Mais um articulista de grande gabarito que vai desaparecer dos palcos jornalísticos - ANTÓNIO
BAGÃO FÉLIX. Artigos os seus
de tão extraordinária dimensão que mais uma vez nos espanta a leveza com que se
desrespeitam, não só essas figuras castigadas no seu valor – ou por causa dele
- como se ignoram os próprios interesses do público, que tem tanto a aprender e
a “curtir” com as competências literárias como esta de Bagão Félix. Esperemos que seja recuperado noutros
espaços informáticos. Acabo de ler que a Quadratura do Círculo também será retomada no
Canal 24, e sinto alívio.
Só me lembra, para comentar esta farsa habitual entre nós, Gil Vicente, em troça semelhante à que
leva Inês Pereira a ir ao encontro do amante desta, com Pero Marques carregando
às costas Inês, e ainda “duas lousas”. Final da peça vicentina, subordinada ao
provérbio “Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube”, das
pretensões de Inês.
Inês:
«Marido cuco me levades
E mais duas lousas.»
Pêro Marques:
«Pois assi se fazem as cousas.»
«Marido cuco me levades
E mais duas lousas.»
Pêro Marques:
«Pois assi se fazem as cousas.»
Nós somos o Pero Marques, o asno que carrega e tudo aceita, sem exigir
justificação.
OPINIÃO
As palavras (e erros) do ano
A minha votação de entre as dez palavras
vai para populismo, ainda que o meu prognóstico para a vencedora esteja numa
das duas profissões seleccionadas.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO; 21 de Dezembro de 2018
Com o texto que se segue termina a minha crónica semanal no PÚBLICO,
por decisão da sua Direcção. Quero agradecer a atenção de quantos pacientemente
me leram, na concordância ou na discordância, ao longo de quase cinco anos
ininterruptos. Agradeço também a confiança da então directora Bárbara Reis no
lançamento do blogue “tudo menos economia”, que partilhei com Ricardo Cabral e
Francisco Louçã, depois reforçada pelo ex-director David Dinis com esta minha
coluna “(Uma)temática”.
Pelo
décimo ano consecutivo, a Porto Editora e a Infopédia promovem a votação da
palavra do ano. Desta vez, estão em disputa dez termos: assédio,
enfermeiro, especulação, extremismo, paiol, populismo, privacidade, professor,
sexismo, toupeira.
Como
tem sido recorrente, as palavras candidatas estão algo enviesadas por força de
uma tendência memorial que, em linguagem de stockagem, se poderia apelidar
de FIFO (first in, first out), ou seja, as palavras seleccionadas tendem
a acumular-se mais nos últimos meses do ano e as dos primeiros meses não
resistem tanto à erosão do calendário. O caso mais evidente é o da
palavra enfermeiro, que agora está bem fresquinha. E, por
uma unha, colete não está entre as eleitas, em tons amarelos
evidentemente.
Desta
vez, não há estrangeirismos ou mesmo evidentes neologismos. Nem sequer verbos
ou adjectivos. E nenhuma das dez palavras tem ortografia diferente, na versão
acordista ou não acordista. Uma selecção contida, dir-se-á. A propósito de
palavras vencedoras e resultantes de moda efémera e estrangeirada, logo
descartadas do uso e da memória, o caso mais estranho aconteceu em 2010 com a
onomatopaica sul-africana vuvuzela. Assim como surgiu, logo se eclipsou.
Nota-se
a predominância dos vocábulos de origem ou natureza mais política ou laboral.
Felizmente a palavra desemprego já há anos que não aparece, ela que é
a única repetente três vezes em plena crise (2010,11 e 12). Desde as
siglas FMI e TSU aos acrónimos PEC e SCUT,
volta a não haver estas palavras comprimidas. Paiol até pode ser
entendido quase como um arcaísmo, ressuscitado por um emaranhado
político-militar-laboral sem fim à vista. À palavra enfermeiro talvez
lhe falte uma espécie de aposto ou continuado: greve. Sempre pensei que a
palavra culpa tivesse
sido escolhida para a votação final, mas compreendo as razões da ausência. É
que de tão dita e maldita, não foi por cá encontrada e definhou solteira.
Populismo está na lista sem surpresa, como surpresa não é muita
gente desconhecer o seu significado preciso. Especulação, este ano,
porquê se a há em doses avantajadas todos os anos? Há quatro palavras que, em
linguagem matemática, se poderiam transformar em pares binários, dada a sua
interligação por simpatia ou antagonismo: assédio e sexismo, privacidade e toupeira.
Passam-se
os anos a falar de futebol. Contudo, a futebolândia sempre foi pouco assídua
nestas escolhas vocabulares. Nem mesmo VAR conseguiu esta façanha!
Este ano, ainda que sob a forma capciosa de um mamífero roedor – a toupeira –, podemos entrever o esférico ou
a redondinha numa
quadratura do círculo. De todas as palavras há duas que se dão bem com
meias-palavras: assédio e toupeira.
A primeira, mais à superfície; a segunda, mais escondida.
Continua
a verificar-se a quase regra de a maioria das palavras ter uma carga
aparentemente negativa e, ao invés, nem uma única transportar uma qualquer boa
nova. Muito português, sem dúvida.
A palavra turismo não surge entre as dez escolhidas, tal
como alojamento (local ou nem por isso) ou gruta (a
pensar nas crianças tailandesas) e, apesar da excitação dos últimos tempos, nem touro, tourada ou corno alcançaram a designação.
Desta
vez, também ficaram de fora palavras relacionadas com a saúde (ou
melhor, da falta dela), o que é bom sinal, bem como da tecnologia para a
qual nem a Web Summit valeu. A religião que, no ano passado, esteve
representada com o vocábulo peregrino, voltou à estaca zero. Já a botânica
está sempre ausente, a não ser, em 2017, com a palavra floresta (ainda
que por causa dos incêndios) e apesar de este ano um sobreiro ter sido a árvore
europeia do ano, não esquecendo o carvalho para os lados de Alvalade.
A
minha votação de entre as dez palavras vai para populismo,
ainda que o meu prognóstico para a vencedora esteja numa das duas profissões
seleccionadas – enfermeiro ou professor –, quem sabe se com o assédio, por via da
votação, da toupeira.
Já
no Reino Unido (promovido pela Oxford Dictionaries), o termo
proclamado vencedor foi toxic. Trata-se de uma palavra que é não apenas usada
no seu sentido mais estrito e literal, como com alargados sentidos metafóricos.
No
Brasil, um pouco à
semelhança da metodologia britânica, em 2017 a palavra vencedora foi,
evidentemente, corrupção. Não sei se pode haver reincidência vitoriosa, pois
voltaria a estar nas palavras (infelizmente) favoritas.
Em
suma, a última palavra – que será a primeira – pertence aos votantes online!
E quando será que palavra virá a ser o termo escolhido? Pela minha parte,
ficaria muito agradado ou, quem sabe, sem palavras! Palavra de honra.
IPSIS
VERBIS
Seleccionei
alguns erros ou modismos com presença muito assídua em 2018:
PLEONASMO: Há
anos atrás (ou será à frente?) e alojamento local (ou será sem
local?)
OXÍMORO: Grande
beijinho (mas não pequena beijoca)
SOLECISMO: Vão
haver muitas novidades...
PRONÚNCIA: rubrica dita
erradamente como se fosse “rúbrica” e acordos como se fossem “acórdos”
CONJUGAÇÃO: interviu sem
ter intervido
POUPANÇA
SILÁBICA: competi(ti)vidade, precari(e)dade e empreen(de)dorismo (muito
habituais em São Bento)
MODISMO: No
fim do dia, uma tradução literal e afectada de “at the end of the day”
MODISMOS
FUTEBOLÍSTICOS: troca por troca (ainda que à condição)
MODISMOS
VERBAIS: Empoderar, elencar e impactar
CONFUSÃO:
o homem foi evacuado (coitado! Espero que não tenha sido troca por
troca...)
PARADOXO: Correr
atrás do prejuízo (ou será à frente?)
EUFEMISMO: politicamente
correcto (eufemismo sobre o próprio eufemismo)
À
ESPERA DE NEOLOGISMOS: Amarar no rio ou aterrar em Marte
CACOFONIA: um
ovários
CONFUSÃO
ACORDISTA: ótico (dos
olhos) e ótico (dos ouvidos)
AMBIGUIDADE: ambiguação (na
Wikipedia)
O
MAIS UNIVERSAL DOS ERROS: Tenho que acabar este texto (em vez
de tenho de acabar este texto porque tenho muito mais que fazer).
COMENTÁRIOS
mzeabranches, 27.12.2018 Só agora tive oportunidade de ler este
texto. Não posso deixar de exprimir a minha profunda tristeza pela informação
com que o mesmo se inicia: "Com o texto que se segue termina a minha
crónica semanal no PÚBLICO, por decisão da sua Direcção." Assim o
"Público" e a nossa língua ficarão mais pobres, o que também nos
empobrece! O meu sincero reconhecimento por toda a lúcida, sensível e humana
reflexão que partilhou connosco, e que tanta falta nos vai fazer!
albergaselizete, 21.12.2018: Populismo vem de povo. Não é uma palavra
que tenha surgido de outro planeta. Ainda ontem, o Presidente da República,
dizia que a voz do povo não deve ser escutada, ao referir o exemplo que vem da
UK e do brexit. Se não interpretei mal, começo a perceber, porque razão os
temas que interessam aos povos europeus, os pagantes de todos os luxos e
enriquecimento imoral dos grupos de privilegiados, radica no princípio que
nenhum ditador desdenharia, poder decidir por todos, mas sem responsabilidade
nenhuma, essa, vai direitinha para os escravos que têm de pagar as contas que
essa gente contrai e, ironicamente, em nome do dito povo, os tais populistas
que apenas gozam de um direito, pagar e calar, pagar e calar, pagar e calar e,
por fim, continuar a pagar e calar. Calar, tal como os referendos.
Inês Ramos, 21.12.2018 Que pena ficarmos privados das suas
crónicas argutas, marcantes e profundamente humanas, além de ser das poucas
pessoas que ainda sabem escrever Português correctamente na imprensa
portuguesa! O texto sobre Miguel Torga foi dos melhores que já li. O Público
ficará consideravelmente mais pobre. Espero que a Direcção reconsidere, e que
um dia possamos ver as suas magníficas crónicas reunidas em livro. Muito
obrigada por tudo o que pudemos aprender consigo e por ajudar-nos a reflectir!
Espero que possamos voltar a usufruir da sua sageza e humanidade dentro em
breve. Felicidades e Boas Festas!
Ceratioidei, Oceanos 21.12.2018: Obrigado pelos
excelentes textos. É pena que este seja o último. Boas Festas e Bom Ano Novo.
Bernardo Ribeiro, Aveiro 21.12.2018 Resta-me a esperança de que irá
continuar a escrever noutro jornal! Boas Festas e tudo do melhor para si e
Família.
Armando Mendonça, Amadora 21.12.2018 :tenho pena, mas segui-lo-ei se escrever
noutro espaço. obrigado cumprimentos
Mário Orlando Moura Pinto, Setúbal21.12.2018: Ao Sr. Dr. Bagão Félix tenho a dizer
que, ainda que nem sempre estivéssemos de acordo, apreciei os seus artigos e
que não considero - nem de longe nem de perto! - que António Barreto (que terá
este Sr. para nos dizer?), por exemplo, seja um substituto ao seu nível. Muito
obrigado.
Raquel Azulay, 21.12.2018: Dr. Bagão Félix, adorei ler as suas
crónicas semanais, sempre pertinentes e incisivas. Espero que continue a
escrever noutro jornal, num jornal dirigido por pessoas que saibam reconhecer o
seu inegável mérito. Feliz Natal para si e para os seus.
Fernando Ferreira Franco:
Em matéria de pertinência, o mais indicado seria
escrever "finalmente" (já que se trata do último texto) um texto a
revelar a importância de se eleger a palavra do ano... É que não encontro essa
subtil necessidade e muito menos a necessidade de procurar encontrar distúrbios
linguísticos em textos que toleram o caos do inconsequente AO90. Talvez se
revelasse bem mais pertinente a eleição da iniciativa mais patética do ano, a
"palavra do ano" teria fortes hipóteses de vencer.
Luís Azenha Bonito, Coimbra 21.12.2018:
Lamento muito não poder
continuar a ler os seus textos: criativos e lúcidos! Espero que regresse ao
Público logo que possível... Desejo-lhe um Feliz Natal e um Feliz Ano Novo!
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta21.12.2018: Obrigado pela crónica semanal caro António Bagão Félix. Foi com
pena que vi o fim de Tudo Menos Economia, e é com pena que vejo agora o fim da
sua série aqui. Cumprimentos.
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