“O Público pediu a dez personalidades o seu
olhar para 2019”
Seguem-se os dois primeiros, o
primeiro de Vicente Jorge Silva, um
olhar naturalmente preocupado, de analista político, sem jeito para utopias,
debruçado sobre um mundo de potências que a irracionalidade e o descontrolo das
ambições parecem orientar, favorecido pela perversão das redes sociais. O
segundo, de Mónica Ferro, dona de múltiplos
encargos - Directora do escritório do Fundo
das Nações Unidas de Apoio à População em Genebra, Deputada PSD, Membro do
Comité Executivo do Forum Europeu de Parlamentares para a População e
Desenvolvimento – e essencialmente
puxando a brasa à sua sardinha, sintetizando o que vai pelo mundo de mal, no
que toca à Mulher desapossada de direitos, e estabelecendo premissas para um
futuro em que os jovens terão parte activa.
Futuro
negro e irracional, em qualquer dos casos.
I
- 2019, o ano da verdade
A tendência para a fragmentação e
pulverização de poderes vai estar ao rubro em 2019
PÚBLICO, 30 de Dezembro de 2018
A
1 de Janeiro Jair Bolsonaro toma posse como Presidente do Brasil e é sob
esse signo inaugural que irá decorrer 2019 como ano da verdade. De facto, o
significado do fenómeno Bolsonaro ultrapassa largamente as fronteiras do país
onde ocorre, pondo à prova o populismo extremista e nacionalista em vertiginosa
ascensão no mundo em 2018 e que terá um dos seus testes decisivos nas próximas
eleições europeias. Se a isso juntarmos o beco sem saída do
"Brexit", a Europa poderá ver a sua já famosa "crise
existencial" transformar-se na implosão de um projecto unitário longamente
corroído pela eurocracia institucional e pela diluição da identidade dos velhos
e novos partidos europeus – à direita, à esquerda ou ao centro –,
proporcionando a afirmação dos agressivos soberanismos nacionalistas (mesmo
que as forças que os representam não se tornem imediatamente maioritárias no
Parlamento Europeu ou sejam acompanhadas, nalguns países, pelo ressurgimento de
movimentos ecologistas).
Pairando
sobre estas sombras inquietantes, o triângulo autocrático dos senhores do
mundo – Trump, Putin e Xi Jinping – tenderá a conduzir a um ponto eventualmente
incontrolável os vários jogos de guerra que vão encenando. Neste quadro, os
jogos de simulação e disfarce para esconder cumplicidades inconfessáveis,
como aqueles que praticam os líderes russo e norte-americano, poderão
revelar-se tão perigosos como os outros. Recorde-se, aliás, que na sua
conferência de imprensa de fim do ano, Putin voltou a agitar o espantalho de
um conflito nuclear ao mesmo tempo que saudava Trump pela sua decisão de sair
da Síria, apesar da oposição do Pentágono e do Congresso. A "estratégia"
cega do sonambulismo que conduz aos conflitos mais devastadores parece
estar efectivamente de volta. Além disso, tudo indica que as tendências
ditatoriais e os apetites totalitários em expansão acelerada à escala global
constituem um pano de fundo propício ao desencadear de disputas territoriais ou
à afirmação de supremacias regionais, do Médio ao Extremo Oriente, da Turquia
aos mares da China.
A
tendência para a fragmentação e pulverização de poderes vai estar ao rubro em
2019, com o
risco acrescido dos passos para o abismo, enquanto a maior potência planetária
se vê cada vez mais remetida às pulsões paranóicas do seu Presidente. Trump
parece ter desafiado já todas as leis da gravidade que lhe permitiriam
manter-se ao leme da Casa Branca e, nos últimos tempos, elevou esse desafio a
patamares de irrealidade pura e simples, enquanto os membros da sua equipa vão
desertando e ele mergulha num autismo total de exercício do poder através
de tweets de um infantilismo cada
vez mais absurdo e irresponsável.
2019 será, finalmente, o ano do «impeachment»? Se o mundo fosse governado pela racionalidade,
isso já teria acontecido, mas parece duvidoso, apesar de tudo, que Trump possa
sobreviver politicamente a mais um ano de insanidade e auto-isolamento
crescente no Gabinete Oval.
Já
se sabia que as redes sociais alimentam o autismo, a deriva e a rarefacção dos
poderes, mas nunca sonhámos que o fenómeno pudesse atingir as proporções
catastróficas que hoje conhecemos, como contraponto a uma globalização que
criou uma enorme massa de excluídos (ou favoreceu a interiorização do
sentimento de exclusão) através dos quatro cantos do planeta. É porventura o fenómeno mais inquietante do nosso
tempo e que transcende largamente a esfera política, económica e social,
corroendo a esfera da liberdade e autonomia individual.
A ascensão vertiginosa do poder
da irracionalidade condiciona o futuro da civilização e é também por isso que
2019 irá ser o ano da verdade das tendências suicidárias a que vimos assistindo
num mundo contemporâneo colonizado pelo medo. Nunca é tarde para acordar?
Infelizmente, pode ser.
II – OPINIÃO: Eu vi o
futuro e é jovem
O cenário é duro. Sinto-o de cada vez
que olho para o futuro e o vejo tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma
enorme esperança.
MÓNICA FERRO
PÚBLICO, 31 de Dezembro de 2018
São
milhões de vozes, de agentes que, apoiados com os investimentos necessários em
saúde, educação, emprego e participação podem transformar o mundo.
Todos
os dias acordo consciente deste enorme potencial e desafio. Trabalhando há quase 2 anos para o Fundo das Nações
Unidas para a População (UNFPA), a agência da ONU para a saúde sexual e
reprodutiva, cuja missão é garantir direitos e escolhas para todas as pessoas,
foco-me especialmente nas mulheres, nas adolescentes e nos jovens. Se
queremos um mundo com mais liberdade e dignidade para todos, sem deixar ninguém
para trás – o mantra dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - temos
que chegar primeiro àqueles que têm sido deixados mais para trás e esses são
sempre as mulheres e os jovens. Frequentemente sem voz e sem um lugar à mesa da
tomada de decisão, as suas necessidades e potencialidades têm sido ignoradas
quer nos grandes compromissos políticos internacionais, quer na tradução destes
para programas que visam, precisamente, transformar a vida de jovens e
mulheres.
Mas
deixem-me traçar-vos um breve e incompleto cenário dos desafios que os jovens
enfrentam.
Sabemos
que, todos os dias, nos países em desenvolvimento, cerca de 20.000 raparigas
com menos de 18 anos dão à luz e que a maior parte destas gravidezes não
resultam de uma escolha deliberada. Para muitas é a consequência de pouco ou
nenhum acesso à escola, informação ou cuidados de saúde. Uma rapariga que não
tem acesso a educação sexual compreensiva e a saúde sexual e reprodutiva não
consegue evitar uma gravidez indesejada, por exemplo, e o impacto desta falta
de escolha na sua saúde, educação e autonomia constitui um conjunto de
violações dos seus direitos fundamentais. Uma adolescente que não tem controlo
sobre o seu corpo, não tem controlo sobre nada na sua vida. Fica mais exposta à
pobreza, à dependência, ao abandono escolar e ausente dos espaços onde a sua
vida é decidida.
Se
pensarem que todos os dias morrem 800 mulheres e jovens de causas ligadas à
gravidez, parto e pós-parto, na sua maioria preveníveis, pensem no impacto
transformador que garantir acesso à saúde sexual e reprodutiva e direitos
conexos pode ter na vida destas pessoas, no desenvolvimento dos seus países e
do mundo.
Todos
os anos milhões de raparigas casam precocemente e antes de atingir a idade
adulta. O casamento precoce, infantil e forçado é uma violação dos Direitos
Humanos. E apesar de
todas as leis que o punem, globalmente, uma em cada 5 raparigas casa-se, ou
entra para uma união, antes de atingir os 18 anos. São quase 12 milhões todos
os anos. O casamento infantil viola o direito de escolher se e com quem casar.
E quando as raparigas têm escolha, casam-se mais tarde. Um jovem casado
precocemente corre maiores riscos de abandono escolar, de uma gravidez
indesejada (as complicações decorrentes da gravidez adolescente são a principal
causa de morte entre raparigas adolescentes mais velhas) ou de contrair uma
infecção sexualmente transmissível.
Por
todo o mundo há hoje cerca de 200 milhões de mulheres e raparigas que vivem com
as consequências de mutilação genital feminina; e, de acordo com as nossas
estimativas, até 2030 há cerca de 68 milhões de meninas, raparigas e mulheres em
risco.
A
mutilação genital feminina é umas das mais graves violações dos Direitos
Humanos. A despeito de todos os sucessos com a criminalização da prática, das
declarações públicas de abandono e de uma quase consciência universal para a
gravidade do acto e das violações de direitos que aporta, o trabalho está longe
de estar terminado.
E
posso vos falar ainda dos contextos humanitários e de como todas as violações
de direitos que possam imaginar são exacerbadas e exponencializadas e de como
os jovens eram reduzidos a sobreviventes e portadores de necessidades – que o
são – mas nunca reconhecidos como agentes de resposta de primeira linha, como
actores na construção de sociedades resilientes.
Ou,
ainda, de como nas negociações para a paz e segurança o elo que faltava era os
jovens, a sua voz, as suas redes, a sua capacidade de inovar em soluções e em
parcerias transformadoras, que ocupassem o seu lugar à mesa.
Bem
sei que o cenário é duro. Sinto-o de cada vez que olho para o futuro e o vejo
tão jovem. Mas, mais do que nunca, sinto uma enorme esperança. Primeiro porque vemos, ouvimos e lemos e não o
podemos ignorar, como tão bem o dizia a nossa Sophia; depois porque os jovens
dizem alto e a bom som “nada sobre nós, sem nós” e, como exige a enviada
especial para a juventude do Secretário-Geral da ONU, se os jovens não cabem
na mesa de negociações, construam mesas maiores; e também porque investir nos
jovens, na sua saúde sexual e reprodutiva, nos seus direitos sexuais e
reprodutivos, na sua educação/formação, no seu emprego e na sua participação
não é apenas algo que possamos fazer, é a coisa certa a fazer, se realmente não
queremos deixar ninguém para trás.
O
meu optimismo, sempre informado, vem sobretudo do trabalho notável que
organizações internacionais, Estados e sociedade civil – em parcerias com a
academia e a comunicação social – têm feito, por exemplo, em recolher dados
desagregados ao género e à idade, que usam para desenhar políticas e programas
com impacto; vem dos enormes compromissos que todos temos sabido gizar e
proteger; vem do reconhecimento de cada um de nós como portador de deveres e de
direitos.
E
é isso que agências como aquela a que eu tenho o privilégio de pertencer fazem
diariamente: conhecer para agir, inovar para transformar a vida dos Povos das
Nações Unidas, como tão inspiradoramente somos referidos na abertura da Carta
das Nações Unidas.
2019
é um ano de charneira. É o ano dos 25 anos da Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento que muda o papel percebido das pessoas no
desenvolvimento: de números humanos para Direitos Humanos, celebrando os
direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos, colocando jovens e
mulheres no centro do desenvolvimento. E foi já há 25 anos, é tempo de cumprir
as promessas desta agenda perpétua.
O
UNFPA, que tem como missão construir um mundo em que cada gravidez é desejada,
cada parto é seguro e o potencial de cada jovem é realizado, celebra 50 anos. 50 anos a colocar os jovens no centro dos processos,
de todos os processos, incluindo na construção da paz e da segurança e na acção
humanitária, empoderando-os, trabalhando com eles e para eles, fazendo de cada
espaço um espaço seguro e de autonomia, dando aos jovens as competências, a
informação, o poder e os meios para decidirem sobre os seus corpos, as suas
vidas, as suas famílias, comunidades, países e o mundo.
Por
isso quando olho para o futuro ele é jovem. É feito das vozes e da acção de 1,8
mil milhões de jovens e de todos os que lutam ao seu lado pela reconhecimento
dessa extraordinária força transformadora, dos que aliam a esse reconhecimento
um investimento na sua saúde, educação, emprego e participação, dos que
combatem as tentativas de encurtamento desse espaço, dos que dizem “nada sobre
os jovens, sem os jovens.” Porque, sabem que mais, afinal o presente já é
jovem.
COMENTÁRIOS
AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter
qualquer coisa de verdade Portugal 01.01.2019: Se pensarmos nas causas que perpetuam o ciclo da
pobreza de muitas destas mulheres, verificamos que muitas delas são de natureza
cultural. Vivem em países, onde factores de ordem religiosa e de pensamento,
condicionam a sua existência como seres humanos de pleno direito. Estas
injustiças, que indignam o pensamento ocidental, são um modo de vida nestes
locais. Infelizmente, endireitar a sombra de uma vara torta, é tarefa
impossível.
Ceratioidei Oceanos 01.01.2019: Excelente texto. Cumprimento e agradeço a Mónica
Ferro pelo empenho e pelo excelente trabalho que tem desenvolvido.
FPS, Vale de Santarém 01.01.2019: Que excelente artigo! Como não estar de acordo com
essa sinopse: "Nada sobre os jovens sem os jovens"!!!
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