Um texto impecável de pormenor e ponderação de Clara
Ferreira Alves, contendo informação inesperada – a da imagem sorridente de
uma nova “Singapura”, nas ambições dos
“brexiters”, para comparação com o seu Reino
Unido, enfim, orgulhosamente só, liberto de uma aliança que as ambições emotivas
da solidariedade primeira fizeram aceitar, e que os excessos de convulsão dessa
Europa indisciplinada fizeram desprezar. CFA refere o desvario desse confronto:
um país da Magna Carta e da Távola Redonda a simbolizá-la, desejando equiparar-se
àquele outro asiático, de uma ditadura sem mácula, a manter o seu esplendor dourado
à custa de uma máquina humana de eficiência e sossego temeroso. CFA adverte sobre a inviabilidade e os riscos.
Mas não sei se CFA tem totalmente
razão na apologia que faz à elegância moral do povo inglês de democracia
antiga, mas altivez e fleuma distanciadores. Almeida Garrett, por exemplo,
também conheceu desses ingleses ambiciosos e deles faz retrato menos optimista,
embora, é certo, aplicável a qualquer descendente de Adão que se preze:
«Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai
estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a
qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e
grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a hoje
vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as
considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei,
agiotai. — No fundo de tudo isto, o
que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos.
E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o
número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho
desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à
desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde,
depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de
almas que é preciso vender ao Diabo, o número de corpos que se têm de entregar
antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir
Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro — seja o que for: cada
homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis. (Almeida Garrett, Viagens na minha Terra, cap. III)
I
- A PLUMA CAPRICHOSA: “Brexit” time
Tudo indica que os britânicos já
perceberam que os brexiteers não têm uma ideia do que fazer com o «Brexit»,
excepto comparar a Grã-Bretanha a Singapura
CLARA FERREIRA ALVES
(EXPRESSO) E, 11/1/19
Parece que há políticos conservadores do Reino Unido, esse antigo pilar, que acreditam que
podem converter o país numa nova Singapura. Infere-se que depois de um hard Brexit, que só os defensores da saída preferem. Até há pouco tempo, tanto Theresa May como os seus ministros, incluindo Jeremy Hunt, não eram desta opinião. Por isso se empenharam num acordo com a União Europeia que suavizasse a catástrofe que aguarda os britânicos depois da saída, o empobrecimento acelerado, a instabilidade política e financeira e a queda da libra. Eis que o dito Hunt resolveu fazer um discurso em que se cola a Boris Johnson e Jacob Rees –Mogg, dois hard brexiters, e acena com elaborado singapurense. A comparação denota um profundo desconhecimento do que é Singapura, da sua historia politica e económica, da sua demografia e do seu sistema de governo. Não é apenas a teimosia de May, a querer salvar um inexistente legado, que põe o interesse pessoal à frente do interesse nacional. Juntam-se à teimosia e o desvairado estado de negação, a tentativa de Corbyn para se aproveitar das más decisões e desaires dos conservadores ganhando as eleições ou cimentando o poder no partido, quanto pior melhor, a ignorância dos hard brexiters, incluindo o ávido Boris Johnson, e o oportunismo declarado dos que decidem, de um dia para o outro, que chegou a sua vez de disputar a liderança e que não fará mal subscrever as opiniões dos adversários.
Ou seja, Theresa May não tem aliados, Corbyn é um brexiter envergonhado que passa por cima dos trabalhistas que o contrariam, os brexiters estão dispostos a afundar a Grã-Bretanha para terem razão, e o povo olha para o calendário com desespero. Estavam reunidas as condições para um segundo referendo, estando apurado que o primeiro foi ganho numa campanha baseada em mentiras e fantasias patrocinada pelos trolls do Putin e pela indigência política. Metade da
população ficou refém da outra metade e as circunstâncias mudaram. Tudo indica que os britânicos já perceberam que os brexiters não têm ideia do que fazer com o Brexit. Excepto comparar a Grã-Bretanha a Singapura. A dois meses da data de saída, o Reino Unido tornou-se uma conspiração de néscios.
Singapura parece ser um pequeno paraíso, com acento na palavra pequeno. Uma ilha com pouco mais de 700 km quadrados e menos de 6 milhões de habitantes, arrancada ao mar. Foi fundada por Stamford Raffles como entreposto comercial e cedida ao Raj Britânico como colónia. Na independência, uniu-se À Malásia para formar uma federação e separou-se dois anos depois, dois, por diferenças. Em 1965, era uma nação soberana e converteu-se num dos países mais avançados do mundo em apenas uma geração. Um exemplo em todos os índices de desenvolvimento . Como? Teve um formidável líder Lee Kuan Yew, que viu o futuro e criou as condições para o impor. Singapura é uma democracia parlamentar mas imperfeita, visto que o actual 1º ministro é filho de Lee Kuan Yew, e o seu partido ganha todas as eleições desde sempre. Na prática, uma dinastia comanda o destino de Singapura, e a oposição não é apenas desencorajada, é anulada ou proibida. O país é maravilhoso e regrado, mas a liberdade de expressão não é o seu forte. Nem a de reunião. Assim consegue o primeiro-ministro controlar o poder, combater a corrupção e dirigir a economia. Instituir regras de coexistência entre etnias e religiões e impor-lhes sanções por quebra das regras. Sanções pesadas que mantêm a paz social. O governo de Singapura instituiu um modelo de estado social único no planeta, que trata dos
sistemas de educação e saúde e do direito à habitação, investido largamente em infraestruturas. Como é isto possível se o país não tem recursos naturais? Fazendo da cidade-estado uma capital financeira de excelência, que acolhe o dinheiro chinês e asiático e beneficia do crescimento da China. A par da elite de milionários, os aristocráticos chineses dos Estreitos, que apesar de odiarem o comunismo de Pequim, não hesitam em negociar com ele e expandir as fortunas adquiridas no tempo colonial, os “Crazy rich Asians”. Singapura não têm pobres. E não os tem apesar de ter sido um prostíbulo e um porto de miseráveis, porque o país é minúsculo e possui uma força de trabalho com ética brutal. Em Singapura, trabalham-se muitas horas por dia e sem uma queixa ou protesto. Greves e movimentos sindicais inexistentes. O governo privatizou o que não interessava controlar, e os salários são altos. Qualquer sobressalto social é logo camuflado ou resolvido. Não existe nada que contrarie a força do primeiro-ministro, e o protesto é silencioso e secreto. O medo é uma força tão poderosa como a prosperidade. Por último, o budismo é a religião maioritária, a par com o capitalismo. E os budistas não têm uma weltanschauung igual à ocidental. O método e a atitude são outros, mais maleáveis e menos hostis.
Nada disto tem a Grã-Bretanha. Ouvir a maior democracia do mundo dizer que quer imitar o partido único, esquecendo o que é, e pondo de parte o outro partido, neste caso os trabalhistas, arrumando os problemas sociais do país em tratados comerciais a assinar e valorizando a força de trabalho inglesa, constituída largamente por imigrantes, incluindo europeus, é asinino. Londres, se fosse uma cidade-estado, que não é, nunca poderia comparar-se a Singapura. E o resto da Little Britain?
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