Sem comentários, que o tempo é de crise.
PSD A importância da regra do jogo /premium
Eis Montenegro, com uma velocidade igual
á infelicidade: que o faz correr agora? Mas o que ele disse foi inversamente
proporcional ao estrépito com que galopou para a sela do PSD (que não a do
país).
1 – As democracias não gostam muito que as
maltratem, começam a dar de si. E se estão cansadas como a nossa, esgarçam,
como os tecidos velhos. E abrem buracos. Luís Montenegro abriu mais um, na semana passada. Eu bem sei que o meu
lado excessivamente institucional se dá mal com a tentação dos fora-de-jogo em
que a politica por vezes tropeça, preferindo-lhes eu essa coisa mais prosaica
que é o jogo democrático: com as regras, costumes, calendários da democracia que
embora a custo, ainda vai vigorando. Não se trata de hipervalorizar meros
regulamentos ou enaltecer que a saúde e a vitalidade de um sistema democrático
neles se esgotem. Falo antes de uma certa (e mais digna) lógica nos
comportamentos políticos, da necessidade de mais substância e menos
aparelhismo, de mais maturidade e menos pressa oportunística. Do valor do
exemplo. Não vale tudo. Já víramos
António Costa enxotar Seguro de uma liderança socialista deficiente; vimo-lo
depois enterrar os votos nacionais – pulmão do organismo democrático – de quem
chegara em primeiro lugar e sobre esse chão erguer um edifício político, tão
legal quanto ferido de legitimidade politica mas era o preço. Assistiu-se com
pasmo e pena ao “downgrading” do Parlamento, onde todas as astúcias e abusos
parecem prática corrente nos senhores deputados da nação e consentida por quem
deles é suposto velar. E hoje eis Montenegro “acting” por sua
conta, com uma velocidade só igual á infelicidade da dúvida
que suscita: que o faz correr agora? E porquê agora e agora como? Esqueceu-se
de nos dizer. E o que disse foi inversamente proporcional ao estrépito com que
galopou para a sela do PSD (que não a do país). O espectáculo das palavras e
dos actos permite porém uma (quase) certeza: tudo ficará igual, mesmo que de
início também permita a ilusão de não parecer igual.
2 – António Costa esperou porém que o outro António, detestado rival que
lhe empatava a entrada no portão do poder, representasse a família socialista
nas eleições europeias desse ano: a democracia seguiu o seu rumo normal. Depois
foi-lhe inteiramente indiferente que o resultado não tivesse sido sequer
vexatório para o PS: ele, Costa, não podia esperar, perdia de vez, a sua vez.
Mas o que interessa é que Seguro, fraco líder da oposição socialista como é
hoje Rui Rio, foi a votos: seguiu-se o preceito e a regra, houve avaliação
política, o eleitorado falou.
No
caso de Montenegro, não: ele e as suas tropas (quem? quais? onde?) tiveram o
exclusivo da avaliação. Diz-se que é a política pura e dura, evocam-se grandes
substantivos como “desafio”, louva-se a “coragem”. Reina a excitação e o
aplauso. Sucede que surge como duvidoso que um militante apressado — mesmo que
credenciado, mesmo considerando ele que o seu estatuto de público adversário
político de Rio lhe legitima o gesto — decida de pé para a mão, que o seu
partido corre o risco de definhar até a irreversibilidade; decida apear agora a
liderança, decidindo de caminho que é ele que merece ocupar-se dela.
Subvertendo — anulando — a votação no último acto eleitoral interno do PSD,
preferindo-lhe a plateia do país. Se Luís Montenegro no Congresso que vitoriou
Rui Rio já discordava dele, como aliás sinalizou na sua veemente intervenção,
porque optou então por um discurso e não por um confronto directo?
Fê-lo
para ir marcando lugar? Para poder vir a dizer que “já nessa altura… etc”?
Fê-lo porque está a pensar nele acima de todas as coisas? Não sei. Mas sei que
há neste seu timing — e no resto — qualquer coisa de, digamos, algo bizarro.
3 — Já mais que bizarra é actuação de Rui Rio. O fundo da sua actuação
mas também a forma: a démarche, a rota incerta, as ideias esparsas, a escolha
das prioridades, os silêncios, as omissões, as pausas, as equipas. É até mais
inclassificável que outra coisa, porque nunca se percebe bem de que se trata,
onde ele se posiciona exactamente, o que quer e com quem. O que é tanto mais
gravoso quanto “se” tinha como certo que Rui Rio redimiria o partido do débil
oposicionista que era Passos Coelho: não faria o novo oposicionista Rio ouvir o
canto dos amanhãs gloriosos no PSD?
Não fez, nunca fez, sem que porém nem
por um minuto apeteça desconfiar da sua seriedade. Ou duvidar que tenha algo de
parecido com uma visão – a sua – para o país. O que não facilita as coisas de
resto, nem a compreensão delas. Um
caso? Ou “mais um caso”? (E quem esqueceu o massacre sobre Luís Filipe Meneses,
por exemplo, e outros massacres?) Revivendo
a tumultuosa história do PSD e a sua insubordinada vida, recordando a sua
matriz de permanente confronto interno; as variadas procissões de reis mortos,
reis postos, as pródigas e prodigiosas encenações de que sempre foi capaz,
dir-se-á que é mais um caso. Mas se recuso absolutamente esboroar a história do
PSD, aprisionando-o nessa saga acidentada, esquecendo o seu formidável legado
reformista, a sua definitiva importância nas últimas quatro décadas da vida do
país, uma influência marcante na sociedade portuguesa, não duvido a que ponto
estes episódios ensombram a boa herança: delapidando-a sem piedade, nem
necessidade. Já pouco resta, dada a amplitude e a ferocidade da doença, e o que
cada vez mais resta são episódios, muito mais que política. Talvez eu exagere e
tudo não passe de um pé de vento. Mais um. Não sei. Sei que estamos cansados.
“Estamos”, quem?
Os cansados sabem (e os que assinam
textos tão impopulares como este, também sabem).
PS:
E pensar como tudo o que acima escrevi é desinteressante e medíocre face ao
que a Grã-Bretanha deixou ontem à noite na Europa e no mundo: mais perguntas
sem respostas afogadas num mar de incerteza.
RUI RIO: A crise do
PSD é a crise de todo o regime /premium
Rio não se distingue dos seus rivais no PSD por quaisquer ideias, mas
por uma estratégia – ou melhor, por uma manha. Esta é clara: hostilização
àquilo que ele trata como “direita”, e aproximação ao PS
A oposição nunca foi fácil para líderes
do PS ou do PSD. São partidos de governo, feitos para distribuir lugares
e definir políticas. Líder que não possa ou não pareça capaz de uma coisa ou
outra não está destinado a ter descanso. Tudo isso é verdade. Mas é no entanto
uma ilusão pensar que as aflições de Rui Rio se devem simplesmente à compilação
das listas de deputados. Mesmo que a motivação de alguns dos protagonistas, dos
vários lados, não suba muito acima desse rés-do-chão, está em causa muito mais do que isso.
Rui
Rio não se distingue dos seus rivais no PSD por quaisquer ideias, mas por uma
estratégia – ou melhor, por uma manha. Esta é clara: hostilização àquilo que
ele trata como “direita”, e aproximação ao Partido Socialista. Nada disto
é muito novo: apresentar o PSD como um “partido de centro-esquerda” ou “social
democrata” teve sempre, desde os anos 70, uma única razão: facilitar um entendimento com o PS. É por isso que, como
confessou Manuela Ferreira Leite, é preferível que o PSD seja “pequeno” do que
seja de “direita”. De facto, o
tamanho aqui não conta mesmo: bastará ter os deputados suficientes para serem
úteis ao governo socialista.
Admitamos que Rio tem as suas razões
para esta opção. A incapacidade do PSD para formar uma maioria parlamentar com
o CDS em 2015 e a retracção autárquica de 2017 tê-lo-ão persuadido de que o
PSD, para voltar ao poder, precisava de colar-se ao PS, passar de rival a
cooperante da governação socialista. Para o PS, tudo isto é lisonjeiro, na
medida em que parece reconhecer a sua velha aspiração de definir o sistema à volta de um partido
dominante — o PS, claro — rodeado de
partidos pequenos à direita e à esquerda. Mas mais do que a relação entre
os partidos, esta estratégia define a relação do regime com o país: é a da gestão dos interesses e clientelas
instaladas, através do controle de todos os poderes e da partilha de recursos
entre os partidos. As grandes obsessões de Rio com a submissão do
Ministério Público e a regionalização do Estado vão nesse sentido.
O
PSD, porém, já foi outra coisa: um partido capaz de mobilizar as aspirações do
país contra os situacionismos aquartelados no Estado. É por
isso que as comparações de Rio com Sá Carneiro estão erradas. A liderança de Sá Carneiro, quando
finalmente se afirmou no PSD – e isso só aconteceu em 1979 — não foi uma
questão de temperamento, mas de estratégia: fazer do PSD a base para
agregar a área não-socialista e gerar um mandato eleitoral reformista. Sem esse
PSD, não teria havido as revisões constitucionais de 1982 e de 1989, que
configuraram o actual regime, nem as mudanças que permitiram aos portugueses,
na passagem dos anos 80 para 90, tirar partido da entrada na CEE.
Hoje, a questão não é diferente: sem
um grande partido capaz de liderar os debates e os compromissos necessários
para fazer reformas, é improvável que a sociedade consiga, por si própria,
mudar o Estado clientelar cujos custos a têm impedido de explorar a
globalização no século XXI. É isso que
a estratégia de Rio pode negar ao país, ao reduzir o PSD a um partido menor. À
direita, porém, há quem veja aí a oportunidade para fazer corresponder a
pluralidade da direita a muitos partidos, todos minúsculos, todos iguais. O
poder seria, depois, apenas questão de outra geringonça. Fácil? Não. Se uma
coligação entre um partido grande e um mais pequeno, como as do PSD e do CDS
desde 1979, já não foram tranquilas, imagine-se uma babel de exiguidades, todas
a fazerem-se valer. Talvez a
sobrevivência do regime se possa.
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