Uma citação literária, de William Faulkner, enviada por Salles da Fonseca, a coroar uma proposta
irónica de Helena Matos, a respeito
da gravidade das greves na reconstrução do país – a proposta “populista” de
greve dos contribuintes. Como uma mancha solitária num areal infinito, cabine
telefónica imprestável e ridícula “no meio do deserto”, inútil estrebuchar de
quem usa a ironia para travar a indignidade soez com que se destrói um país
numa paralisação contínua, de inércia e arrogância, Vox clamantis in deserto, contudo, solitária e imprestável no areal em que nos vamos tornando.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 14.01.19
SOLIDÃO
Nada consegue parecer tão
solitário como um homem de grandes proporções caminhando através de uma rua vazia. (Ele não era) largo nem alto, mas conseguia parecer
mais solitário do que uma cabina telefónica no meio de um deserto.
William Faulkner
II - ORÇAMENTO DO ESTADO
Uma
proposta absolutamente populista /premium
OBSERVADOR, 2/12/2018
Chegou a hora dos contribuintes mostrarem quem paga isto tudo. Os
juízes fazem greve. Os professores fazem greve. Os enfermeiros fazem greve. Só
os contribuintes nunca fizeram greve. Porquê?
Aquilo que aqui me traz é uma
proposta assumidamente populista. Não é um bocadinho populista. Muito menos tem
laivos de populismo. É populista e ponto. Não, não pretendo imitar os parlamentares que, como aconteceu esta
semana, em Portugal se substituíram aos peritos de saúde e decidiram
acrescentar vacinas ao plano nacional de vacinação (também já tinham querido
proibir a prescrição de um medicamento pelo que é de temer onde acabará este
caso de medicina-parlamentar). E que em França a pretexto da protecção à
infância já legislam sobre as repreensões que os pais dão aos filhos e
transformam uma palmada num mau trato. Também não vou repetir a leviandade dos
deputados quando aprovaram legislação
“disney” sobre o abate nos canis que levou a que as
autoridades nada façam perante a proliferação de matilhas. E muito menos vou
perder tempo com a preocupação que medra entre as boas almas com o populismo
crescente na Europa.
Pois admitindo como certa a definição do Guardian que
tanto tem dado que falar – “Um partido é considerado populista, se apresenta a vida política como
uma luta entre uma massa de cidadãos virtuosos e uma elite mal-intencionada e
venal. Os partidos populistas, obviamente, assumem-se como representantes do
bem (“nós”, “o cidadão comum”) contra o mal (“eles”, “as elites”) – temos de convir que nós,
portugueses, há décadas convivemos, toleramos e respeitamos partidos que, como
são os casos do PCP e do BE, têm precisamente essa visão da sociedade.
Populista, pois claro. Portanto e a não ser que se pretenda instituir que o
populismo só existe à direita e que à esquerda o referido populismo se chama “justa indignação” e “luta contra as injustiças” vamos deixar
o frenesi anti-populista a marinar.
Passando ao que me interessa, aqui está a minha proposta (populista,
pois claro): é urgente
o avanço civilizacional do direito a fazer greve ao pagamento de impostos. É isto
populismo? Claro que é. Na verdade e parafraseando a definição vigente de
populismo – “Um partido é considerado populista, se apresenta a vida política como
uma luta entre uma massa de cidadãos virtuosos e uma elite mal-intencionada e
venal.” – não tenho qualquer confiança
nesta elite que em quarenta anos não só deixou o país falir três vezes –1977,
1983 e 2011 – como nunca assumiu a sua parte de responsabilidade nesses
desastres.
Por contraste, e aqui vai outro traço do
meu populismo, considero que essa mesma elite que tão condescendente é
consigo mesma na hora de se penalizar pela péssima gestão que tem feito do
nosso dinheiro, não perdoa a menor falha a qualquer cidadão que não cumpra com
as suas obrigações fiscais. Por
exemplo, quando é que a CML nos dá explicações para esse sugadouro do dinheiro
dos contribuintes que é o alegado negócio dos terrenos da Feira Popular e de
caminho se fazem as contas aos arrebatamentos do “Zé que faz falta” que
estranhamente ninguém considerou populista mas sim um justiceiro?
Primeiro foram 29,5 milhões de euros
de indemnização por conta dos juros que a Bragaparques terá pago aos
bancos onde aquela empresa contraíra um empréstimo de 101 milhões de euros para
comprar os terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular. A esta factura
juntou-se em 2016 outra de 138 milhões de euros de mais uma
indemnização da CML à mesma Bragaparques por assuntos que tinham ficado
pendentes no revogar por parte da CML das permutas dos referidos terrenos… E assim pode vir a acontecer que a
Bragaparques somando indemnizações a indemnizações venha a ficar com os ditos
terrenos da Feira Popular sem gastar um cêntimo. Tudo pago e
oferecido pelos contribuintes sendo certo que já outras indemnizações se perfilam no
horizonte!
Portanto,
atochadinha de populismo, declaro que ou exigimos controlar o dinheiro que o
Estado nos leva ou estamos rigorosamente tramados que é o mesmo que dizer sem
capacidade de fazer a mínima poupança que nos permita enfrentar as crises, as
despesas inerentes à velhice e as vicissitudes da vida. Dir-me-ão
que os partidos cumprem esse papel quando discutem o Orçamento do Estado. Mesmo
que tal fosse verdade e não é – espantosa declaração do dirigente do PSD que ao
ser entrevistado pela Rádio Renascença
responde que não se podia pronunciar sobre a Taxa Robles porque não a conhece
suficientemente – cabe perguntar se por acaso os professores
prescindem dos respectivos sindicatos? E os enfermeiros? E os estivadores?… E a
estes sindicatos temos ainda de somar as frentes comuns, as federações, as
confederações, as uniões… (tudo pago por quem?) De cada vez que um
motorista do metro faz greve pelo menos três representantes de diversas
estruturas sindicais vem dar conta da justeza das respectivas
reivindicações. Porque hão-de estar então os contribuintes sem quem os
defenda? Sem alguém que se sente e fale por eles diante de cada político que
anuncia mais um serviço gratuito?
Os
contribuintes grevistas não podem ser obrigados a anunciar se estão ou não a
pensar fazer greve e também não podem ser substituídos por outros que queiram
pagar impostos. Nenhum contribuinte grevista pode ser prejudicado por ter feito
greve aos impostos.
A grande batalha para já é o direito
ao subtraído – “Por cada imposto adicional um imposto subtraído”. Passo a explicar: de cada vez que formos a
um serviço público e não o conseguirmos utilizar porque está degradado (caso
dos comboios), porque a carreira foi cortada (autocarros), porque só há vaga
para dai a três meses (centros de saúde), porque a operação foi adiada para
daqui a dois anos (hospitais)… o Estado emite-nos o respectivo subtraído. Ou
seja a importância a descontar nos nossos impostos por termos pago um serviço
público que não nos é prestado.
Todo este exercício do direito à
greve por parte do contribuinte será necessariamente acompanhado pela exaltação
do direito à greve. Os contribuintes grevistas não podem ser obrigados a
anunciar se estão ou não a pensar fazer greve e também não podem ser
substituídos por outros que queiram pagar impostos. Nenhum contribuinte
grevista pode ser prejudicado por ter feito greve aos impostos.
Só
quem ameaça com greves, piquetes na rua e faz directos indignados nos
noticiários das 20h consegue alguma coisa. Os juízes fazem greve. Os
professores fazem greve. Os polícias municipais fazem greve. Os trabalhadores
dos transportes públicos às vezes não estão em greve. Os enfermeiros fazem
greve e tão contentes estão com a greve que agora levam a cabo que nos anunciam
como quem canta aleluias “Não é possível, se a
greve durar até 31 de dezembro ou se se prolongar, reprogramar nos próximos
anos estas cirurgias para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em tempo útil”…
Na verdade, até já tivemos um
governo que fez greve Os únicos cidadãos que jamais
faltaram ao que se espera e exige deles são os contribuintes.
As
estradas caem, o interior arde e as armas desaparecem dos paióis… mas a
Autoridade Tributária funciona sempre. Não há cataclismo natural, tragédia ou
greve que suspendam a sua actividade.
Dir-me-ão que os militares e os
polícias não podem fazer greve. É verdade mas não só os militares e os polícias
têm estruturas que falam por eles como no caso dos polícias podem sempre os
agentes constituir mais um sindicato, o que dadas as regalias usufruídas pelos
sindicalistas nas forças policiais muito facilmente paralisa a
corporação: em Abril deste ano a PSP já contava com 16
sindicatos e 36 mil dias de folga para os dirigentes e três sindicatos têm mais
dirigentes que filiados.
Já os contribuintes esses não
só estão mudos como a simples possibilidade de quererem pagar menos impostos é
quase criminalizada. Para os manter silenciosos e ordeiros foi criada a
única estrutura que efectivamente funciona no país: a Autoridade Tributária. As estradas caem, o interior arde e as armas
desaparecem dos paióis… mas a Autoridade
Tributária funciona sempre. Não há cataclismo natural, tragédia ou greve
que suspendam a sua actividade. No caso da justiça temos até duas perspectivas
antagónicas, caso se trata do contribuinte ou do cidadão: o cidadão pode acabar
com a vida de um seu semelhante à vista de uma multidão mas ele será sempre
considerado inocente até prova em contrário. Já com o contribuinte o caso é
absolutamente inverso: primeiro paga as multas, as coimas, as custas… e
depois se for muito rico poderá contestar.
Obviamente o exercício do direito à
greve pelos contribuintes será feito exactissimamente nos mesmos moldes que os
praticados pelos outros grupos: os estivadores bloqueiam portos? Ora aqui também se bloquearão as
repartições de Finanças sem esquecer o boicote ao portal das Finanças. Os
enfermeiros podem seleccionar os blocos operatórios em que fazem greve e desse
modo com um reduzido grupo de grevistas exponenciar os efeitos da greve? Pois também os contribuintes têm de poder
escolher quais entre eles fazem greve: por exemplo, num ano serão os grandes
contribuintes, no outro os pequenos, no outro os profissionais livres…
O
imposto está para o contribuinte como o salário e o horário para os
trabalhadores: cada um reivindica o melhor para si — uns, ganhar mais e
trabalhar menos. Os outros, pagar menos.
Para lá da contestação ao pagamento
de impostos e da reivindicação do subtraído há que ter em conta a recuperação
das carreiras dos contribuintes, o descongelamento da carreira dos
contribuintes e a progressão na carreira de contribuinte. Tudo isto muito
resumidamente se terá de traduzir na melhoria das condições de vida dos
contribuintes ou seja em pagarem menos impostos pois o imposto está para o
contribuinte como o salário e o horário para os trabalhadores: cada um
reivindica o melhor para si — uns ganhar mais e trabalhar menos. Os outros
pagar menos. Dirão que uma coisa não é compatível com a outra. É verdade e é
esse precisamente o meu propósito: mostrar essa incompatibilidade.
É indispensável que se explique que a cada direito garantido
corresponde mais despesa. A cada gratuito mais impostos. A cada
intervencionismo estatal maior necessidade de verba. A cada dar mais tirar. Falar
assim é populismo? Talvez. E o que será prometer aquilo que não se sabe como se
vai pagar?
Uma citação literária, de William Faulkner, enviada por Salles da Fonseca, a coroar uma proposta
irónica de Helena Matos, a respeito
da gravidade das greves na reconstrução do país – a proposta “populista” de
greve dos contribuintes. Como uma mancha solitária num areal infinito, cabine
telefónica imprestável e ridícula “no meio do deserto”, inútil estrebuchar de
quem usa a ironia para travar a indignidade soez com que se destrói um país
numa paralisação contínua, de inércia e arrogância, Vox clamantis in deserto, contudo, solitária e imprestável no areal em que nos vamos tornando.
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