sábado, 19 de janeiro de 2019

Dessacralização da arte

Na recente polémica travada por uma editora de livros escolares – Porto Editora – houve, num manual escolar, versos do poema “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos que foram amputados e substituídos por tracejado, como juízos de valor condenando o que parece ultrapassar convencionalismos pudibundos de uma sociedade preocupada com preceitos de ética que o escritor não respeitou. Porto Editora confirma omissão mas nega “censura” à obra de Fernando Pessoa, segundo a notícia de 14/1/19:
(A notícia foi avançada pelo Expresso este domingo. De acordo com o semanário, três versos do poema “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), que contêm linguagem grosseira, foram censurados do manual de português “Encontros”. Editora nega "censura", mas confirma omissão no livro de aluno e justifica). Os versos retirados do manual escolar de português para o 12.º ano "Encontros" da Porto Editora contêm linguagem que pode ser considerada obscena, escreveu o semanário este domingo, e foram substituídos por linhas a tracejado. De acordo com a publicação, o manual escolar da autoria de Noémia Jorge,  Cecília Aguiar, Miguel Magalhães faz parte das livros aprovados pelo Ministério da Educação e foi escolhido por cerca de 90 escolas em todo o país).
Nos meus anos de docência, por cá, já há muito ultrapassados, sempre gostei dos livros escolares da Porto Editora, pelo cuidado nas informações orientadoras e propostas de trabalhos, como, de resto, hoje é frequente. No meu tempo de estudante, os manuais de literatura constituíam apenas repositório de textos dispostos por ordem cronológica, cuja interpretação provinha da nossa leitura e acompanhamento do professor. Lembro-me de que o meu pai tinha um manual de literatura do “Mendes dos Remédios” que fez as delícias da minha formação de estudante liceal, o Manual de Literatura de Óscar Lopes e António José Saraiva, já bem posteriores, tais como as antologias por séculos literários da Ema Tarracha e tantos outros estudos que foram aparecendo,  Rodrigues Lapa, Joel Serrão, Jacinto do Prado Coelho… e, mais recentemente outros especialistas das técnicas de análise literária, como Aguiar e Silva, e Carlos Reis, que contribuíram para graduais perspectivas de análise literária, que os Manuais Escolares interpõem nos seus Manuais de Literatura, além dos questionários com que abordam esses textos, para melhor percepção dos alunos. Por isso apreciei esses manuais quando ensinei por cá e estranho a polémica erguida provocatoriamente a partir de um tracejado censório. Aliás, julgo que a escolha dos excertos da “Ode Triunfal” não precisavam de ter sido os citados, a “Ode Triunfal” sendo toda ela uma provocação contra os conceitos tradicionais de poesia, segundo os ideais do Futurismo, substituindo o lirismo subjectivo, do ideal de beleza convencional - ameno segundo o modelo clássico ou tempestuoso segundo o modelo romântico - por uma arte de ruptura quer ao nível das temáticas – do real, do feio, do ruidoso e do provocatório – quer ao nível formal - no uso do verso solto ou mesmo do gramaticalmente incorrecto. Dessacralização da arte, se lhe chamou, e não resisto a transcrever da Internet o Manifesto Futurista de Marinetti, que Fernando Pessoa seguiu, nas Odes “Triunfal” e “Marítima” de Álvaro de Campos, (associado a um discurso de tédio, náusea e angústia, tão explorado, no sentimento do absurdo intransponível, da condição humana):
Manifesto Futurista Filippo Tommaso Marinetti 20 de fevereiro de 1909, publicado no jornal francês Le Figaro:
 1-Nós pretendemos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e a intrepidez. 2. Coragem, audácia, e revolta serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Desde então a literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono. Nós pretendemos exaltar a acção agressiva, uma insónia febril, o progresso do corredor, o salto mortal, o soco e tapa. 4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia. 5. Nós queremos cantar hinos ao homem e à roda, que arremessa a lança de seu espírito sobre a Terra, ao longo de sua órbita 6. O poeta deve esgotar a si mesmo com ardor, esplendor, e generosidade, para expandir o fervor entusiástico dos elementos primordiais. 7. Excepto na luta, não há beleza. Nenhum trabalho sem um carácter agressivo pode ser uma obra de arte. Poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem. 8. Nós estamos no último promontório dos séculos!... Porque nós deveríamos olhar para trás, quando o que queremos é atravessar as portas misteriosas do Impossível? Tempo e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a velocidade, eterna, omnipresente. 9. Nós glorificaremos a guerra — a única higiene militar, patriotismo, o gesto destrutivo daqueles que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o escarnecer da mulher. 10. Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária. 11. Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifónicas nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor nocturno de arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas eléctricas; estações de trem cobiçosas que devoram serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos de aço freados por tubulações; e o voo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado.
Não, não era necessário escolher os passos citados pelos autores do Manual, para chamar a atenção sobre o excessivo de um discurso de embriaguez delirante, sado-masoquista, que definiu o Álvaro de Campos futurista, chamando a atenção para o conteúdo, substituído por traços censórios. A Ode Triunfal tem tanto de espectacular que muitos outros passos poderiam ter sido escolhidos para a percepção dos alunos. Como professora que fui, embora sem pretensões moralistas, eu também preferiria ser poupada a partilhar com os alunos a violência atrevida desses versos chamejantes de pústulas sociais expostas sem preconceito.
Mas do que discordo, acima de tudo, é da interpretação que o professor universitário António Carlos Cortez faz, (pese embora a pertinência geral dos seus argumentos), no parágrafo 3º, acerca da atitude de Campos, de rejeitar o que descreve, afinal, como essência da sua poesia futurista: «Campos derrama a raiva de saber que toda esta civilização da guerra, da banalidade e da máquina corrompe o ideal clássico de outras eras.” Na verdade, não julgo que tais excessos escatológicos provenham de um repúdio moralista de um Álvaro de Campos indignado contra perversões ou projectos de escrita em que ele próprio se empenhou, (não como criador mas como seguidor de projectos alheios), mas que requintou em paroxismos de expressão. Almada Negreiros também expeliria os seus ódios sociais na “Cena do Ódio”, por exemplo, que não tem, contudo, a dimensão da poesia de A. Campos. Porque neste o que predomina, apesar do alarido que descreve, da civilização moderna, como tema poético de uma nova escola, é todo um rebuscamento de dor sincera, e infinitamente reproduzida, em torno do inútil esbracejar humano, perante o absurdo existencial, e de que o poema “Tabacaria” constitui obra prima, (mau grado toda uma consciência pessoana do paradoxo entre a dor sentida e a descrita: «O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente…»

Álvaro de Campos e uns versos: manuais escolares entre a censura e a incúria?
Não é só a amputação de textos literários que devemos lamentar – é a superficialidade das propostas de trabalho e um sistema educativo que não preza a memória e a historicidade dos textos literários.
Poeta, crítico literário e professor    
 PÚBLICO 17 de Janeiro de 2019
A recente polémica sobre os versos 81 e 82 da Ode Triunfal não tem razão de ser. Trata-se de um caso típico de erros e usurpações que se inscrevem na péssima tradição dos manuais escolares que, independentemente da chancela editorial, truncam ou alteram textos, catalogam ou deslocam para períodos literários errados certos autores e obras. Num manual do ano 2002, Ramos Rosa, por exemplo, aparecia numa tábua de autores do século XX como poeta central da "Poesia Experimental". O caso da Ode Triunfal apenas confirma o menoscabo a que a poesia, em particular, está votada na leccionação do Português. Por isso se espantaram (nos casos mais autênticos) os alunos ao ouvir a ode de Campos, e por isso se indignaram (nos casos mais hipócritas) aqueles que falam em censura. Seja como for, duas respostas próprias de quem, no fundo, desconhecia o texto. E aqui é que está o ponto.
Na verdade, esta polémica cai pela base se recuarmos no tempo e folhearmos alguns manuais dos anos oitenta e noventa. Tenho à minha mão o manual adoptado em 1995, Letras Portuguesas, edições Asa, dirigido aos alunos de Português A, isto é, aos que seguiam as Humanidades. Nesse poema central da evolução estilística de Campos, os versos que dizem respeito à actual polémica ("E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! - / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada", além dum outro onde se referem pândegos e putas) foram substituídos por uma linha a tracejado. Mas à época o professor responsável pela disciplina mostrou-nos a versão integral e, com auxílio de um texto crítico de Jacinto do Prado Coelho, esclareceu as razões pelas quais aquela ode triunfal tinha de ser escrita num estilo incisivo e mordaz, revoltado e torrencial.
Com efeito, este é um poema de invectiva contra toda a sorte de vícios e de sinais de degenerescência da civilização europeia, legitimando, inclusivamente, que o engenheiro igualmente condene (sob a aparência de um triunfalismo da máquina e da indústria) aquela "fauna e flora totalmente desconhecida dos antigos". Ironiza-se o binómio de Newton na comparação com a Vénus de Milo. Sarcástico e em convulsões, o sujeito dirige a sua verve aos motores e aos maquinismos sádicos de guindastes lúbricos. Ode anti-triunfal porque na "flora estupenda, negra, artificial e insaciável" há a promiscuidade de quem quer rasgar-se todo e abrir-se a todos os "perfumes de óleos e calores e carvões". Num estilo estrepitoso e virulento porque o futurista Campos, discípulo de Whitman, mas contemporâneo de Marinetti, escreve febrilmente "rangendo os dentes", Campos derrama a raiva de saber que toda esta civilização da guerra, da banalidade e da máquina corrompe o ideal clássico de outras eras. Um verso final comprova a impossibilidade de redenção: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!". Não leu Pessoa Thomas Carlyle e a sua noção de génio? O ser tudo de todas as maneiras não se relaciona com a procura de diferentes linguagens e ideias para cada um dos seus heterónimos? E não é a decadência o conceito operatório de finais de oitocentos e de inícios do século XX?
Espanta, por isso, tamanha discussão. Grave é que no manual adoptado, na versão para os alunos, estes versos não estejam consagrados, porque tal ausência vai contra o espírito das "aprendizagens essenciais", à luz do qual os alunos devem fruir em pleno os textos do património literário português. Grave se os professores, tomados da mesma surpresa dos alunos, não leram a versão reservada a quem ensina e onde a ode vem na íntegra. O que fica como indício é que, não fora os alunos terem ouvido o suporte áudio que acompanha este poema e nem sequer suspeitariam (porque ninguém lhes diria?, porque nas aulas não se analisam metodicamente os textos?) da existência daqueles versos necessariamente veementes e obscenos. Mas perguntemo-nos que poemas de Pessoa e não só de Pessoa estão amputados nos manuais de agora. No limite, que autores e obras são verdadeiramente respeitados (isto é: lidos e comentados a sério) hoje? Bastaria comparar os manuais da Aster (anos 60 e 70) com os da actualidade e ver o emagrecimento dos conteúdos literários e históricos e a infantilização em curso desde há uns bons 20 anos a esta parte... Infantilização que se agudizou desde a reforma de 1996... Sinais dos tempos? 
Num manual diferente, o da Santillana, só três poemas de O Guardador de Rebanhos são contemplados: o I, o II e o IX andamentos. Por que razão não se lê o VIII poema de O Guardador? Talvez porque, quando o menino Jesus de Caeiro, descendo num raio de sol, anuncia a verdade suprema, se afirme que Deus é um velho sempre a escarrar no chão. Talvez porque aí Santa Maria seja uma mala que veio do céu e que o Espírito Santo "era a pomba mais estúpida do mundo"? Desconfio que os novos censores deste tempo acéfalo e sem memória defendam a obliteração deste e doutros versos... Bem vistas as coisas, falamos de desconhecimento dos textos por parte da Escola, não por apenas determinadas escolas. Com a velocidade a que se tem de "dar Pessoa", "dar Torga", "dar O’Neill", "dar Eça" ou dar qualquer outro conteúdo do programa, não espanta que a literatura surpreenda e agite as consciências quando é descoberta. Desconfio também que um poema longo como O Sentimento dum Ocidental igualmente não esteja na íntegra (ou nem sequer seja contemplado) em diversos manuais... E fala-se de "educação literária"...

Este erro apontado à Porto Editora pode ser assacado a outros grupos editoriais. No fundo, não é só a amputação de textos literários que devemos lamentar – é a superficialidade das propostas de trabalho e um sistema educativo que não preza a memória e a historicidade dos textos literários. Esse desprezo pelos textos é transversal a muitos manuais. Uma colecção antiga, a dos Textos Literários, da Editorial Comunicação, dirigida e coordenada por Maria Alzira Seixo, eis um bom exemplo de manuais. Em tempo de censuras subtis e várias, voltar a ler impõe-se: reler, compreender o contexto de produção, cultivar a leitura integral para que as aprendizagens sejam essenciais.

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