Um
Requien, sincero,
sentido, uma análise chã, traduzindo conhecimento e devoção, chamando a atenção de um país geralmente indiferente e
depressa esquecido – o texto de Bagão Félix, rico em informação sobre a pessoa cuja
morte lamenta – CATALINA PESTANA. Texto rico em perspectiva crítica também,
sobre esse pobre país de muita gente triste a necessitar de auxílio, e no qual
por vezes o heroísmo surge, de uma luta sem tréguas a fornecer despojamento de
si, em dedicação altruística, que a indiferença dos com poder facilmente ignora.
Uma crónica rebuscada, vibrátil e profusa,
também sincera, mas de um rendilhado feminino um tanto barroco, no entusiasmo
admirativo pela dupla CAMANÉ e LAGINHA, a que acrescentou o PORTO e outras figuras
políticas aí representadas, que a veia jornalística de Maria João Avillez exigiu como
complemento do seu texto, de preciosos “andamentos” iniciais, impecáveis de
intuição analista condizente com o apuramento musical do par requintadamente descrito.
I - OPINIÃO: PORTUGAL PERDEU UMA
PORTUGUESA EXEMPLAR, UMA GRANDE SENHORA
Catalina Pestana foi uma cidadã e uma
cristã que nunca hesitou em pôr os sem-poder à frente de todos os poderes
formais e todos os poderes fátuos e ardilosos.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX, Economista PÚBLICO, 22 de Dezembro de
2018
Catalina Pestana foi uma cidadã com uma inabalável ética com rosto,
alma e coração. Rosto, espelhado na defesa dos que não têm voz. Alma, na
vontade inquebrantável com que lutou pelos seus ideais radicalmente humanistas.
Coração, na dedicação, profissionalismo e entusiasmo com que abraçou as causas
por que lutou. Em nome do valor ético da esperança, da verdade, da
autenticidade, da sensibilidade e da decência. Sempre com jubiloso
discernimento, pugnando por uma justiça com alma e não meramente contábil.
Em
2002, como ministro da Segurança Social e do Trabalho, tive a felicidade de a
escolher para liderar o projecto de refundar a Casa Pia. Fiquei-lhe infinitamente grato, como cidadão e
português. Sei bem o que representou de sacrifício pessoal e sei também o
sentido do dever, a força da coragem, a delicadeza humana, a consistência e o
critério de auto-exigência que nortearam a sua acção. A ela bem se pôde aplicar
a máxima de que uma pessoa comum é exigente com os outros, mas uma pessoa
superior é exigente, em primeiro lugar, consigo própria. De uma fortaleza
insuperável, jamais contemporizou com insuficiências ou abusos, indultos
comportamentais ou amnistias morais.
Fui
testemunha da sua nobre atitude fundada no valor da fraternidade e da partilha
contra o conformismo, a indiferença e a desconsideração. Corajosamente,
rompendo contra a violência do silêncio e lutando pela humanização contra a
tecnocracia estatística que dilui ou banaliza os problemas e transforma as
pessoas em números e algoritmos. Sempre se norteou por uma “ecologia humana”
fundamentada na centralidade e dignidade de cada um, e em particular, das
crianças mais indefesas. Ela me dizia que onde existe um ser indefeso, deveria
também existir um conhecer, um ajudar, uma ética da responsabilidade de cuidar.
Ela me dizia que haveríamos de combater o comodismo da “posta-restante social”
onde se corre o risco de, sem competência emocional, se uniformizar o que exige
diferenciação, de massificar o que supõe proximidade e personalização.
Uma
cidadã e uma cristã que nunca hesitou em pôr os sem-poder à frente de todos os
poderes formais e todos os poderes fátuos e ardilosos. Jamais se deixou enredar
em tacticismos e juízos de oportunidade do instante. E não se deixou envolver
pela ditadura do presente que anula o passado e transforma o futuro numa
quimera.
Sei
que muito fica por dizer. Que o seu exemplo perdure e a sua memória viva
permaneça em nós! A muita saudade e o meu profundo obrigado à minha querida
amiga Catalina.
II -PORTO:
COM QUE VOZ (E O PORTO) /PREMIUM
MARIA JOÃO
AVILLEZ OBSERVADOR, 30/1/2019
Que o mesmo é dizer, com aquela
convicção de aço que ponho quando a pele e o coração me dizem que estou
absolutamente certa, que falo de dois sobredotados. Ambos portugueses.
1
– Primeiro andamento.
Na
penumbra do imenso palco, um está sentado ao piano, o outro, pullover azul e
microfone na mão, deambula, senta-se, volta a levantar-se. Às vezes sussurram
os dois, às vezes Camané interpela os
técnicos sobre o modo como nesse momento a luz incide sobre ele, às vezes há
uma breve pausa, olham ambos para o papel com o alinhamento, monologam
baixinho. E depois Mário Laginha
volta a tocar e Camané volta a
cantar. É o último ensaio, são os últimos retoques, a derradeira “volta” de
aperfeiçoamento e detalhe antes da prova de fogo dessa noite na Casa da Música
onde Camané se fará
ouvir apenas acompanhado pelo piano de Laginha. Que
o mesmo é dizer, com aquela convicção de aço que ponho quando a pele e o
coração me dizem que estou absolutamente certa, que estou a falar de dois
sobredotados. E da incrível, indefinível, jubilosa, sorte que temos em eles
terem ambos nascido em Portugal. De os poder ter aqui mais à nossa mão.
Segundo
Andamento. Uma vez, há
muitos anos, fui sozinha à Aula Magna ouvir Camané. E naquela brevíssima pausa
que por vezes acontecem aos fadistas no “swing” de uma frase, ouviu-se uma voz
feminina soltar-se da plateia para o palco “Ai… Camané”. Era aquilo mesmo, que
outra coisa dizer, nunca mais me esqueci. E hoje, na tarde ensolarada do Porto
onde vim para este espectáculo, assistindo ao ensaio na deserta plateia
prateada da Casa da Música, mais uma vez percebo que mais nada senão aquele “ai
Camané” pode rematar o fulgor do “Com que voz”. E pode – se é que pode –
oferecer-nos, em estado quimicamente puro, o desamparo de “Abandono”, que ouço
agora. Momentos de graça, também percebo.
Terceiro
Andamento. “Os dois, só
os dois?”, espantei-me eu quando Camané me contou há dias que “iria ao Porto só
com o Mário”. Fiquei incrédula, estou sempre com o ouvido estacionado no José
Manuel Neto – outro génio e também nosso: “Isso é porque você nunca viu nem
ouviu a mão do Mário a fazer nas teclas o mesmo que a mão do Zé Manel faz nas
cordas da guitarra e a ir por ali fora no piano…” Sorte minha,
prestei muita atenção a isto. O fado leva-me sempre, Camané leva-me até ao fim
do mundo. Meti-me num comboio e fui.
Quarto
Andamento. Nada em
princípio dirigiria a mão de Laginha para esta aventura, nem ele era sequer um
ouvidor de fado. Não estava “aí”, estava na sua, que não era esta. E depois, de
início talvez sem explicação racional ou justificação aparente, as coisas
desenrolaram-se, o dom de um e o génio do outro também, e o que era uma
temeridade ou poderia vir a ser uma intenção falhada, deixou de ser. E
transfigurou-se numa experiência artística seriíssima, conversada, estudada,
experimentada, amadurecida. Não foi um “entretém”, nem ainda menos “um vamos os
dois brincar aqui um bocadinho”, mas um muito inspirado exercício que um dia
destes -quando eles o tiverem aprimorado até ao limite da perfeição — pode
desaguar numa uma obra-prima da música. Como um ex-libris. Nosso. (Tenho sempre que insistir nisto do “nosso e nossa”,
santos de casa nunca fizeram milagres e mesmo que neste caso, ambos, Camané e
Laginha, sejam muito reconhecidos, aplaudidos e distinguidos, parece-me sempre
que deveriam ser ainda mais.)
Ultimo
andamento. “Ah eu estava
muito nervoso…” No bruáá dos bastidores, não tinha razão o fadista, no final de
uma actuação memorável, casa cheia e plateia de pé. O que passara do palco para
a sala não fora a tensão ou a sombra de uma súbita insegurança mas a voz portentosa de Camané e o torrencial talento de
Laginha nessa sintonia que milagrosamente pode por vezes
ocorrer entre dois criadores. Mas
passara também uma outra coisa que durante todo o espectáculo flutuou
silenciosamente sobre a plateia e depois ficou para todo o sempre inscrita nas
paredes daquela Casa e na memória da noite: passou a humildade, o imenso
respeito de ambos para ambos, a “rendição” recíproca que podíamos testemunhar
em cima do palco quando um falava do outro: “ninguém canta como ele”, dizia o
pianista sem parar de tocar, apenas levantando ligeiramente a cabeça e
interrompendo por uma fracção de segundo a oração que em conjunto rezava com o
piano. “E agora ouçam só este fado que o Mário compôs…” e Camané sai de cena e
deixa o palco entregue a Laginha e nascia o Fado Barroco… e por favor não
esqueçam este título, “Fado Barroco”
quando alguém se lembrar de o gravar, obrigação imperiosa. Ao princípio parece-nos Bach, ah, ele foi ao
Bach, afinal é um dos seus eleitos, pensei eu, mas logo a seguir já
estávamos capturados pelo fado: em vários tons, em vários sons, e eis um quase
divino esplendor barroco cruzado de fado e neles se encaixando um bom bocado de
nós, do que somos e fomos. Eu sei, um risco isto tudo, conheço um mar –
um oceano – de gente que boceja com a palavra fado e desdenha o conceito.
Falta-lhes qualquer coisa, uma pena. Ou então, sim talvez eu exagere um pouco,
há tempos alguém me mandou um sms que dizia apenas “se eu pudesse dava-lhe o
Nobel do Entusiasmo”.
Deve
ser isso, penso eu enquanto desço a vertigem de prata das escadas da Casa da
Música. Mas que seria de mim sem “isso”?
2 — É
muito divertido estar vivo na Rua de Santa Catarina, no Porto. Animada e popularíssima, tudo lá se passa, gente em
trânsito ininterrupto, aos pares ou aos cachos, num vai e vem de onde se solta,
imparável, o inconfundível sotaque nortenho. E lojas a perder de vista, um
imenso centro comercial a céu aberto, onde as marcas vizinham com retrosarias,
tabacarias, papelarias, mercearias e confeitarias e haverá mais simpático do
que apelidar de confeitaria aquilo que a sul, costumamos chamar sem
graça nenhuma, de pastelaria?
À
beira dos passeios, por entre passos apressados e esplanadas repletas, há uma banca
que só vende bonés, exclusivamente bonés, outra uns arremedos de bijuterias,
mais adiante outras exibindo quinquilharia, malas, adereços avulso, numa ousada
concorrência ao comércio com mais nome e outra idade. E há “artistas-mimos” que
mais do que dar um ar da sua graça mímica, dão um ar da sua extrema necessidade
e por isso são tão enternecedores; e músicos que ao entardecer enchem a rua de
sons melancólicos ou ruído metalizado e há comensais fora ou dentro das
confeitarias que apenas parecem ouvi-los com uma orelha distraída. É no meio
desta algazarra que mora uma jóia de renome e prestígio que descubro
maravilhada: o Grande Hotel do Porto (guardei a factura para os maledicentes do costume).
Passa-se a porta e eis-nos noutra época, entre seda drapreada, veludos
carmesins e móveis românticos. Uma cenografia. À entrada consta bronze
comemorativo de uma imperial estadia no Grande Hotel de D. Pedro II, último
Imperador do Brasil e de sua mulher, Thereza Cristina de Bourbon, Princesa das
Duas Sicílias, mas dentro a surpresa continua quando passo um corredor: de um e
de outro lado das paredes, impressivos elogios encaixilhados e devidamente
autografados de quem escolheu aquela morada ao longo de mais de um século. A
escolha é democrática, mas a redacção, ora vagarosa, ora veloz, da realeza, da
alta aristocracia europeia, de escritores, músicos, actores, literatos,
coincide no encanto e no elogio. Foi
o artista plástico Fernando Marques de Oliveira — que recentemente lá redesenhou e redecorou quartos e
outros espaços — quem me alertara que “não deixasse de ver toda aquela gente
nas paredes”. Lá estavam: Bourbon Parma, Orléans e Bragança, Baviera,
Bragança, Rothschild. Mas também o Dalai Lama ou D. Ximenes Bello, e também
Svatioslav Richter ou Maria João Pires. E António Ferro, Manuel de Oliveira,
Sttau Monteiro (que saudade Luís, que saudade), Mário Claudio e Lobo Antunes. E
Popov, La Féria, Diogo Infante. E Camané, claro, e como não?
3 – O
Porto é também Rui Moreira
que há muito não via. Conversamos ao almoço, ele com um prego no prato, eu com
um bife de mostarda, ele recusando as batatas fritas, eu devorando-as. Evoco as
próximas eleições, as possíveis alianças, a geringonça. Falo enfim dessa da
política que lhe corre no sangue perguntando-lhe se um dia quererá voar mais
alto mas chega a surpreender-me de tão taxativo: “não estou interessado em nada
politicamente, nem a nível partidário, nem nacional, tenho a certeza absoluta
disso!”
Nem
em recandidatar-se? Ui, falta “uma eternidade”, é cedo (“daqui a dois anos e
três meses, direi”), dois mandatos parece-lhe um “ciclo suficiente”. Em
condições “normais” (“ter concluído ou deixar irrevogavelmente encaminhado o
que entendeu como fundamental fazer”) voltará ao que gosta: quer escrever, ler
(“tenho lido pouco”), ver os amigos, fotografar, viajar e. bem entendido, estar
com os filhos, os netos, a mãe, os irmãos. Um vasto programa.
Há
porém algo onde é ainda mais taxativo: “desejo absolutamente que a mesma
sociedade civil que se juntou e organizou há seis anos para encontrar uma
candidatura independente — a minha — seja de novo capaz de se preparar para
encontrar uma nova solução, na qual porém entendo não ter qualquer espécie de
posição tutelar”.
Para
estar totalmente livre e poder vir a liderar o Futebol Clube do Porto? “
Ah…
o Presidente do Futebol Clube é eterno, vai lá ficar sempre…
” Uma
não-resposta que não ilude o rumor que circula. E com razão, como me
explicam: seria uma alternativa pacífica e uma candidatura bem vista. O
presidente da Câmara tem a paixão da sua cidade, é intrinsecamente “dali”,
conhecem-no, o povo estima-o sem precisar de recorrer a selfies. E last but not
least, é um “portista” ferrenho que se orgulha de uma camisola que nunca
despiu: a do Futebol Clube do Porto, justamente.
4 — A
qualquer lado onde vou lembro-me que ele poderia lá estar também. Miguel
Veiga faz falta. Há ausências que se nos
colam à pele. O Miguel faz falta naquele célebre quinto andar da Foz, onde
tanta vida ocorreu e decorreu e tantos mundos se fizeram e desfizeram, faz
falta por entre as suas mais de 400 telas, faz falta na varanda
debruçada sobre as brumas do Douro quando o rio casa com o oceano e cheira
sempre a maresia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário