quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

«Pulvis sumus»



Eu estava hoje numa esplanada soalheira, a ler, deslumbrada, o livro, oferta da minha irmã -  Eclesiastes, do volume IV da Bíblia, na tradução do grego, por Frederico Lourenço - quando recebi um telefonema da filha da minha ex-colega Amália a comunicar-me que “a Mãe partira”.
A Mãe fora uma colega no liceu de Cascais, com quem eu mantivera uma relação de amizade, em identidade de pareceres, que me fazia, por vezes, em “furos” de aulas, visitá-la em sua casa, perto da escola, a continuar conversas muitas vezes iniciadas nos intervalos das aulas. Tal como eu, ela não aceitava bem a “algazarra” despótica trazida pelo 25 de Abril, nesses anos 80, da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa, notícia que soube então por um aluno que entrou na sala de aula a falar histericamente de sabotagem. Negrumes que se viveram, ultrapassados já, embora não esquecidos os negrumes anteriores, de uma descolonização apontada histrionicamente como exemplar, e que a necessidade de sobrevivência fizera, à maioria dos retornados, julgo, seguir em frente, na reconstrução necessária.
Eu mudei de espaço de leccionação, ela permaneceu no mesmo até à sua reforma, e as conversas amigas reduziram-se às boas festas da Páscoa e do Natal, ou a um ou outro café num centro comercial de Cascais, na rua da sua casa, onde por vezes ia com a “minha amiga”. Uma mulher doce e frágil, a Amália, que há vinte anos fora operada ao coração e sobrevivera. Nos últimos meses, uma queda inesperada forçou a família a instalá-la num lar, onde, aos domingos, a ia ver, e continuar as conversas da amizade, feliz por a ver, aparentemente, recuperar, sempre lúcida e expressiva, mas nas últimas semanas já consciente do fim próximo.
Ainda bem que eu estava a ler um “livro sagrado”, embora frustrada por o livro, atribuído ao rei Salomão, não o ser de facto, segundo informação de Frederico Lourenço, tal como o não são “O Cântico dos Cânticos” e o “Livro da Sabedoria”.
É com o conhecido Vanitas vanitatum que se inicia o Eclesiastes que Frederico Lourenço  traduz por Vacuidade das vacuidades” (tudo é vacuidade ou vão) do grego “Mataiótês, mataiotêton», em vez do usual vaidade das vaidades (tudo é vaidade), de um pessimismo total. Mas era o poema 7 que eu lia, quando a filha da minha amiga me telefonou, a informar-me da morte da Mãe.
E é em homenagem à minha colega sempre gentil, que os baldões da sorte me fizeram conhecer, que transcrevo os versos seguintes desse poema espantoso de percepção do absoluto efémero que rege a vida, e da recordação dos mortos, que vai permanecendo no ser humano, enquanto vivo:

«Um bom nome é melhor do que azeite
E o dia da morte de alguém é melhor do que o seu nascimento
É melhor entrar numa casa de luto
Do que entrar numa casa de bebida,
Porque esse luto é o fim de todo o ser humano
E o vivo dá-lo-á ao seu coração.»


O luto permanecerá no coração dos seus, no dos amigos, uma lembrança sem mácula.

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