Na
recente polémica travada por uma editora de livros escolares – Porto Editora – houve, num
manual escolar, versos do poema “Ode
Triunfal” de Álvaro de Campos que foram amputados e
substituídos por tracejado, como juízos de valor condenando o que parece
ultrapassar convencionalismos pudibundos de uma sociedade preocupada com
preceitos de ética que o escritor não respeitou. A Porto Editora confirma
omissão mas nega “censura” à obra de Fernando Pessoa, segundo a
notícia de 14/1/19:
(A notícia foi avançada pelo Expresso este domingo. De acordo com o
semanário, três versos do poema “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos (heterónimo
de Fernando Pessoa), que contêm linguagem grosseira, foram censurados do manual
de português “Encontros”. Editora nega "censura", mas confirma
omissão no livro de aluno e justifica). Os versos retirados do manual escolar
de português para o 12.º ano "Encontros" da Porto Editora contêm
linguagem que pode ser considerada obscena, escreveu o semanário este domingo,
e foram substituídos por linhas a tracejado. De acordo com a publicação, o manual escolar da autoria de Noémia
Jorge, Cecília Aguiar, Miguel Magalhães faz parte das livros
aprovados pelo Ministério da Educação e foi escolhido por cerca de 90 escolas
em todo o país).
Nos
meus anos de docência, por cá, já há muito ultrapassados, sempre gostei dos
livros escolares da Porto Editora, pelo cuidado nas informações
orientadoras e propostas de trabalhos, como, de resto, hoje é frequente. No meu
tempo de estudante, os manuais de literatura constituíam apenas repositório de
textos dispostos por ordem cronológica, cuja interpretação provinha da nossa
leitura e acompanhamento do professor. Lembro-me de que o meu pai tinha um
manual de literatura do “Mendes dos Remédios” que fez as delícias da
minha formação de estudante liceal, o Manual de Literatura de Óscar
Lopes e António José Saraiva, já bem posteriores,
tais como as antologias por séculos literários da Ema Tarracha e
tantos outros estudos que foram aparecendo, Rodrigues Lapa, Joel
Serrão, Jacinto do Prado Coelho… e, mais recentemente outros
especialistas das técnicas de análise literária, como Aguiar e Silva,
e Carlos Reis, que contribuíram para graduais perspectivas de
análise literária, que os Manuais Escolares interpõem nos seus Manuais de
Literatura, além dos questionários com que abordam esses textos, para melhor
percepção dos alunos. Por isso apreciei esses manuais quando ensinei por cá e
estranho a polémica erguida provocatoriamente a partir de um tracejado censório.
Aliás, julgo que a escolha dos excertos da “Ode Triunfal” não precisavam de ter sido os citados, a
“Ode Triunfal” sendo toda ela uma provocação contra os conceitos
tradicionais de poesia, segundo os ideais do Futurismo,
substituindo o lirismo subjectivo, do ideal de beleza convencional - ameno
segundo o modelo clássico ou tempestuoso segundo o modelo romântico - por uma
arte de ruptura quer ao nível das temáticas – do real, do feio, do ruidoso e do
provocatório – quer ao nível formal - no uso do verso solto ou mesmo do
gramaticalmente incorrecto. Dessacralização da arte, se lhe chamou, e não
resisto a transcrever da Internet o Manifesto Futurista de Marinetti,
que Fernando Pessoa seguiu, nas Odes “Triunfal” e “Marítima”
de Álvaro de Campos, (associado a um discurso de tédio, náusea e
angústia, tão explorado, no sentimento do absurdo intransponível, da condição
humana):
Manifesto Futurista Filippo Tommaso Marinetti 20 de
fevereiro de 1909, publicado no jornal francês Le Figaro:
1-Nós pretendemos cantar
o amor ao perigo, o hábito da energia e a intrepidez. 2. Coragem,
audácia, e revolta serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Desde então a
literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono. Nós
pretendemos exaltar a acção agressiva, uma insónia febril, o progresso do
corredor, o salto mortal, o soco e tapa. 4. Nós afirmamos
que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a
beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes
canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que
parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia. 5. Nós queremos
cantar hinos ao homem e à roda, que arremessa a lança de seu espírito sobre a
Terra, ao longo de sua órbita 6. O poeta deve
esgotar a si mesmo com ardor, esplendor, e generosidade, para expandir o fervor
entusiástico dos elementos primordiais. 7. Excepto na
luta, não há beleza. Nenhum trabalho sem um carácter agressivo pode ser uma
obra de arte. Poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças
desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem. 8. Nós estamos
no último promontório dos séculos!... Porque nós deveríamos olhar para trás,
quando o que queremos é atravessar as portas misteriosas do Impossível? Tempo
e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a
velocidade, eterna, omnipresente. 9. Nós glorificaremos
a guerra — a única higiene militar, patriotismo, o gesto destrutivo daqueles
que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o escarnecer
da mulher. 10. Nós
destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o
moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária. 11. Nós
cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo
tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e
polifónicas nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor nocturno de
arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas eléctricas; estações de trem
cobiçosas que devoram serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens
por linhas tortas de suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas
gigantes, lampejando no sol com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros
que fungam o horizonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os
trilhos como o casco de enormes cavalos de aço freados por tubulações; e o voo
macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem
aplaudir como um público entusiasmado.
Não, não era necessário escolher os passos
citados pelos autores do Manual, para chamar a atenção sobre o excessivo de um
discurso de embriaguez delirante, sado-masoquista, que definiu o Álvaro de Campos futurista,
chamando a atenção para o conteúdo, substituído por traços censórios. A Ode Triunfal tem
tanto de espectacular que muitos outros passos poderiam ter sido escolhidos
para a percepção dos alunos. Como professora que fui, embora sem pretensões
moralistas, eu também preferiria ser poupada a partilhar com os alunos a
violência atrevida desses versos chamejantes de pústulas sociais expostas sem
preconceito.
Mas
do que discordo, acima de tudo, é da interpretação que o professor
universitário António Carlos Cortez faz, (pese embora a pertinência
geral dos seus argumentos), no parágrafo 3º, acerca da atitude de Campos,
de rejeitar o que descreve, afinal, como essência da sua poesia futurista: «Campos
derrama a raiva de saber que toda esta civilização da guerra, da banalidade e
da máquina corrompe o ideal clássico de outras eras.” Na verdade, não
julgo que tais excessos escatológicos provenham de um repúdio moralista de um Álvaro
de Campos indignado contra perversões ou projectos de escrita em que ele
próprio se empenhou, (não como criador mas como seguidor de projectos alheios),
mas que requintou em paroxismos de expressão. Almada Negreiros também expeliria
os seus ódios sociais na “Cena do Ódio”, por exemplo, que não tem, contudo, a
dimensão da poesia de A. Campos. Porque neste o que predomina, apesar do
alarido que descreve, da civilização moderna, como tema poético de uma nova
escola, é todo um rebuscamento de dor sincera, e infinitamente reproduzida, em
torno do inútil esbracejar humano, perante o absurdo existencial, e de que o
poema “Tabacaria” constitui obra prima, (mau grado toda uma consciência
pessoana do paradoxo entre a dor sentida e a descrita: «O
poeta é um fingidor. Finge tão
completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente…»
Cultura-Ípsilon OPINIÃO
Álvaro de Campos e uns versos:
manuais escolares entre a censura e a incúria?
Não é só a amputação de textos
literários que devemos lamentar – é a superficialidade das propostas de
trabalho e um sistema educativo que não preza a memória e a historicidade dos
textos literários.
Poeta, crítico literário e professor
PÚBLICO
17 de Janeiro de 2019
A recente
polémica sobre os versos 81 e 82 da Ode Triunfal não tem
razão de ser. Trata-se de
um caso típico de erros e usurpações que se inscrevem na péssima tradição
dos manuais escolares que, independentemente da chancela editorial, truncam ou
alteram textos, catalogam ou deslocam para períodos literários errados certos
autores e obras. Num manual do ano 2002, Ramos Rosa, por exemplo,
aparecia numa tábua de autores do século XX como poeta central da "Poesia
Experimental". O caso da Ode Triunfal apenas
confirma o menoscabo a que a poesia, em particular, está votada na leccionação
do Português. Por isso se espantaram (nos casos mais autênticos) os alunos ao
ouvir a ode de Campos, e por isso se indignaram (nos casos mais hipócritas)
aqueles que falam em censura. Seja como for, duas respostas próprias de quem,
no fundo, desconhecia o texto. E aqui é que está o ponto.
Na
verdade, esta polémica cai pela base se recuarmos no tempo e folhearmos alguns
manuais dos anos oitenta e noventa. Tenho à minha mão o manual adoptado em
1995, Letras Portuguesas, edições Asa,
dirigido aos alunos de Português A, isto é, aos que seguiam as Humanidades.
Nesse poema central da evolução estilística de Campos, os versos que dizem
respeito à actual polémica ("E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto
belo e amo-o! - / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada",
além dum outro onde se referem pândegos e putas) foram substituídos por uma
linha a tracejado. Mas à época o professor responsável pela disciplina
mostrou-nos a versão integral e, com auxílio de um texto crítico de Jacinto
do Prado Coelho, esclareceu as razões pelas quais aquela ode triunfal tinha de
ser escrita num estilo incisivo e mordaz, revoltado e torrencial.
Com
efeito, este é um poema de invectiva contra toda a sorte de vícios e de sinais
de degenerescência da civilização europeia, legitimando, inclusivamente, que o
engenheiro igualmente condene (sob a aparência de um triunfalismo da máquina e
da indústria) aquela "fauna e flora totalmente desconhecida dos
antigos". Ironiza-se o binómio de Newton na comparação com a Vénus de
Milo. Sarcástico e em convulsões, o sujeito dirige a sua verve aos motores e aos
maquinismos sádicos de guindastes lúbricos. Ode anti-triunfal porque na
"flora estupenda, negra, artificial e insaciável" há a promiscuidade
de quem quer rasgar-se todo e abrir-se a todos os "perfumes de óleos e
calores e carvões". Num estilo estrepitoso e virulento porque o futurista
Campos, discípulo de Whitman, mas contemporâneo de Marinetti, escreve
febrilmente "rangendo os dentes", Campos
derrama a raiva de saber que toda esta civilização da guerra, da banalidade e
da máquina corrompe o ideal clássico de outras eras. Um verso final comprova a impossibilidade de
redenção: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!". Não leu
Pessoa Thomas Carlyle e a sua noção de génio? O ser tudo de todas as maneiras
não se relaciona com a procura de diferentes linguagens e ideias para cada um
dos seus heterónimos? E não é a decadência o conceito operatório de finais de
oitocentos e de inícios do século XX?
Espanta,
por isso, tamanha discussão. Grave é que no manual adoptado, na versão para os
alunos, estes versos não estejam consagrados, porque tal ausência vai contra o
espírito das "aprendizagens essenciais", à luz do qual os alunos
devem fruir em pleno os textos do património literário português. Grave se os
professores, tomados da mesma surpresa dos alunos, não leram a versão reservada
a quem ensina e onde a ode vem na íntegra. O que fica como indício é que, não
fora os alunos terem ouvido o suporte áudio que acompanha este poema e nem
sequer suspeitariam (porque ninguém lhes diria?, porque nas aulas não se
analisam metodicamente os textos?) da existência daqueles versos
necessariamente veementes e obscenos.
Mas perguntemo-nos que poemas de Pessoa e não só de Pessoa estão amputados nos
manuais de agora. No limite, que autores e obras são verdadeiramente
respeitados (isto é: lidos e comentados a sério) hoje? Bastaria comparar os
manuais da Aster (anos 60 e 70) com os da actualidade e ver o emagrecimento dos
conteúdos literários e históricos e a infantilização em curso desde há uns bons
20 anos a esta parte... Infantilização que se agudizou desde a reforma de
1996... Sinais dos tempos?
Num
manual diferente, o da Santillana, só três poemas de O Guardador de Rebanhos são
contemplados: o I, o II e o IX andamentos. Por que razão não se lê o VIII poema
de O Guardador? Talvez
porque, quando o menino Jesus de Caeiro, descendo num raio de sol, anuncia a
verdade suprema, se afirme que Deus é um velho sempre a escarrar no chão.
Talvez porque aí Santa Maria seja uma mala que veio do céu e que o Espírito
Santo "era a pomba mais estúpida do mundo"? Desconfio que os novos censores deste tempo acéfalo e sem
memória defendam a obliteração deste e doutros versos... Bem vistas as coisas,
falamos de desconhecimento dos textos por parte da Escola, não por apenas
determinadas escolas. Com a velocidade a que se tem de "dar Pessoa",
"dar Torga", "dar O’Neill", "dar Eça" ou dar qualquer outro conteúdo do
programa, não espanta que a literatura surpreenda e agite as consciências
quando é descoberta. Desconfio também
que um poema longo como O Sentimento dum Ocidental igualmente
não esteja na íntegra (ou nem sequer seja contemplado) em diversos manuais... E
fala-se de "educação literária"...
Este
erro apontado à Porto Editora pode ser assacado a outros grupos editoriais. No
fundo, não é só a amputação de textos literários que devemos lamentar – é a
superficialidade das propostas de trabalho e um sistema educativo que não preza
a memória e a historicidade dos textos literários. Esse desprezo pelos textos é
transversal a muitos manuais. Uma colecção antiga, a dos Textos Literários, da Editorial
Comunicação, dirigida e coordenada por Maria Alzira Seixo, eis um bom exemplo
de manuais. Em tempo de censuras subtis e várias, voltar a ler impõe-se: reler,
compreender o contexto de produção, cultivar a leitura integral para que as
aprendizagens sejam essenciais.
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