razões para dela
querer sair. A questão é que para saber sair da União Europeia é preciso
conhecê-la muito bem, e conhecer muito bem para onde se vai, e a elite
brexiteira do Reino Unido nunca se esforçou por cumprir com nenhum desses
desideratos.
Começa
o mito do "Brexit" pela ideia de que “é
preciso regressar ao estado-nação”.
O problema, ao contrário do que se poderia pensar, não está na parte do
estado-nação, mas na parte do “regressar”. Alguma
vez o Reino Unido foi um estado-nação? Antes de entrar na União Europeia, o
Reino Unido era a cabeça de um império — após o Desastre do Suez, em 1956, os
anos até 1973 em que De Gaulle manteve, com o veto da França, o Reino Unido
fora da Comunidade Económica Europeia, foram de um lento mas irreversível
declínio para a economia britânica, já sem império, e ainda sem Europa. Depois de querer sair da União Europeia, o Reino
Unido descobriu com espanto que não era uma nação, mas três ou quatro, e que a
Escócia não seguirá o resto do Reino Unido para uma saída desordenada da UE, e
que a Irlanda do Norte tem uma fronteira com a República da Irlanda e uma
garantia firmada no direito internacional de poder realizar um referendo de
reunificação das Irlandas a qualquer momento em que não só Belfast, mas também
Dublin, assim decidirem.
Continua
o mito do "Brexit" pela ideia de que, desamarrado da Europa, o Reino
Unido pode cumprir com um “destino global”. Mas esse destino global
tem um problema: depende da soberania dos outros. Ao chegar à Índia com
ideias de que no futuro com esse país pode negociar um acordo comercial, Theresa
May ouviu uma evidência: a Índia só aceitará negociar se o Reino Unido abrir as
portas à imigração indiana, ideia que os brexiteiros detestam. Do
suposto aliado Trump os britânicos ouviram uma mensagem clara: os EUA estão
interessados num acordo de livre-comércio com o Reino Unido, se na prática o
Sistema Nacional de Saúde britânico funcionar numa lógica de privatização — ah,
e é preciso aceitar as galinhas lavadas com lixívia que a agricultura dos EUA
exporta. A realidade pode custar muito, mas no domínio regulatório só há
três potências globais: os EUA, a UE e a China. Negociando em bloco, a
UE tem uma força considerável. Separadamente, só há dois tipos de países
europeus: os pequenos, e os que ainda não perceberam que são pequenos. Como
escrevi aqui ainda antes do referendo do "Brexit", há duas saídas
da UE para o Reino Unido: ou Noruega ou nada. No primeiro caso, o Reino
Unido é um país satélite da UE. No segundo caso, será um país satélite dos EUA.
Sim, é uma realidade brutal. Mas esta é uma situação que não carece de
eufemismos.
Termina
o mito do "Brexit" na ideia de que o "Brexit" consiste,
como dizia o slogan do tempo do referendo, em “assumir o controlo”.
Se é assim, estranha forma de assumir o controlo. A derrota de Theresa May no parlamento britânico já não cabe sequer na
escala normal das derrotas políticas. Theresa
May não perdeu por alguns votos, nem por algumas dezenas de votos. Theresa
May perdeu por centenas de votos, um resultado que não se verificava há
séculos, ou que nunca se verificou mesmo. Mas o pior é que de todos os
modelos de "Brexit" possíveis parece não haver maioria para nenhum,
tal como provavelmente não haverá para um novo referendo. Esperem, isso não
é o pior: o pior é que mesmo neste cenário a moção de censura dos
trabalhistas ao governo de May é capaz de ser derrotada, e May ficará no
governo sem política de governo, tendo sido derrotada por gigantesca margem na
única coisa que fez durante dois anos. Se isto é tomar controlo, vou ali e já
venho.
Esta
teria sido uma interessante experiência sobre disfunção política — o
que acontece quando se promete o impossível às pessoas, e as pessoas votam naturalmente
a favor do que lhes foi prometido — se não houve pessoas reais com as vidas em
suspenso por causa do que se está a passar. No início, foi prometido aos
britânicos não só mais controlo e mais dinheiro, mas também manter o mesmo
acesso ao mercado da UE, como se os outros não tivessem também soberania. Menos
liberdade de circulação para os europeus no Reino Unido, mas a mesma liberdade
de sempre para os britânicos no continente. Agora, quando se vê que nada
disso pode ser verdade, continua-se o "Brexit" pelas razões que
Orwell identificou: para não se fazer figura de tolo. A ressaca pós-imperial inglesa continua
a impedir alguns de ver que a figura de tolo já está feita. Mas a UE deve
resistir ao máximo a dar adiamentos ou sugerir novos referendos. Qualquer
solução para o "Brexit" só pode vir de dentro do Reino Unido. Esta é
uma ressaca de que só os britânicos podem acordar sozinhos.
COMENTÁRIOS
José Manuel Martins, évora 16.01.2019: Excelente artigo! Eppure... É que o beco
sem saída referido pelo próprio tavares - que já não há nenhuma maioria
para nenhuma solução, na desencontrada britânia - impugna a comparação com o
elefante. Pior do que um gato de schrödinger, este é bicho que não se
pode nem matar nem não matar, antes pelo contrário. Como se resolvem tais
impasses? Por si próprios: a própria acumulação de inviabilidades forçará o
processo de recomposição de forças e encontrará uma maioria 'de salvação
nacional'. O desejável é q o brexit, q é uma espécie de metonímia
histérica da saída, reverta à verdadeira relação: não é sair da ue para sair do
fluxo migratório (essa a verdade da 'verdade' q tavares aqui narra), mas
reentrar na ue para a fazer sair do fluxo migratório. E já se falará de
outra maneira com a Índia.
Americo Silva, 16.01.2019:
Este articulo de opinião põe os pontos nos is! É tudo como aqui é referido, sem
filtros! Acresce referir que todo este ruído diário, deve-se somente à falta de
decisão do UK, que não consegue ser
consequente com o resultado do referendo! Só os adeptos do brexit não
vêem isso! Não há aqui problema nenhum com democracia, respeito pelo voto,
etc, etc. Se ainda hoje, a dois meses da saída, estamos a falar dos termos do
acordo é por única e exclusiva culpa do UK, nada mais!
Mada Faca, 16.01.2019: Caro RT parabéns pelo excelente artigo. Tenho-me
esforçado sem sucesso para compreender esta imensa trapalhada que está a
acontecer na GB. Para já, à laia de uma melhor, a explicação de continuar
para não fazer figura de tolo parece-me fenomenal. A situação actual na GB
é demasiado imprevisível e tenho a remota esperança que May saque um coelho
da cartola no último momento ou que tudo isto seja parte de um plano
político genial que ela orquestrou. Para já, ela parece apenas uma figura
política patética e teimosa.
Rodrigues Lopes, 16.01.2019: Se UE fosse menos política e mais para cooperação
económica, como aliás foi o princípio fundamental da CEE, se fosse mais transparente
na legislação que implementa, se fosse mais democrática e menos burocrática e
elitista, nunca teria havido referendo, nem Brexit. Há no entanto alguma
confusão na interpretação deste processo, já que May era, e é, favorável a
que o RU se mantivesse na UE. A nostalgia imperial é a principal
motivação do “establishment”, em querer o Brexit. Se a imigração trouxe enormes
benefícios ao RU por um lado, por outro as leis da UE impedem, por ex., a
deportação de criminosos. Este foi um dos grandes argumentos dos brexiters
junto do eleitorado.
Rusty Tachikoma, 16.01.2019: "Se UE fosse menos política e mais para
cooperação económica, como aliás foi o princípio fundamental da CEE" <- com="" coma="" completamente="" de="" declara="" estivesse="" falso.="" familiarizado="" isso="" o:p="" o="" ou="" que="" roma="" saberia="" schuman="" se="" tratado="">->
Sérgio Dias, 16.01.2019: Ahh, só mesmo a realidade alternativa em que (vive
ou nos quer fazer crer que vive) Rui Tavares para pintar esta história. Em
primeiro lugar, adoro como na realidade dele, é o RU quem precisa
desesperadamente de permanecer na UE, como se a UE fosse uma organização sem
defeitos e sobretudo sem problemas. Mas mesmo assumindo que a UE não tem
defeitos e não trabalha activamente para encher os estados membros com milhões
de africanos, se eu estiver numa relação em que, mesmo que os meus amigos não
concordem, eu sinto que sou abusado, e por isso eu escolher largar o meu
abusador, só devo fazê-lo se já souber que tenho alguma coisa melhor à espera,
senão devo aceitar os abusos e continuar fiel ao abusador?
Americo Silva, 16.01.2019: Você é que sabe. Quando afirma que é abusado e o quer
largar, supostamente tem um plano para viver livre do abusador! Mas se ao
contrário disso diz que quer largar, mas nunca concretiza...É assim que o UK
está a fazer com brexit! Diz que quer sair mas não sai! Tal como no seu infeliz
exemplo você é que sabe o que quer fazer também os ingleses devia saber o que
fazer a seguir, mas não sabem afinal...Não há aqui nenhuma realidade
alternativa! A realidade alternativa foi proposta pelos defensores do brexit!
Afinal nem alternativa é...é mesmo virtual!
José Manuel Martins, évora 16.01.2019: preso
por ter elefante e preso por não ter, eis a questão. Mas mais vale um
pássaro a voar do que dois prisioneiros na mão. Isto hoje é um festival
zoológico, coisa que acontece sempre que a espécie humana desembesta por aí
fora. Preços da liberdade.
Raquel Azulay, 16.01.2019:
A verdade é que a UE vê-se confrontada
com uma crise que é tão ou mais profunda do que a crise resultante do Brexit. Podem tentar exorcizar os males da UE com as
maleitas do UK mas...de pouco servirá. A UE dentro de pouco tempo ver-se-á
confrontada com o derradeiro perigo da sua implosão. Sejam mais sensatos e
ponderados nas Vossas interpretações. Falam como se o UK fosse o único país
europeu confrontado com uma profunda crise. Não é verdade. A UE está de
frangalhos, ok. Forças da ext direita a crescer metoricamente na Hungria,
Polónia, Itália, Alemanha, Austria, Escandinávia, França....Vejam-se ao espelho
e sejam modestos. Que seca.
Mada Faca, 16.01.2019: A UE está muito longe de estar em frangalhos. É verdade que tem muitos problemas como sempre teve.
Não sei se tem mais ou mais graves problemas que antes, ou se apenas são
ampliados de forma diferente pela maneira diferente como hoje ecoam as notícias
incluindo as fake news. Apesar dos problemas, é uma união que continua a
funcionar no que diz respeito ao seu core business. Também é verdade que
enfrenta novos desafios com a ascensão dos movimentos nacionalistas e
populistas, mas daí até condená-la à morte vai uma colossal distância. Exemplo
disto é o que o próprio pensamento de Marine Le Pen já evolui; é agora menos
antieuropeísta porque acredita começar a ser possível mudar a UE por dentro.
Nuno Silva, 16.01.2019: O problema principal é este fanatismo neoliberal
dos conservadores, que queriam (e ainda querem), destruir o estado social
no UK. E como era necessário 'chutar a bola para a frente', foi por isso que
David Cameron convocou de forma totalmente irresponsável o referendo do Brexit,
aproveitando a onda de extrema-direita racista, que culpava os refugiados e os
emigrantes de dentro e fora da UE, por todos os males que há no mundo,
incluindo o mau estado do estado social, deixado a apodrecer pelos
conservadores e o seu radicalismo ideológico. Por isso os nossos irmãos
ingleses devem mandar embora os conservadores, e escolherem o Labour, que
finalmente está a olhar para as pessoas e não somente para os negócios.
Excelente crónica.
Mada Faca, 16.01.2019 A sua análise parece muito enviesada. Se como diz - e
concordo - os conservadores têm prestado um péssimo serviço à
democracia, os trabalhistas não têm feito melhor. Veja o que tem
feito Corbyn desde a sua presença pálida na campanha do Brexit, até à sua
política de terra-queimada durante a governação May, sem propor rigorosamente
nada de construtivo. Não considero uma boa opção para liderar um país, alguém
que se limita a assistir de camarote ao seu país a arder em lume brando,
enquanto vai atirando algumas achas.
Nuno Silva, 16.01.2019: Mada Faca: E o que quer que o Corbyn faça!?? Que vá
apanhar as canas do foguetório dos conservadores!!?? Para os
conservadores tanto faz estar na UE como não estar, porque quem paga serão
sempre os mais fracos...
Alforreca Passista, Anti-liberal fascista, 16.01.2019: O defensor
de "guerras humanitárias", defensor da austeridade €uropeísta Rui
Tavares já vos contou que o Brexit é culpa de Putin!?
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