Mais do que nunca, mas menos
do que o futuro faz prever. Porque a educação está cada vez mais restringida,
não há leis que imponham princípios de disciplina e respeito por normas de
comportamento nem de decência, galhofeiros que somos. Como uma comporta que se
desmoronou e tudo vai na enxurrada. É antigo, sim, já Sá de Miranda o
informara, na sua Écloga Basto, o
pastor Bieito aconselhando o seu amigo individualista Gil a tornar-se mais sociável,
e contando a história exemplificativa do que se quis livrar da chuva, abrigando-se,
o que provocou a reacção dos amigos brincalhões, acabando todos por tombar ao
charco, numa galhofa. No tempo do Salazar, contudo, apesar do “bom rapazismo”,
simpático mas desleixado, havia preceitos de mais rigor, todos sabemos. A
ordem, agora, é de irresponsabilidade, todos temos histórias dessas para
contar, o Luís espera um papel importante de um médico do Hospital, mas é-lhe
respondido em ar de troça que o enviarão quando estiver pronto. Todos estamos
no charco, dando-nos “piparotes nos narizes”, divertidos, como os da história
de Bieito. É certo que há os cuidadosos, que trabalham na sombra, para si
próprios, sobretudo, e se aproveitam da distracção ou do descuido enraizado. Maria
João Avillez tem, como sempre, razão, como outros muitos que a
comentam. Mas os do “parti pris”
contra os bem formados preferem “dar piparotes”. E “escornar”, como os da tal
écloga antiga, da mesma massa de antanho, que não mudou, e as razões são
muitas, já Antero o explicou nas suas “Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares”, embora os espanhóis tenham outra
postura, naturalmente. Que os da cauda somos nós.
D de desmazelo /premium
MARIA JOÃO
AVILLEZ SEGUIR
OBSERVADOR, 9/1/2019
Se alguém procedesse à contabilidade dos
estragos de dimensão nacional pelo “deixa andar–esqueci-me–tanto faz–logo se
vê–espera-se um bocadinho–não há-de ser nada”, chegaria a resultados
devastadores.
1. O D era de Dezanove e era por aí que
eu teria ido. Pelo ano novo com a sua certeza da “incerteza”, já um cliché, e
um mar de dúvidas, todas más, aliás. O
meu D hoje é porém imperativamente outro. É um D de Desmazelo, Desleixo,
Desorganização. E vai para séculos
É certo que as aspirações e desejos de colunistas, colunáveis
e tutti quanti para 2019 comovem mais, transpiram bons sentimentos,
falam ao coração. Quem não se enleva com a “paz” (mesmo sabendo-se que a partir da instrução primária ninguém
normalmente constituído pode evocá-la com verosimilhança), pela “felicidade”, como se ela fosse um
objectivo, pela “fraternidade” como
se o mundo estivesse para aí virado. Serei mais modesta, pedindo
singelamente um abaixamento do nível do desmazelo de norte a sul, ilhas
incluídas. Uma descida mesmo que pequena (“grão a grão…”), e talvez houvesse
inversão de marcha. Irrealismo? Farto irrealismo, claro. Mas não retiro o
pedido.
2. É um imenso e já antigo mistério que ninguém pareça atribuir
às consequências do nosso triunfante desleixo qualquer espécie de importância.
Ou de vergonha, convivendo o país em grande harmonia com as diversas
caras, fórmulas e formas – das mais comezinhas às mais irresponsáveis – que ele
assume. As cartas ficam sem resposta, as
chamadas caem, os recados esquecem-se, os prazos expiram; o canalizador depois
de jurar que vinha não veio e não avisou que não vinha; o “venho já” à porta
das lojas pode eternizar-se; os multibancos nos feriados não têm dinheiro
porque alguém se esqueceu que era feriado e, quando se lembrou, achou a data
indiferente; os aviões quando aterram não têm a escada à espera como se a
“aeronave” fosse um engenho chinês vindo do lado obscuro da lua; as escadas
rolantes do metropolitano sofrem de avarias com estarrecedora frequência; nos
serviços públicos pode suceder que todos almocem ao mesmo tempo, ficando os
guichets desertos; as obras públicas (ou privadas) são bruscamente
interrompidas sem pré-aviso de recomeço, deixando restos, lixo e pedras na via
pública. Por “tempo indeterminado” e haverá melhor convite ao desleixo
que a “indeterminação”?
Trivial isto tudo, dir-me-ão, é
uma forma de vida e assim ficamos. Continuando como até aqui a comer este pão
requentado.
3. Sim, é uma forma de vida (nem conheço outra desde que nasci) e cá
estou. Mas eu, ainda é como o outro, Portugal, não. Se alguém procedesse à contabilidade dos estragos de dimensão nacional
pelo “deixa andar–esqueci-me–tanto faz–logo se vê–espera-se um bocadinho–não
há-de ser nada”, chegaria a resultados devastadores. Chegaria, sim. Nuns casos os seus efeitos deslaçam o país,
noutros atrasam-no ainda mais e não é agora em canalizadores ou escadas
rolantes que penso mas em desenvolvimento e crescimento. Por outras palavras,
em responsabilidade. Como neste caso que vos conto, por exemplo: uma
grande empresa, criadora de emprego, riqueza para os portugueses e bom nome
para o país, pediu em tempos autorização para construir mais uma fábrica, ao mesmo
tempo que a pedia também num determinado país europeu. Menos de dois anos
depois a fábrica estava em funcionamento na “Europa” enquanto a resposta
portuguesa se atrasava, capturada por uma velhíssima (genética?) soma de
atrasos, burocracia descomandada, mudanças de decisores, troca de directores,
perda de documentos, hesitações paralisantes. Quantos outros casos haverá destes, ancorando Portugal num perímetro de
actuação modestamente atractivo e pouco confiável? Quantos mais exemplos de
improdutivos “impedimentos” existirão entre nós, exclusivamente provocados não
por decisivos argumentos estratégicos mas pelo mais atávico desmazelo em todas
as suas grandes, médias ou pequenas vertentes? Coarctando de uma penada um robusto desenvolvimento, uma capacidade
resposta pronta, gente mais responsável, um país cívico.
4. E agora o pior e o pior hoje não é o que acima disse, nem
sequer o embaraçantemente desmazelado folhetim-non-stop — Tancos. Também não é o descobrir-se
de repente que quando é preciso um meio de intervenção ele se encontra
placidamente “fora de serviço”, nem ainda as fábricas ou empresas que não se
licenciam pelas más razões. Falo de
dois emblemas do país, ex-libris da cultura, da história, da identidade
portuguesa como são a Biblioteca
Nacional e o Museu
Nacional de Arte Antiga. Instituições com tanta importância e (suposto)
prestígio que possuem ambas a palavra “nacional” na sua designação. E no
entanto….
E no entanto não vivem, sobrevivem. Podiam crescer, mas estiolam.
Deviam vicejar mas esmorecem. Não sei se foi maior a pena ou vergonha quando há
dias soube da demissão de António Felipe
Pimentel, director do MNAA, e do seu director
adjunto, José Alberto Seabra de Carvalho: heróicos soldados cansados de
luta tão inglória onde na última década combateram mais do que podiam (e
deviam), com a magnífica equipa do museu. Acreditem porém que este estado de coisas não radica apenas no
retumbante despropósito de algumas leis ou na ancestral falta de meios do país
pobre que somos, mas também no “deixar andar” do país que não deveríamos ser.
Vergonha sim e no caso da Biblioteca Nacional, também. O desleixo com que
institucionalmente se lida com o que ela deveria representar e significar tem
uma imensa quota parte na explicação do estado de coisas que por lá vigora. Nem tudo é dinheiro mas quase tudo é respeito,
seriedade e responsabilidade.
5. Se há uma leveza estonteantemente
populista em quem preside e muito jogo de cintura em quem governa, isto de que
acima falei não são só “eles”, somos nós. Nós portugueses. Nós todos.
Praticamos o desmazelo com afinco e nele consentimos com grande afã. Uma pena.
Uma pena que em Dezanove eu gostaria que voasse para longe.
COMENTÁRIOS
Domingas Coutinho: Desmazelo,
desleixo, desrespeito, desordem, desconfiança, desvergonha, enfim tantos “des”
em que este nosso querido País se tornou. Mas continuamos a ouvir que estamos
melhor. Os pensionistas vão à caixa multibanco e ficam contentes com um aumento
de 10 euros mas não fazem conta ao que pagam a mais no supermercado nem na
pastelaria, nem no combustível. Querida Maria João não desanime e pelo menos
desejo que continue a abanar estas consciências até que surja alguém com brio,
respeito pelos outros, confiável e com vergonha na cara que mude as coisas. Bem
haja.
António Vieira: Cara Maria Avillez. Belíssimo artigo de
opinião. Mas devo dizer que acho que a situação ainda é pior do que a retrata.
Não só o "desmazelo" é totalmente aceite como se transformou num ícone
cultural altamente valorizado, devidamente rebaptizado de "capacidade de
improviso", nada mais do que deixar tudo para a ultima hora para ser
depois mal feito, fora de horas e destinado a ser temporário. Cresci a ouvir
dizer que os Portugueses tinham essa extraordinária capacidade, até que comecei
a viajar bastante e rapidamente descobri que outros partilhavam dessa qualidade
e que a tinham em igual estima: na Índia, em vários países de África, na
América do Sul. Noutros países, como o Japão, a Alemanha, os EUA ou o Canadá,
essa qualidade é substituída por capacidade de planeamento, logística,
organização, accountability (essa palavra para a qual a língua portuguesa ainda
não se dignou a traduzir!), entre outras. Com tantas coisas que Portugal tem
para melhorar, fico sempre exasperado quando vejo que as nossas lideranças (e o
povo...) continuam a querer seguir o exemplo de verdadeiros desastres como a
Grécia, a Venezuela, Cuba, e tantos outros em vez dos nossos parceiros e
aliados cujos povos vivem bem melhor do que nós.
António Serrano: Desmazelo descarado. E os
mais desmazelados lambem as botas de chefes desmazelados e são promovidos.
Earl Woode: Tem
toda a razão. Os Portugueses são desorganizados, eternos atrasados, pouco
eficientes e pouco produtivos embora passem muitas horas no local de
trabalho. Mais, há um "quero lá saber" generalizado pelo país
todo. Ninguém cumpre prazos, responde a e-mails em tempo útil, devolve
chamadas, chega a horas a lado nenhum ou cumpre orçamentos. Sim, somos um
povo afável e simpático e muito acolhedor para quem nos visita. Mas isso
não chega e as outras características custam-nos muito em termos de
produtividade e, consequentemente, nível de vida. Por isso estamos
eternamente (e vamos continuar a estar) na cauda da Europa e estamos a ser ultrapassados
por todos os países de Leste que, não obstante os atrasos a que ficaram
sujeitos durante a época do Comunismo, são muito mais produtivos e eficientes
que nós. Os Portugueses preocupam-e acima de tudo só com duas
coisas: a Bola e as idas à praia no Verão. Tudo o resto fica para
segundo plano. É pena!
Maria
Mendes: Maria
João, é oportuna a sua crónica só que, vinda de si, cola com
"cuspo"... aliás como os discursos de muitos lisboetas: mandaram os
filhos para países considerados mais evoluídos...têm tiques de
aristocracia...comungam conversas de superioridade pessoal...e não, não
convencem! Para que isso acontecesse os vossos filhos teriam de estar cá a dar
o exemplo!... Nas vossas análises não teriam de puxar os galões dos teres e
haveres!... Por fim, deviam mostrar a humildade que devia estar subjacente a
qualquer ser humano que quer ser ouvido e respeitado. Cumprimentos
Relvas Analytics: ...as oligarquias feudais, burguesas e fascistas de que a dona Maria João
faz parte sempre lutaram com todas as suas forças para terem uns portugueses
mansinhos e com fraca prestação para que não os chateassem muito e fossem uns
bons escravos! ... portanto este texto é um simples exercício de cretinice! ...aliás,
a retórica é muito parecida com a que tiveram os nazis no Gueto de
Varsóvia quando arrancaram o asfalto para que a chuva fizesse lama e eles
poderem dizer "olhem como estes porcos judeus gostam de chafurdar na lama!"
...estamos falados!
Quinto Império > Relvas Analytics: Típico português de pôr a
culpa nos outros, menos neles próprios.
William Smith > Relvas Analytics: Relvas, vou ser franco
contigo. Por um lado, causa-me um certo
assombro a tua tentativa em comparar a MJA com nazis, alcatrão, judeus, lama,
eu sei lá que mais. Mas por outro lado, não deixa de ser reconfortante
constatar o nível dum típico comentarista de esquerda, tu.
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