Dois textos separados por 25
dias. Ambos do Público, o primeiro, de leitura em atraso, optimista e decerto
que proporcionador de uma consciência de que todos estes confortos que nos
favorecem, extensíveis a um maior número de pessoas, a água canalizada, a
electricidade, os aparelhos favorecedores do nosso far niente e da nossa ilustração pelos olhos e os ouvidos, o faro,
o gosto, o olfacto… Não há dúvida de que Nuno
Pacheco tem razão, que o passado era baço, em comparação com os esplendores
e as comodidades de hoje. O segundo texto, um Editorial de David Pontes, é, todavia, espelho das aflições
que se atravessam e outras que se adivinham, aflições do foro económico,
sobretudo para nós, os da abundância e da ambição de tudo experimentar, que não
nos dê trabalho e nos dê prazer, que vivemos no esbanjamento proporcionado por
uma publicidade indecorosamente desequilibrada e propícia à poluição e talvez à
extinção dos benefícios que a Terra proporciona e que vamos esgotando, mercê
desse progresso imparável. Tudo está a correr muito rapidamente e o receio do
futuro acompanha as fruições do presente. Além do mais, pertencemos a uma geração
em que a escola era risonha e franca, e não tínhamos receio de percorrer largos
espaços para lá chegar. E de brincar nas ruas em liberdade e no alvoroço das
amizades forjadas à beira dos passeios, com trocas frequentes de livros do
nosso despertar para a vida. Hoje as escolas são espaços de indisciplina e
mesmo bullying, as crianças chegam de carro, naturalmente, a esses espaços, no
receio e protecção naturais das famílias, os actos de violência espreitando a
cada passo. Sim, o passado vai no bolso das recordações saudosas, mas temos de
reconhecer os benefícios de um progresso que nos espreita sempre com novas
propostas. Algumas, sim, de extraordinária formatação, como essa da
robotização, transformadora dos homens em seres sem dinamismo, sem trabalho. Sem
alma?
I - Cultura-Ípsilon
OPINIÃO: Regresso
ao futuro, com o passado no bolso
A paz de hoje é menos recreativa do que as guerras de
outrora? Não, não é. A memória é que é curta
Se
os habituais desejos de final de ano se cumprissem sempre, teríamos a cada novo
ano um melhor do que o anterior. E isso, repetindo-se há décadas, já nos devia
ter levado ao paraíso. Sabemos, no entanto, que não é assim, que um ano pode
ser magnífico para algumas pessoas e mau, ou mesmo terrível, para outras. O que
não nos impede (porque haveria?) de formular a cada muda de calendário tão
utópico desejo, deixando à sorte e ao destino o resto da tarefa.
Uma
coisa, porém, é certa: a cada novo ano há mais condições para que o mundo possa
ser bem melhor do que no passado, isto apesar dos (perigosos) padecimentos que
continuamos a infligir ao planeta e a milhões dos seres que nele habitam. A
propósito da estranha ideia que costuma ser sintetizada na frase “no meu tempo
é que era”, o filósofo francês Michel Serres escreveu, aos 87 anos (hoje tem
88), um ensaio-manifesto intitulado C’était Mieux Avant!, lançado em
França pelas Editions Le Pommier, em Agosto de 2017, e editado em Portugal em
Maio de 2018 com o título Antes é que Era Bom!, nos livros
vermelhos da Guerra & Paz. Serres coloca-se na pele do francês idoso
(como ele) que resmunga e barafusta, invocando o passado como um tempo de luz e
glória, “vociferando a ira característica” de uma “nação rabugenta”, a França.
E, no entanto, o que ele diz, os exemplos que cita, são universais. Ao
celebrarmos o século XX, benevolamente baptizado como “o século do povo”,
poderemos esquecer as terríveis chagas que o mancharam, as guerras mundiais, a
Shoah e o Gulag, os conflitos coloniais, as abominações racistas? Escreve
Serres: “Da nascença à idade adulta, o meu corpo formou-se, braços e pernas,
coração e cérebro, de guerra, de guerra, de guerra. Desde então [ele escreve em
2017], vivemos sessenta e cinco anos de paz, o que não era ponto assente, pelo
menos na Europa Ocidental, desde a Ilíada ou da Pax Romana. (…)”
Sublinhando que o século XX foi “o primeiro em que os mortos nos campos de
horror ultrapassaram largamente a malignidade dos micróbios” (num passado de
carnificinas, “o número de mortos por doenças infecciosas ultrapassava sempre
de longe o das vítimas de guerra”), interroga-se: “A paz de hoje é menos
recreativa do que estas guerras de outrora?”
Não,
não é. A memória é que é curta. No que toca a doenças também muito se evoluiu.
Mil e uma doenças hoje curáveis, como a varíola ou a tuberculose, aniquilavam
milhões. “A minha tia”, escreve ele, “faleceu de meningite no mês anterior à
chegada da penicilina, o remédio que teria reduzido o seu sofrimento letal a
oito dias de pequenas picadelas.” Passou a haver cura para o irremediável e
hoje a ciência e a medicina estão, com todas as lacunas ou falhas que lhes
possam apontar, a anos-luz do martírio doutras eras. A esperança de vida, cada
vez maior, reflecte esse avanço. Há mais a fazer? Haverá sempre. Como na
perfeição dos governos ou regimes. Mas como comparar os governantes de hoje,
mesmo os piores, com aqueles que marcaram, a ferro e sangue, o século XX,
Hitler e Estaline, Mussolini e Franco, Mao Tsétung, Pol Pot ou Ceaucescu? “Todos
pessoas de bem”, ironiza Serres, “requintados especialistas em campos de
extermínio, torturas, execuções sumárias, guerras, depurações. Junto destes
ilustres actores, o presidente democrático tem pinta de anónimo.”
Ao
longo do livro, que se lê de um fôlego nas suas 100 páginas, Serres vai
descrevendo as mudanças abissais em coisas em que já nem reparamos, como a
higiene, o acesso facilitado à água potável, a electricidade, as máquinas a
substituírem o esforço humano nos lares ou nos mais diversos ofícios, o
conhecimento a tomar o lugar do empirismo, a velocidade das comunicações que
hoje ligam todo o globo e antes oscilavam entre o perigo e a aventura.
Recorrendo à sua própria experiência de vida (já longa) ou à dos seus
familiares, Serres vai derrubando, uma a uma, as argumentações em favor do
“antes é que era bom”, provocando-nos por vezes um arrepio ou uma sensação de
mal-estar perante os hábitos “saudosos” de outrora. “O macarrão que nós,
internos, comíamos na cantina do liceu formigava de larvas. Ah! a
biodiversidade! Antes, era copioso, auspicioso, delicioso.” O que faz a
memória…
A
cinco dias de 2019, mesmo tendo de encarar Trump, Bolsonaro e outros que tais,
melhor é regressar ao futuro. Levando o passado no bolso, para não esquecermos
os seus “encantos”.
II - EDITORIAL
O diabo pode mesmo vir aí
Com a Alemanha em travagem, a Espanha a
rever em baixa o crescimento, a China e os EUA a abrandar, as perspectivas da
nossa economia não são francamente animadoras.
DAVID PONTES PÚBLICO, 21 de Janeiro de 2019
Há nuvens negras a formar-se no
horizonte da economia, que prenunciam as tempestades que se vão abater sobre as
nossas vidas. Adivinhavam-se
nas conversas de alguns CEO que prenunciavam um 2019 em sentido descendente,
viram-se na tentativa frustrada de três empresas portuguesas de se lançarem no
mercado bolsista, confirmam-se nos números da desaceleração da economia
mundial.
Com
a Alemanha em travagem, a Espanha a rever em baixa o crescimento, a China e os
EUA a abrandar, as perspectivas de uma economia pequena, aberta ao mundo como a
nossa, não são francamente animadoras.
Para
um país que continua a apresentar os níveis de endividamento de Portugal, com
problemas de capital e de investimento, fracos níveis de formação, uma classe
empresarial débil, as tempestades que se avizinham podem ser mesmo o diabo que
alguns anunciaram antes do tempo. Factores como a crescente automação da
indústria e dos serviços ou o desequilíbrio demográfico (como aponta Charles
Prideaux, em entrevista na edição de hoje) têm a inevitabilidade de os rios
correrem para o mar e Portugal fragilidades próprias que aumentam a
possibilidade de sermos arrastados pela torrente.
Por
isso continuam a fazer sentido os apelos presidenciais para resistir ao
eleitoralismo, por isso continua a fazer sentido cultivar alguma contenção
orçamental mesmo que as tentações sejam muitas, por isso temos a obrigação de
olhar para o ano eleitoral com esse grande e enorme ponto de interrogação que é
a economia.
A
começar, desde logo, pelas eleições europeias, que talvez sejam das mais
importantes em que alguma vez tivemos ocasião de votar. Talvez hoje estejamos
mais capazes de interiorizar que há problemas que ultrapassam a escala local, que
o “Brexit” é para todos, que a dívida italiana é também um problema nosso, que
a crise migratória é uma questão continental, que nos diz respeito uma união
monetária que continua a apresentar imperfeições.
A atracção pelas respostas simplistas dos populistas vai ser grande
e é por isso importante que os partidos sejam capazes de contrapor soluções
realistas, mas capazes de nos guiar nestes tempos de tormenta. Já não é cedo para ouvirmos e debatermos programas
eleitorais de forma a perceber se os nossos partidos se vão limitar a fazer das
europeias uma antecâmara das legislativas ou se estarão à altura dos desafios
que se avizinham na frente europeia. Façam por merecer e dar sentido aos nossos
votos.
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