Eu estava hoje numa esplanada soalheira, a ler, deslumbrada, o livro, oferta da minha irmã - Eclesiastes, do volume IV da Bíblia, na tradução do grego, por Frederico Lourenço - quando recebi um telefonema da filha da minha ex-colega Amália a comunicar-me que “a Mãe partira”.
A Mãe fora uma colega no liceu de Cascais, com quem eu mantivera uma
relação de amizade, em identidade de pareceres, que me fazia, por vezes, em
“furos” de aulas, visitá-la em sua casa, perto da escola, a continuar conversas
muitas vezes iniciadas nos intervalos das aulas. Tal como eu, ela não aceitava
bem a “algazarra” despótica trazida pelo 25 de Abril, nesses anos
80, da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa,
notícia que soube então por um aluno que entrou na sala de aula a falar
histericamente de sabotagem. Negrumes que se viveram, ultrapassados já, embora
não esquecidos os negrumes anteriores, de uma descolonização apontada
histrionicamente como exemplar, e que a necessidade de sobrevivência fizera, à
maioria dos retornados, julgo, seguir em frente, na reconstrução necessária.
Eu mudei de espaço de leccionação, ela permaneceu no mesmo até à sua
reforma, e as conversas amigas reduziram-se às boas festas da Páscoa e do
Natal, ou a um ou outro café num centro comercial de Cascais, na rua da sua
casa, onde por vezes ia com a “minha amiga”. Uma mulher doce e frágil, a Amália,
que há vinte anos fora operada ao coração e sobrevivera. Nos últimos meses, uma
queda inesperada forçou a família a instalá-la num lar, onde, aos domingos, a
ia ver, e continuar as conversas da amizade, feliz por a ver, aparentemente,
recuperar, sempre lúcida e expressiva, mas nas últimas semanas já consciente do
fim próximo.
Ainda bem que eu estava a ler um “livro
sagrado”, embora frustrada por o livro, atribuído ao rei Salomão,
não o ser de facto, segundo informação de Frederico Lourenço, tal
como o não são “O Cântico dos Cânticos” e o “Livro da Sabedoria”.
É com o conhecido Vanitas vanitatum que se inicia o Eclesiastes que Frederico Lourenço
traduz por “Vacuidade
das vacuidades” (tudo é vacuidade ou vão) do grego
“Mataiótês, mataiotêton», em vez do usual vaidade das vaidades
(tudo é vaidade), de um pessimismo total. Mas era o poema 7 que
eu lia, quando a filha da minha amiga me telefonou, a informar-me da morte da
Mãe.
E é em homenagem à minha colega sempre gentil, que os baldões da sorte me
fizeram conhecer, que transcrevo os versos seguintes desse poema espantoso de
percepção do absoluto efémero que rege a vida, e da recordação dos mortos, que
vai permanecendo no ser humano, enquanto vivo:
«Um bom nome é melhor do que azeite
E o dia da morte de alguém é melhor do que o seu nascimento
É melhor entrar numa casa de luto
Do que entrar numa casa de bebida,
Porque esse luto é o fim de todo o ser humano
E o vivo dá-lo-á ao seu coração.»
O luto permanecerá no coração dos seus, no dos amigos, uma lembrança sem
mácula.
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