É claro que não estamos no tempo do Galileu,
retratando-se, ante si próprio, segundo se diz, sob o efeito inquisitorial que
o obrigara a renegar a teoria heliocêntrica, dos seus avanços científicos - “Eppur si muove” – ele sabia-o bem. Um
progresso na visão do mundo a que era impossível recuar, como verdade
científica indesmentível. Mas chegou-se a uma era digital, com os seus efeitos
positivos, é certo, sobre as inteligências infantis, pela destreza na
manipulação de dados e consequente desenvolvimento intelectual, na vivacidade e
habilidade inegáveis, mas que são, naturalmente, insuficientes e alienantes. Ai
dos humanos se ficarem circunscritos a uma caixinha estimuladora imediata da
sua curiosidade apenas, e que lhes retira o saber resultante do esforço próprio,
aturado, da leitura e escrita repetitivos e graduais que impõem o papel e a caneta ou o lápis na construção da escrita, desde a tenra infância, e os livros reais na construção
do pensamento. A magnífica crónica de ELISABETE JESUS mostra-nos que os
povos mais civilizados são apologistas do fascínio e necessidade dos livros escolares
em papel e só os povos de um terceiro mundo ruidoso e desinteressado no saber
real, podem ser apologistas de um ensino castrador de competências adquiridas com
a prática repetitiva da escrita e da leitura. De papel e tinta.
OPINIÃO: Terão os livros escolares os
dias contados?
Que consigamos sempre fugir das
vias únicas, que não permitem a riqueza da diversidade de situações de
aprendizagem.
PÚBLICO, 8 de Janeiro de
2019
Têm
vindo a público experiências pedagógicas, em certas escolas, que baniram a
utilização dos livros escolares, quer na sua versão física, quer na sua versão
digital. Desde o 5.º ano de escolaridade, os conteúdos passaram a ser
explorados de forma virtual, através da utilização de tablets. Estas escolas são notícia
pelo pioneirismo das suas opções, que as coloca supostamente na linha da frente
da modernidade, enquanto escolas do futuro.
As preocupações com o peso
excessivo das mochilas, os gastos na compra de livros escolares e a preservação
do meio ambiente são argumentos fortes dos defensores das soluções digitais e
tecnológicas, a que juntam a modernização do processo de ensino-aprendizagem,
que assim optimiza as competências dos nativos digitais.
Com
uma perspectiva diferente, surgem todos os que continuam a fazer valer a
importância dos livros escolares, do papel e da caneta na aquisição de
aprendizagens estruturantes e sólidas. Contra-argumentam com a adopção
de medidas mais eficazes, por parte das escolas, na disponibilização e utilização
de cacifos; com os malefícios para a saúde resultantes do excessivo número de
horas que os alunos passam em frente aos ecrãs; com os gastos na aquisição,
manutenção e renovação regulares de equipamentos e licenças de utilização de
plataformas educativas credíveis; com a necessidade de ligações à internet que
não impeçam o normal funcionamento das aulas a centenas de alunos em rede; com
a poluição, que também existe neste tipo de soluções; com a perda de hábitos de
leitura, em papel, e de escrita à mão (vários
estudos – Mueller e
Oppenheimer, 2014; Stacy e Cain, 2015; Stacee Horwitz, 2017 – têm vindo a
confirmar quão fundamental é mantermos a prática das notas manuscritas à margem
dos textos que lemos, dos tradicionais apontamentos, por activarem áreas cerebrais
ligadas ao pensamento, à linguagem, à memória, à compreensão e à
conceptualização, que o trabalho digital não permite, para além do que se fica
a dever às destrezas da motricidade fina).
Estas
notícias e o esgrimir de argumentos trouxeram-me à memória a Feira do Livro de
Frankfurt, onde estive em outubro de 2018. No sector da feira dedicado
à educação, a FrankfurtEdu, numa
visita guiada por Michael Jay, o presidente da Educational Systemics (empresa
norte-americana de tecnologias na educação), foi possível conhecer as novidades
propostas por várias editoras do mundo. Sob a designação Trends and newcomers in education,
a visita centrou-se nas ferramentas tecnológicas, a área de interesse de
Michael Jay, mas os livros
escolares acabaram por assumir protagonismo no debate, permitindo reflexões
interessantes.
Em
primeiro lugar, a maioria
das inovações apresentadas parte de livros de leitura obrigatória ou de livros
escolares e com eles mantém uma interacção.
Em
segundo lugar, países que enveredaram por soluções
exclusivamente tecnológicas, como o Egipto, que ali apresentava o seu Egyptian Knowledge Bank(um banco de
recursos digitais, criado pelo Estado como uma estratégia para a educação
nacional), mostraram-se sem resposta face às realidades apresentadas por alguns
visitantes, conhecedores de causa. As falhas no acesso à internet e as avarias nos tablets, ao final de três meses de
utilização, haviam feito regressar os livros em papel à sala de aula.
Em
terceiro lugar, face à
insistente questão do grupo – Como fazer com que crianças tecnologicamente
estimuladas regressem à tranquilidade da leitura, à concentração e à
interpretação de um texto em profundidade? – assistiu-se ao encolher de ombros
ou à repetição dos chavões comerciais por parte dos expositores.
Em
quarto lugar, há países,
como a Coreia do Sul, a fazer uma grande aposta nos livros escolares em papel,
de capa dura, com uma espessura enciclopédica e com articulação de saberes.
Em
quinto lugar, a Finlândia e
a Alemanha mostram-se cautelosos no uso das tecnologias na sala de aula, porque
não querem perder as potencialidades do que, habitualmente por cá, se chama de
“métodos tradicionais”: a leitura, os livros, o papel,
a caneta e o lápis. Umas horas e uns quilómetros à frente,
noutros setores da Feira do Livro, duas conversas fortuitas comprovaram esta
realidade. Tuula Pere, uma escritora finlandesa de livros para crianças,
falava-me orgulhosamente do valor que as crianças do seu país dão aos livros e
do excelente funcionamento da rede de bibliotecas públicas, muito frequentadas
por consumidores infanto-juvenis. O pai da Íris, uma menina lusodescendente de
11 anos, a viver na Alemanha, deu-me conta da oposição cerrada dos pais da
turma da filha ao uso dos tablets. Esperam
da escola o que lá em casa não podem dar: a leitura, a escrita, o cálculo, o
trabalho, o treino... E quando o
questionei sobre a motivação para a aprendizagem, que é argumento abonatório
das tecnologias da educação, eis a resposta: a motivação é intrínseca, é o
valor que as crianças e os jovens alemães reconhecem à escola, à sua formação,
porque sabem que sem ela têm um futuro comprometido.
Claro que não precisamos de
ficar na era do rectroprojector, a “caixa de luz” de que me falou a Íris, mas
parece que os países desenvolvidos se pautam ou pela prudência e pelo
equilíbrio na utilização da tecnologia na sala de aula ou mesmo pelo
depuramento tecnológico, como se tem visto em França. Ainda recentemente,
o New York Times, numa peça
intitulada "The Digital Gap Between Rich
and Poor Kids is Not What We Expected", mostrava como as escolas públicas norte-americanas
promovem a utilização exclusiva de recursos digitais, desde o ensino
pré-escolar, enquanto os mais ricos, incluindo os executivos de Silicon Valley,
preferem as escolas livres de ecrãs. É preciso que impere o bom senso.
O
certo é que às “novas” tendências digitais correspondem também novas tendências
de “aprendizagem”, por parte dos alunos. Todos os professores convivem
diariamente com a resistência dos jovens à leitura, à escrita, ao raciocínio,
ao que dá trabalho e não é imediato. Lêem na diagonal, por impaciência,
tropeçam na leitura em voz alta, manifestam pobreza de vocabulário, incorreções
na expressão escrita e dificuldades em descodificar mensagens, explícitas e
implícitas. Ou seja, mostram-se cada vez mais acríticos e, por conseguinte,
serão enganados mais facilmente.
As ferramentas educativas, em papel e no digital, devem ser
complementares e não auto-excluir-se. Em Portugal, a caixa de luz da Íris já
não brilha, há os computadores, os tablets, os
quadros interativos e até os telemóveis, que são uma mais-valia, mas é urgente
apostar na literacia digital, bem como na literacia da leitura, da escrita, do
raciocínio e do pensamento crítico.
Que consigamos sempre fugir das vias
únicas, que não permitem a riqueza da liberdade nem a riqueza da diversidade de
situações de aprendizagem. Por isso, os livros escolares ainda têm muitos dias
para contar.
COMENTÁRIOS
Alberto Pereira, Setúbal 08.01.2019: Com o crescente interesse dos alunos pelos telemóveis
a tendência será os manuais escolares acabarem. Fica mais barato, mais
ambiental, mais cómodo para todos e, no final, a maioria dos alunos pouco ou
nada aprendem, tal como hoje.
paula_ 08.01.2019: Não fica sequer mais barato porque vai gastar no
oftalmologista e no oculista o que não gastou em papel. Além de estarem a
alimentar o vício do consumo imediato de todos os conteúdos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário