quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Cultura da irresponsabilidade



Mais do que nunca, mas menos do que o futuro faz prever. Porque a educação está cada vez mais restringida, não há leis que imponham princípios de disciplina e respeito por normas de comportamento nem de decência, galhofeiros que somos. Como uma comporta que se desmoronou e tudo vai na enxurrada. É antigo, sim, já Sá de Miranda o informara, na sua Écloga Basto, o pastor Bieito aconselhando o seu amigo individualista Gil a tornar-se mais sociável, e contando a história exemplificativa do que se quis livrar da chuva, abrigando-se, o que provocou a reacção dos amigos brincalhões, acabando todos por tombar ao charco, numa galhofa. No tempo do Salazar, contudo, apesar do “bom rapazismo”, simpático mas desleixado, havia preceitos de mais rigor, todos sabemos. A ordem, agora, é de irresponsabilidade, todos temos histórias dessas para contar, o Luís espera um papel importante de um médico do Hospital, mas é-lhe respondido em ar de troça que o enviarão quando estiver pronto. Todos estamos no charco, dando-nos “piparotes nos narizes”, divertidos, como os da história de Bieito. É certo que há os cuidadosos, que trabalham na sombra, para si próprios, sobretudo, e se aproveitam da distracção ou do descuido enraizado. Maria João Avillez tem, como sempre, razão, como outros muitos que a comentam. Mas os do “parti pris” contra os bem formados preferem “dar piparotes”. E “escornar”, como os da tal écloga antiga, da mesma massa de antanho, que não mudou, e as razões são muitas, já Antero o explicou nas suas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, embora os espanhóis tenham outra postura, naturalmente. Que os da cauda somos nós.

D de desmazelo /premium
OBSERVADOR, 9/1/2019
Se alguém procedesse à contabilidade dos estragos de dimensão nacional pelo “deixa andar–esqueci-me–tanto faz–logo se vê–espera-se um bocadinho–não há-de ser nada”, chegaria a resultados devastadores.

1. O D era de Dezanove e era por aí que eu teria ido. Pelo ano novo com a sua certeza da “incerteza”, já um cliché, e um mar de dúvidas, todas más, aliás. O meu D hoje é porém imperativamente outro. É um D de Desmazelo, Desleixo, Desorganização. E vai para séculos
É certo que as aspirações e desejos de colunistas, colunáveis e tutti quanti para 2019 comovem mais, transpiram bons sentimentos, falam ao coração. Quem não se enleva com a “paz” (mesmo sabendo-se que a partir da instrução primária ninguém normalmente constituído pode evocá-la com verosimilhança), pela “felicidade”, como se ela fosse um objectivo, pela “fraternidade” como se o mundo estivesse para aí virado. Serei mais modesta, pedindo singelamente um abaixamento do nível do desmazelo de norte a sul, ilhas incluídas. Uma descida mesmo que pequena (“grão a grão…”), e talvez houvesse inversão de marcha.  Irrealismo? Farto irrealismo, claro. Mas não retiro o pedido.
2. É um imenso e já antigo mistério que ninguém pareça atribuir às consequências do nosso triunfante desleixo qualquer espécie de importância. Ou de vergonha, convivendo o país em grande harmonia com as diversas caras, fórmulas e formas – das mais comezinhas às mais irresponsáveis – que ele assume. As cartas ficam sem resposta, as chamadas caem, os recados esquecem-se, os prazos expiram; o canalizador depois de jurar que vinha não veio e não avisou que não vinha; o “venho já” à porta das lojas pode eternizar-se; os multibancos nos feriados não têm dinheiro porque alguém se esqueceu que era feriado e, quando se lembrou, achou a data indiferente; os aviões quando aterram não têm a escada à espera como se a “aeronave” fosse um engenho chinês vindo do lado obscuro da lua; as escadas rolantes do metropolitano sofrem de avarias com estarrecedora frequência; nos serviços públicos pode suceder que todos almocem ao mesmo tempo, ficando os guichets desertos; as obras públicas (ou privadas) são bruscamente interrompidas sem pré-aviso de recomeço, deixando restos, lixo e pedras na via pública. Por “tempo indeterminado” e haverá melhor convite ao desleixo que a “indeterminação”?
Trivial isto tudo, dir-me-ão, é uma forma de vida e assim ficamos. Continuando como até aqui a comer este pão requentado.
3. Sim, é uma forma de vida (nem conheço outra desde que nasci) e cá estou. Mas eu, ainda é como o outro, Portugal, não. Se alguém procedesse à contabilidade dos estragos de dimensão nacional pelo “deixa andar–esqueci-me–tanto faz–logo se vê–espera-se um bocadinho–não há-de ser nada”, chegaria a resultados devastadores. Chegaria, sim. Nuns casos os seus efeitos deslaçam o país, noutros atrasam-no ainda mais e não é agora em canalizadores ou escadas rolantes que penso mas em desenvolvimento e crescimento. Por outras palavras, em responsabilidade. Como neste caso que vos conto, por exemplo: uma grande empresa, criadora de emprego, riqueza para os portugueses e bom nome para o país, pediu em tempos autorização para construir mais uma fábrica, ao mesmo tempo que a pedia também num determinado país europeu. Menos de dois anos depois a fábrica estava em funcionamento na “Europa” enquanto a resposta portuguesa se atrasava, capturada por uma velhíssima (genética?) soma de atrasos, burocracia descomandada, mudanças de decisores, troca de directores, perda de documentos, hesitações paralisantes. Quantos outros casos haverá destes, ancorando Portugal num perímetro de actuação modestamente atractivo e pouco confiável? Quantos mais exemplos de improdutivos “impedimentos” existirão entre nós, exclusivamente provocados não por decisivos argumentos estratégicos mas pelo mais atávico desmazelo em todas as suas grandes, médias ou pequenas vertentes? Coarctando de uma penada um robusto desenvolvimento, uma capacidade resposta pronta, gente mais responsável, um país cívico.
4E agora o pior e o pior hoje não é o que acima disse, nem sequer o embaraçantemente desmazelado folhetim-non-stopTancos. Também não é o descobrir-se de repente que quando é preciso um meio de intervenção ele se encontra placidamente “fora de serviço”, nem ainda as fábricas ou empresas que não se licenciam pelas más razões. Falo de dois emblemas do país, ex-libris da cultura, da história, da identidade portuguesa como são a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Arte Antiga. Instituições com tanta importância e (suposto) prestígio que possuem ambas a palavra “nacional” na sua designação. E no entanto….
E no entanto não vivem, sobrevivem. Podiam crescer, mas estiolam. Deviam vicejar mas esmorecem. Não sei se foi maior a pena ou vergonha quando há dias soube da demissão de António Felipe Pimentel, director do MNAA, e do seu director adjunto, José Alberto Seabra de Carvalho: heróicos soldados cansados de luta tão inglória onde na última década combateram mais do que podiam (e deviam), com a magnífica equipa do museu. Acreditem porém que este estado de coisas não radica apenas no retumbante despropósito de algumas leis ou na ancestral falta de meios do país pobre que somos, mas também no “deixar andar” do país que não deveríamos ser. Vergonha sim e no caso da Biblioteca Nacional, também. O desleixo com que institucionalmente se lida com o que ela deveria representar e significar tem uma imensa quota parte na explicação do estado de coisas que por lá vigora. Nem tudo é dinheiro mas quase tudo é respeito, seriedade e responsabilidade.
5. Se há uma leveza estonteantemente populista em quem preside e muito jogo de cintura em quem governa, isto de que acima falei não são só “eles”, somos nós. Nós portugueses. Nós todos. Praticamos o desmazelo com afinco e nele consentimos com grande afã. Uma pena. Uma pena que em Dezanove eu gostaria que voasse para longe.
COMENTÁRIOS
Domingas Coutinho: Desmazelo, desleixo, desrespeito, desordem, desconfiança, desvergonha, enfim tantos “des” em que este nosso querido País se tornou. Mas continuamos a ouvir que estamos melhor. Os pensionistas vão à caixa multibanco e ficam contentes com um aumento de 10 euros mas não fazem conta ao que pagam a mais no supermercado nem na pastelaria, nem no combustível. Querida Maria João não desanime e pelo menos desejo que continue a abanar estas consciências até que surja alguém com brio, respeito pelos outros, confiável e com vergonha na cara que mude as coisas. Bem haja.
António Vieira: Cara Maria Avillez. Belíssimo artigo de opinião. Mas devo dizer que acho que a situação ainda é pior do que a retrata. Não só o "desmazelo" é totalmente aceite como se transformou num ícone cultural altamente valorizado, devidamente rebaptizado de "capacidade de improviso", nada mais do que deixar tudo para a ultima hora para ser depois mal feito, fora de horas e destinado a ser temporário. Cresci a ouvir dizer que os Portugueses tinham essa extraordinária capacidade, até que comecei a viajar bastante e rapidamente descobri que outros partilhavam dessa qualidade e que a tinham em igual estima: na Índia, em vários países de África, na América do Sul. Noutros países, como o Japão, a Alemanha, os EUA ou o Canadá, essa qualidade é substituída por capacidade de planeamento, logística, organização, accountability (essa palavra para a qual a língua portuguesa ainda não se dignou a traduzir!), entre outras. Com tantas coisas que Portugal tem para melhorar, fico sempre exasperado quando vejo que as nossas lideranças (e o povo...) continuam a querer seguir o exemplo de verdadeiros desastres como a Grécia, a Venezuela, Cuba, e tantos outros em vez dos nossos parceiros e aliados cujos povos vivem bem melhor do que nós.
António Serrano: Desmazelo descarado. E os mais desmazelados lambem as botas de chefes desmazelados e são promovidos.
Earl Woode: Tem toda a razão. Os Portugueses são desorganizados, eternos atrasados, pouco eficientes e pouco produtivos embora passem muitas horas no local de trabalho.  Mais, há um "quero lá saber" generalizado pelo país todo. Ninguém cumpre prazos, responde a e-mails em tempo útil, devolve chamadas, chega a horas a lado nenhum ou cumpre orçamentos.  Sim, somos um povo afável e simpático e muito acolhedor para quem nos visita.  Mas isso não chega e as outras características custam-nos muito em termos de produtividade e, consequentemente, nível de vida.  Por isso estamos eternamente (e vamos continuar a estar) na cauda da Europa e estamos a ser ultrapassados por todos os países de Leste que, não obstante os atrasos a que ficaram sujeitos durante a época do Comunismo, são muito mais produtivos e eficientes que nós.  Os Portugueses preocupam-e acima de tudo só com duas coisas:  a Bola e as idas à praia no Verão.  Tudo o resto fica para segundo plano.  É pena!
Maria Mendes: Maria João, é oportuna a sua crónica só que, vinda de si, cola com "cuspo"... aliás como os discursos de muitos lisboetas: mandaram os filhos para países considerados mais evoluídos...têm tiques de aristocracia...comungam conversas de superioridade pessoal...e não, não convencem! Para que isso acontecesse os vossos filhos teriam de estar cá a dar o exemplo!... Nas vossas análises não teriam de puxar os galões dos teres e haveres!... Por fim, deviam mostrar a humildade que devia estar subjacente a qualquer ser humano que quer ser ouvido e respeitado. Cumprimentos
Relvas Analytics: ...as oligarquias feudais, burguesas e fascistas de que a dona Maria João faz parte sempre lutaram com todas as suas forças para terem uns portugueses mansinhos e com fraca prestação para que não os chateassem muito e fossem uns bons escravos! ... portanto este texto é um simples exercício de cretinice! ...aliás, a retórica é muito parecida com a que tiveram os nazis no Gueto de Varsóvia quando arrancaram o asfalto para que a chuva fizesse lama e eles poderem dizer "olhem como estes porcos judeus gostam de chafurdar na lama!" ...estamos falados!
Quinto Império > Relvas Analytics: Típico português de pôr a culpa nos outros, menos neles próprios.
Relvas Analytics > Quinto Império: ...deves estar a falar da autora do artigo, correcto?
William Smith > Relvas Analytics: Relvas, vou ser franco contigo. Por um lado, causa-me um certo assombro a tua tentativa em comparar a MJA com nazis, alcatrão, judeus, lama, eu sei lá que mais. Mas por outro lado, não deixa de ser reconfortante constatar o nível dum típico comentarista de esquerda, tu.

Nenhum comentário: