É a história de uma família de
retornados de Angola, bem expressiva do monstruoso que foi o processo de
descolonização perpetrado em tempo próprio, cerca de 40 anos antes da
publicação do romance odisseico “O Retorno”, de Maria Dulce Cardoso,
em 1ª edição,
em 2012, por “Edições
tinta da china Lda”, sendo a edição que sigo, por oferta natalícia amiga,
já a 6ª,
de 2016. Isso traduz bem o apreço por esta pequena obra-prima portuguesa
contemporânea, consequente de uma mudança ideológica aparentemente efectiva, no
país que hoje democraticamente – ou por frustração económica, sobretudo, - a
aceita, o que não teria podido suceder nesses tempos da acção do livro, os
ódios despoletados contra os colonialistas exploradores dos pretos e apenas
isso, na visão extremista que os mais refinados mantêm ainda.
É seu narrador, Rui, um
adolescente, igualmente protagonista de um enredo real, que Maria Dulce Cardoso faz
recriar, em perfeita ciência narrativa, aliando uma acção atropelada, de
referências circulares, de recuos e avanços, e simultaneamente progressivas, a
um discurso de igual dimensão – os diálogos enfiados no processo narrativo
monologante, numa descontinuidade “alinhada”, segundo o avolumar dos
pensamentos, aspirações, comentários e revelações, de pontuação as mais das
vezes inexistente, subentendida, dramática, a banalidade dos actos comezinhos
ou a puerilidade das falas a tomar dimensões de caricatura, pelo trágico da sua
precariedade: “A mãe insiste para
que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor
dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira
fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o
avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne
assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao
afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita e ajeita as
côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes
de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros
que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na
sala. Ficamos num silêncio tão cerimonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto.” (inícios, I Parte).
E assim se
vão descobrindo, nos gestos referenciados dum presente evocativo, as
características psicológicas transparecendo neste dar-se conta de uma
tragicomédia comum a milhares de famílias que uma descolonização apressada e
traiçoeira fez partir de cambulhada das terras outrora descobertas, ainda
ligadas a uma Metrópole que a nova cartilha mandava abandonar, por “bondade”
manifestamente precária. Esta, uma família composta de pai – o pai - (Mário, ficamos a
sabê-lo no final do primeiro capítulo, por designação do tio Zé, que os
levou ao aeroporto, mãe – a mãe – com
problemas nervosos – a irmã (Maria de Lurdes, nas zangas do
pai, Milucha, na ternura do irmão). A fiel Pirata, que o pai
matará, antes de ele próprio embarcar, muito mais tarde. O pai, que é levado
preso pelos pretos, nesse mesmo dia do embarque, enfrentando-os numa coragem
que marcará o filho. O final do primeiro capítulo, exemplo a fixar, de semelhantes
retornos:
«É a nossa
vez, o tio Zé acabou de dizer, é a vossa vez, olhamos uns para os outros
assustados, o tio Zé sem responder quando a minha irmã pergunta, e o pai. Os
pretos a rirem quando o jipe arranca.
Venham, o
tio Zé abre os braços para tentar levar-nos, a mãe finca os pés no chão
abraçada a si mesma, o Mário ainda não chegou, tenho de esperar pelo Mário. A
arma do pai nas mãos do preto.
O tio Zé
empurra-nos, o Mário vai depois, mana, se perdem a vossa vez, nunca mais saem
daqui, não vês esta gente toda à espera de lugar, não podem perder a vossa vez,
o tio Zé sem ligar ao que lhe digo, não podemos deixar o pai sozinho. A arma do
pai apontada à cabeça.
O tropa
manda-nos avançar para a pista, o avião está à nossa frente, enorme e
brilhante, gente e mais gente até ao avião que vai levar-nos, as escadas do
Avião estão descidas. A mãe a correr por dentro da poeira que não assenta.»
(Final da I Parte)
Uma segunda parte,
subdividida: Até à chegada do pai, cuja morte Rui temeu, o espaço do Hotel que
o IARN pôs à disposição dos retornados sem família a recebê-los, situado numa
zona do Estoril, hotel com piscina (em breve esvaziada), onde se discriminavam
os hóspedes primeiros, com deferências que naturalmente se não tinham para com
os invasores, que se desprezavam por razões várias, segundo o discurso frontal
de Rui, por vezes os pretos atendidos com mais consideração do que os brancos
seus “carrascos” do passado. A chegada inesperada do pai e projectos de futuro,
com mudança para uma casa “enfezada” e um empréstimo ao IARN como projecto de
recomeço de trabalho e vida constituem a segunda subdivisão do espaço
Metrópole, neste enredo de acção aberta.
Um narrador, pois, que cresce
numa adolescência de amores e ódios, a definir-se em experiências de
sexualidade e eventual mergulho em experiências de fumo e drogas, mas também
carinho pela mãe e irmã, de quem se sente o amparo, na ausência do pai, cuja
morte tem como certa, e por amor das quais pensa apossar-se do conteúdo de dois
contentores para angariar dinheiro que os levará à América. Todo um panorama de
figuras que perpassam na acção do livro, os seus amigos de Angola e os de cá,
os colegas da escola, as roupas desengraçadas das distribuições esmoleres, a
cena dramática da mãe com um penhorista espoliador e indiferente, acabado o
escasso dinheiro trazido de Angola, as diferenças entre os retornados de Angola
e os de Moçambique, estes mais pedantes, as conversas nas reuniões plenárias no
próprio hotel, de acusações mútuas - entre os retornados acusadores dos
traidores Rosa Coutinho, Otelo, Mário Soares, cujos nomes são raivosamente
deturpados, e os que acusam os retornados de racistas e espoliadores dos pretos…
Todo um borbulhar de andanças
e factos e falas e anseios, tantas vezes em calão, em mistura de momentos, de
analepses e prolepses contínuas, bem significativas de uma panorâmica de vendaval
que tudo levou, de cambulhada, em tempo próprio.
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