quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Dois olhares para 2019



“O Público pediu a dez personalidades o seu olhar para 2019”
Seguem-se os dois primeiros, o primeiro de Vicente Jorge Silva, um olhar naturalmente preocupado, de analista político, sem jeito para utopias, debruçado sobre um mundo de potências que a irracionalidade e o descontrolo das ambições parecem orientar, favorecido pela perversão das redes sociais. O segundo, de Mónica Ferro, dona de múltiplos encargos - Directora do escritório do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População em Genebra, Deputada PSD, Membro do Comité Executivo do Forum Europeu de Parlamentares para a População e Desenvolvimento e essencialmente puxando a brasa à sua sardinha, sintetizando o que vai pelo mundo de mal, no que toca à Mulher desapossada de direitos, e estabelecendo premissas para um futuro em que os jovens terão parte activa.
Futuro negro e irracional, em qualquer dos casos.

I - 2019, o ano da verdade
A tendência para a fragmentação e pulverização de poderes vai estar ao rubro em 2019
PÚBLICO, 30 de Dezembro de 2018
A 1 de Janeiro Jair Bolsonaro toma posse como Presidente do Brasil e é sob esse signo inaugural que irá decorrer 2019 como ano da verdade. De facto, o significado do fenómeno Bolsonaro ultrapassa largamente as fronteiras do país onde ocorre, pondo à prova o populismo extremista e nacionalista em vertiginosa ascensão no mundo em 2018 e que terá um dos seus testes decisivos nas próximas eleições europeias. Se a isso juntarmos o beco sem saída do "Brexit", a Europa poderá ver a sua já famosa "crise existencial" transformar-se na implosão de um projecto unitário longamente corroído pela eurocracia institucional e pela diluição da identidade dos velhos e novos partidos europeus – à direita, à esquerda ou ao centro –, proporcionando a afirmação dos agressivos soberanismos nacionalistas (mesmo que as forças que os representam não se tornem imediatamente maioritárias no Parlamento Europeu ou sejam acompanhadas, nalguns países, pelo ressurgimento de movimentos ecologistas).
Pairando sobre estas sombras inquietantes, o triângulo autocrático dos senhores do mundo – Trump, Putin e Xi Jinping – tenderá a conduzir a um ponto eventualmente incontrolável os vários jogos de guerra que vão encenando. Neste quadro, os jogos de simulação e disfarce para esconder cumplicidades inconfessáveis, como aqueles que praticam os líderes russo e norte-americano, poderão revelar-se tão perigosos como os outros. Recorde-se, aliás, que na sua conferência de imprensa de fim do ano, Putin voltou a agitar o espantalho de um conflito nuclear ao mesmo tempo que saudava Trump pela sua decisão de sair da Síria, apesar da oposição do Pentágono e do Congresso. A "estratégia" cega do sonambulismo que conduz aos conflitos mais devastadores parece estar efectivamente de volta. Além disso, tudo indica que as tendências ditatoriais e os apetites totalitários em expansão acelerada à escala global constituem um pano de fundo propício ao desencadear de disputas territoriais ou à afirmação de supremacias regionais, do Médio ao Extremo Oriente, da Turquia aos mares da China.
A tendência para a fragmentação e pulverização de poderes vai estar ao rubro em 2019, com o risco acrescido dos passos para o abismo, enquanto a maior potência planetária se vê cada vez mais remetida às pulsões paranóicas do seu Presidente. Trump parece ter desafiado já todas as leis da gravidade que lhe permitiriam manter-se ao leme da Casa Branca e, nos últimos tempos, elevou esse desafio a patamares de irrealidade pura e simples, enquanto os membros da sua equipa vão desertando e ele mergulha num autismo total de exercício do poder através de tweets de um infantilismo cada vez mais absurdo e irresponsável. 2019 será, finalmente, o ano do «impeachment»? Se o mundo fosse governado pela racionalidade, isso já teria acontecido, mas parece duvidoso, apesar de tudo, que Trump possa sobreviver politicamente a mais um ano de insanidade e auto-isolamento crescente no Gabinete Oval.
Já se sabia que as redes sociais alimentam o autismo, a deriva e a rarefacção dos poderes, mas nunca sonhámos que o fenómeno pudesse atingir as proporções catastróficas que hoje conhecemos, como contraponto a uma globalização que criou uma enorme massa de excluídos (ou favoreceu a interiorização do sentimento de exclusão) através dos quatro cantos do planeta. É porventura o fenómeno mais inquietante do nosso tempo e que transcende largamente a esfera política, económica e social, corroendo a esfera da liberdade e autonomia individual.
A ascensão vertiginosa do poder da irracionalidade condiciona o futuro da civilização e é também por isso que 2019 irá ser o ano da verdade das tendências suicidárias a que vimos assistindo num mundo contemporâneo colonizado pelo medo. Nunca é tarde para acordar? Infelizmente, pode ser.         

II – OPINIÃO: Eu vi o futuro e é jovem
O cenário é duro. Sinto-o de cada vez que olho para o futuro e o vejo tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma enorme esperança.
MÓNICA FERRO
PÚBLICO, 31 de Dezembro de 2018
São milhões de vozes, de agentes que, apoiados com os investimentos necessários em saúde, educação, emprego e participação podem transformar o mundo.
Todos os dias acordo consciente deste enorme potencial e desafio. Trabalhando há quase 2 anos para o Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), a agência da ONU para a saúde sexual e reprodutiva, cuja missão é garantir direitos e escolhas para todas as pessoas, foco-me especialmente nas mulheres, nas adolescentes e nos jovens. Se queremos um mundo com mais liberdade e dignidade para todos, sem deixar ninguém para trás – o mantra dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - temos que chegar primeiro àqueles que têm sido deixados mais para trás e esses são sempre as mulheres e os jovens. Frequentemente sem voz e sem um lugar à mesa da tomada de decisão, as suas necessidades e potencialidades têm sido ignoradas quer nos grandes compromissos políticos internacionais, quer na tradução destes para programas que visam, precisamente, transformar a vida de jovens e mulheres.
Mas deixem-me traçar-vos um breve e incompleto cenário dos desafios que os jovens enfrentam.
Sabemos que, todos os dias, nos países em desenvolvimento, cerca de 20.000 raparigas com menos de 18 anos dão à luz e que a maior parte destas gravidezes não resultam de uma escolha deliberada. Para muitas é a consequência de pouco ou nenhum acesso à escola, informação ou cuidados de saúde. Uma rapariga que não tem acesso a educação sexual compreensiva e a saúde sexual e reprodutiva não consegue evitar uma gravidez indesejada, por exemplo, e o impacto desta falta de escolha na sua saúde, educação e autonomia constitui um conjunto de violações dos seus direitos fundamentais. Uma adolescente que não tem controlo sobre o seu corpo, não tem controlo sobre nada na sua vida. Fica mais exposta à pobreza, à dependência, ao abandono escolar e ausente dos espaços onde a sua vida é decidida.
Se pensarem que todos os dias morrem 800 mulheres e jovens de causas ligadas à gravidez, parto e pós-parto, na sua maioria preveníveis, pensem no impacto transformador que garantir acesso à saúde sexual e reprodutiva e direitos conexos pode ter na vida destas pessoas, no desenvolvimento dos seus países e do mundo.
Todos os anos milhões de raparigas casam precocemente e antes de atingir a idade adulta. O casamento precoce, infantil e forçado é uma violação dos Direitos Humanos. E apesar de todas as leis que o punem, globalmente, uma em cada 5 raparigas casa-se, ou entra para uma união, antes de atingir os 18 anos. São quase 12 milhões todos os anos. O casamento infantil viola o direito de escolher se e com quem casar. E quando as raparigas têm escolha, casam-se mais tarde. Um jovem casado precocemente corre maiores riscos de abandono escolar, de uma gravidez indesejada (as complicações decorrentes da gravidez adolescente são a principal causa de morte entre raparigas adolescentes mais velhas) ou de contrair uma infecção sexualmente transmissível.
Por todo o mundo há hoje cerca de 200 milhões de mulheres e raparigas que vivem com as consequências de mutilação genital feminina; e, de acordo com as nossas estimativas, até 2030 há cerca de 68 milhões de meninas, raparigas e mulheres em risco.
A mutilação genital feminina é umas das mais graves violações dos Direitos Humanos. A despeito de todos os sucessos com a criminalização da prática, das declarações públicas de abandono e de uma quase consciência universal para a gravidade do acto e das violações de direitos que aporta, o trabalho está longe de estar terminado.
E posso vos falar ainda dos contextos humanitários e de como todas as violações de direitos que possam imaginar são exacerbadas e exponencializadas e de como os jovens eram reduzidos a sobreviventes e portadores de necessidades – que o são – mas nunca reconhecidos como agentes de resposta de primeira linha, como actores na construção de sociedades resilientes.
Ou, ainda, de como nas negociações para a paz e segurança o elo que faltava era os jovens, a sua voz, as suas redes, a sua capacidade de inovar em soluções e em parcerias transformadoras, que ocupassem o seu lugar à mesa.
Bem sei que o cenário é duro. Sinto-o de cada vez que olho para o futuro e o vejo tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma enorme esperança. Primeiro porque vemos, ouvimos e lemos e não o podemos ignorar, como tão bem o dizia a nossa Sophia; depois porque os jovens dizem alto e a bom som “nada sobre nós, sem nós” e, como exige a enviada especial para a juventude do Secretário-Geral da ONU, se os jovens não cabem na mesa de negociações, construam mesas maiores; e também porque investir nos jovens, na sua saúde sexual e reprodutiva, nos seus direitos sexuais e reprodutivos, na sua educação/formação, no seu emprego e na sua participação não é apenas algo que possamos fazer, é a coisa certa a fazer, se realmente não queremos deixar ninguém para trás.
O meu optimismo, sempre informado, vem sobretudo do trabalho notável que organizações internacionais, Estados e sociedade civil – em parcerias com a academia e a comunicação social – têm feito, por exemplo, em recolher dados desagregados ao género e à idade, que usam para desenhar políticas e programas com impacto; vem dos enormes compromissos que todos temos sabido gizar e proteger; vem do reconhecimento de cada um de nós como portador de deveres e de direitos.
E é isso que agências como aquela a que eu tenho o privilégio de pertencer fazem diariamente: conhecer para agir, inovar para transformar a vida dos Povos das Nações Unidas, como tão inspiradoramente somos referidos na abertura da Carta das Nações Unidas.
2019 é um ano de charneira. É o ano dos 25 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que muda o papel percebido das pessoas no desenvolvimento: de números humanos para Direitos Humanos, celebrando os direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos, colocando jovens e mulheres no centro do desenvolvimento. E foi já há 25 anos, é tempo de cumprir as promessas desta agenda perpétua.
O UNFPA, que tem como missão construir um mundo em que cada gravidez é desejada, cada parto é seguro e o potencial de cada jovem é realizado, celebra 50 anos. 50 anos a colocar os jovens no centro dos processos, de todos os processos, incluindo na construção da paz e da segurança e na acção humanitária, empoderando-os, trabalhando com eles e para eles, fazendo de cada espaço um espaço seguro e de autonomia, dando aos jovens as competências, a informação, o poder e os meios para decidirem sobre os seus corpos, as suas vidas, as suas famílias, comunidades, países e o mundo.
Por isso quando olho para o futuro ele é jovem. É feito das vozes e da acção de 1,8 mil milhões de jovens e de todos os que lutam ao seu lado pela reconhecimento dessa extraordinária força transformadora, dos que aliam a esse reconhecimento um investimento na sua saúde, educação, emprego e participação, dos que combatem as tentativas de encurtamento desse espaço, dos que dizem “nada sobre os jovens, sem os jovens.” Porque, sabem que mais, afinal o presente já é jovem.
COMENTÁRIOS
AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter qualquer coisa de verdade Portugal 01.01.2019: Se pensarmos nas causas que perpetuam o ciclo da pobreza de muitas destas mulheres, verificamos que muitas delas são de natureza cultural. Vivem em países, onde factores de ordem religiosa e de pensamento, condicionam a sua existência como seres humanos de pleno direito. Estas injustiças, que indignam o pensamento ocidental, são um modo de vida nestes locais. Infelizmente, endireitar a sombra de uma vara torta, é tarefa impossível.
Ceratioidei Oceanos 01.01.2019: Excelente texto. Cumprimento e agradeço a Mónica Ferro pelo empenho e pelo excelente trabalho que tem desenvolvido.
FPS, Vale de Santarém 01.01.2019: Que excelente artigo! Como não estar de acordo com essa sinopse: "Nada sobre os jovens sem os jovens"!!!

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