domingo, 23 de dezembro de 2018

Mais um caso hilariante do nosso ridículo


Lembrei-me do «João que chora e João que ri» da Condessa de Ségur, que define dois protagonistas adolescentes, de maneiras de proceder opostas, para os preconceitos de vida ao modo maniqueísta clássico, de bons e maus, mas não é este o caso. Aqui, o João que chora, isto é, o escritor culto e grave, que analisa do pedestal do seu saber, – José Pacheco Pereira – talvez se ria, (ou já se tenha rido, naqueles tempos mais juvenis, de entrega efusiva aos seus ideais activistas revolucionários), que agora assumem um carácter de severidade e compostura analítica, de condenação convenientemente grave. O “João que ri”, Alberto Gonçalves, fá-lo segundo moldes também de saber e condenação, mas hílare, que provavelmente coabitam com uma real tristeza pessoal, resultante de uma constatação de vexame nacional que incomoda todos os inconformistas - os que amam, realmente, a sua pátria e desejariam erguê-la do lodaçal de boçalidade e basófia que lhe assenta. Quanto ao primeiro texto, um Editorial de Manuel Carvalho, dá conta do caso, que foi, realmente, uma ridícula “farsa de coletes amarelos”, em jeito de mimetismo, demonstrativo de humilhante primitivismo nacional.
I - EDITORIAL - Uma farsa com coletes amarelos
Os organizadores ficam mal na fotografia pelo fracasso, a imprensa não sai imune mas quem sai pior desta historieta é o Estado e quem o governa.
MANUEL CARVALHO
PÚBLICO, 22 de Dezembro de 2018
As tão temidas “manifestações de grande dimensão” anunciadas para todo o país afinal não passaram da exibição de pequenos grupos de protesto que se distinguiam pelo semblante do fracasso e, claro está, pelos coletes amarelos que envergavam. Entre a expectativa que se foi acumulando ao longo da semana e a realidade desta sexta-feira sobra por isso uma óbvia sensação de exagero e de ridículo que transformou Portugal num país de opereta. Ninguém sai imune deste triste episódio, que prometeu parar o país e acabou a parar meia dúzia de carros sob o olhar tolerante da polícia. Há lições que vale a pena reter nesta mistificação.
Os organizadores ficam mal na fotografia pelo fracasso, embora tivessem a seu favor a honestidade de dizer que se resumiam a um grupo de carolas que, entre parar o país e uma partida de sueca, preferiram a primeira opção. Não sai imune a imprensa que em certos momentos falou de infiltrações, de drones, de bloqueios a pontes com o tom de quem expõe uma profecia destinada a ser cumprida. Mas, e fundamentalmente, quem sai pior desta historieta é o Estado e quem o governa. Se a capacidade de previsão das forças de segurança pública é de facto a que se viu, estamos entregues a agentes secretos incompetentes, a chefes de polícias sem ligação à terra e a governantes medrosos e sem discernimento para distinguir uma formiga de um elefante – como Luciano Alvarez, de resto, descreveu.
Podemos conceber que o Governo foi prudente, que jogou por antecipação para garantir a ordem pública. Mas, mesmo que essas atitudes sejam louváveis, não justificam a forma desastrada como tudo aconteceu. Ao suspender folgas da polícia, o Governo deu a entender que tinha informações classificadas que auguravam uma manifestação gigantesca e criou um quadro de apreensão e alarme. Soubemos hoje que era tudo falso – o que impõe a necessidade de perceber a razão de tanto aparato e preocupação. Era bom, por exemplo, que se averiguasse a competência do SIS ou do aparelho de informações da polícia neste caso.
revelação de um quadro de alarme acabou por criar uma realidade artificial – porque o mal-estar difuso que se sente nas pessoas com baixos rendimentos que a hegemonia dos sindicatos da função pública tem afastado do debate não se expressa apenas porque meia dúzia de activistas criaram uma página na Internet. Se apareceu mais alguém nas ruas para lá dessa meia dúzia, é porque o Governo os estimulou e porque os jornalistas amplificaram esse estímulo. A meio do dia, a farsa acabou como costuma acabar: algures entre um sorriso complacente e doses elevadas de desdém.
II - OPINIÃO
O festival de irresponsabilidade
O “Vamos parar Portugal” não falhou por falta de propaganda, falhou por falta de pessoas.
22 de Dezembro de 2018
A manifestação “Vamos parar Portugal” é o primeiro sinal exterior de um populismo larvar que medra pelas redes sociais fora e que era só uma questão de tempo até querer sair delas para a rua. Saiu agora e mostrou a enorme diferença entre os apoios mais ou menos incendiários “dentro” e a escassez de apoios “fora”.
O que se passou com a manifestação dos chamados “coletes amarelos” portugueses é disso um verdadeiro exemplo. Deixemos a parte de leão que têm as malfeitorias dos deputados, dos governantes, dos políticos activos, desde o pequeno truque para ganhar mais uns tostões no fim do mês até à corrupção da pesada. É grave, mas o seu papel não é único, nem tão decisivo como parece.
Há também uma indústria da denúncia da corrupção, verdadeira ou falsa, exagerada quase sempre, que vai desde políticos propriamente ditos que fazem da “luta contra a corrupção” um instrumento de existência e de vantagem eleitoral, muitas vezes com enorme duplicidade entre os “nossos” que são desculpados e os “deles” que são atacados por sistema, até à imprensa e televisão tablóide que é hoje predominante. Os mecanismos de cobertura dos eventos são cada vez menos jornalísticos, “notícias” inverificadas, obsessão pela “culpa”, muitas vezes antes de se saber se ela existe, menosprezo pela descrição dos eventos a favor do comentário conspirativo, tudo isso acentua o discurso populista.
Voltemos ao “Vamos parar Portugal”. Esta manifestação teve excepcionais condições de propaganda para sair de fora do casulo das redes sociais. A ideia de que estas manifestações vivem essencialmente dos apelos nas redes sociais é, para não dizer mais, enganadora. E é claramente um dos mitos actuais, subsidiário do deslumbramento tecnológico, que se repete sem escrutínio desde a “Primavera árabe”, como atestam todos os estudos, mostrando que as redes sociais estão longe de ter o papel que se lhes atribui. Não adianta, é um mito urbano, logo tem pernas para andar.
Esse mito oculta que as manifestações com algum sucesso que nasceram nas redes sociais só ganham dimensão quando passam para as páginas dos jornais e os noticiários da televisão, ou seja, para os media convencionais. Esta é a segunda manifestação em Portugal que tudo deve ao modo como a comunicação social resolveu tratar este tipo de protestos. A primeira foi a manifestação do “Que se lixe a troika”, que beneficiou de uma grande simpatia dos jornalistas (correlativa da antipatia no tratamento das manifestações sindicais), e a segunda foi esta, que suscitou sentimentos contraditórios entre o desejo de que houvesse pancadaria, porque isso dá boa televisão, anima a política e “chateia o Costa”, até à exploração do medo.
Aliás, é interessante ver como foi evoluindo o contínuo media-redes sociais e alguns sectores políticos da direita que não disfarçavam a expectativa da contestação para contrariar a “ditadura” de Costa e da “geringonça”, até à extrema-direita (o PNR teve uma presença importante entre os manifestantes) e a fina alt-right do Observador, que passou do alarmismo para o “fiasco”. Mas faça-se justiça ao Observador, que não esteve sozinho: a cobertura mediática anterior à manifestação foi de muito má qualidade, exagerada, alarmista, desproporcionada e mostrando muito pouco conhecimento sobre o que se passava, sugerindo muitas vezes que da passividade sonâmbula e hipnótica da “geringonça” se iria passar para um país a ferro e fogo.
Esta atitude foi também a do Presidente da República e do Governo, ambos alimentando um alarmismo exagerado, com gestos que seriam completamente contraproducentes, caso existisse mesmo o perigo de as coisas descambarem. O que eles fizeram com passeios “apaziguadores” com camionistas, que pelos vistos não tiveram nenhuma presença destacada no “Vamos parar Portugal”, ou com avisos de que se estava num “alerta vermelho”, foi a melhor propaganda que se poderia fazer para um movimento que nunca deixou de ser débil. O “Vamos parar Portugal” não falhou por falta de propaganda, falhou por falta de pessoas.
O alarmismo irresponsável das autoridades mostra também que não há “inteligência” sobre estes grupos, ou que, se existe, é de muito má qualidade – ou seja, ou não sabiam de nada do que se ia passar, ou então resolveram fazer uma actuação exemplar com antecedência para dissuadir o que se possa vir a passar um dia futuro. Seja como for, é brincar com o fogo.
Eu ouvi um dos “organizadores” dizer que iriam para a rua um milhão de pessoas, o que nos dá a medida da ilusão. Mas seria uma ilusão ainda maior ignorar que há muita gente zangada, há cada vez mais gente que já não pensa em termos democráticos, mas em termos de “nós” (o povo) e “eles” (os políticos) – a essência do populismo, para simplificar –​ e que o combustível para a zanga e para as ideias que nascem da zanga é cada vez mais abundante. Como é igualmente abundante a completa irresponsabilidade com que se alimenta essa fogueira escondida, como se viu a pretexto destes protestos que nunca pararam Portugal, mas parecem ter parado a cabeça a muita gente.
COMENTÁRIOS:
Manuel, Seixal: Este movimento foi um fiasco porque as pessoas não andam descontentes, pelo contrário, andamos em período natalício, onde o espírito é positivo, e existe dinheiro para gastar. As greves e manifestações atualmente não são reais, são apenas ganância de vários sectores da função pública, que não são pobres, mas querem mais. Por exemplo os enfermeiros, algum tem falta de emprego? Vivem com dificuldades? A maioria trabalha no público e no privado e vivem muito bem.
Jose, 22.12.2018:
 O "movimento parar Portugal" revelou as suas intenções. Aproveitar o descontentamento efetivo que já mandou para fora da democracia milhões de portugueses que não participam, nem mesmo pelo voto, no curso dos acontecimentos para exprimir, nas tuas e praças das cidades, a vontade do regresso à ditadura apeada no 25 de Abril. Sim. Os meios de comunicação social de "referência" fizeram de tudo para ter notícia e programa fervilhante no ar. Esses meios de CS não têm nenhum interesse na democracia nem no bem estar do povo português. O seu interesse é o do dono, mais nenhum. Não identifico em Portugal jornalistas dispostos a dar o pito às balas pela liberdade. Preferem o miserável salário a recibos verdes. Os milhões de portugueses que são a abstenção comportam a desilusão com a democracia.
A febre amarela /premium
OBSERVADOR, 22/12/2018
A que propósito os portugueses se envergonhariam do prof. Marcelo se se podem envergonhar do sr. Trump e do sr. Bolsonaro? A que propósito lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros sobreviventes?
2h15 – Após verificar que os protestos dos coletes amarelos deixaram o governo atento, a GNR atenta, a PSP atenta e a Força Aérea atenta, decido permanecer também atento e acompanhar em pormenor o dia do anunciado Apocalipse. Garanto a mim mesmo que ao longo de 24 horas não pregarei olho, a vigiar a partir do computador o caos que ameaça o meu querido país.
2h25  Adormeço.
5h20 – Acordo e faço café.
5h30 – Acedo ao manifesto dos coletes amarelos. Infelizmente, a internet destruiu-nos a capacidade de concentração e, logo ao fim de dois parágrafos, dou por mim a desistir da leitura para comprar sapatos num site de vendas. Vale que não preciso de ler o manifesto para compreender no que consiste o movimento. Aos poucos, e sempre entre sites de sapatos, relógios e peúgas desportivas, vou espreitando o que inúmeras pessoas esclarecidas disseram acerca dos prometidos tumultos. O sr. Arménio da CGTP, por exemplo, uma personalidade inegavelmente equilibrada, revela que a coisa não passa de um bando de arruaceiros que “querem instabilidade para dar força à extrema-direita”. Ai, os marotos. Deve a isto que o dr. Ferro Rodrigues, sujeito impecavelmente asseado, chama o “mau cheiro populista que sopra da Europa”. Ainda que figurativo, o fedor incomoda-me. Volto a adormecer.
7h00 – A hora marcada para o início do tsunami amarelo. Continuo a dormir.
12h15 – Acordo às 12h15. Vejo que são 12h15 e entro em pânico: decerto a vaga de extrema-direita já levou tudo à frente e as comunicações caíram. As comunicações não caíram. No Facebook, circula uma fotografia, tirada não sei onde, em que duas dúzias de coletes amarelos se vêem rodeados por uns cinquenta polícias (se descobrisse as armas de Tancos, o Exército não faltaria). Achei o policiamento escasso e preocupante: a fúria fascista exige, no mínimo, uma proporção de 5 para 1 e, idealmente, 5 para 0. Num desses programas de “debate” em que, graças a Deus, todos concordam, um comentador isento e avençado do regime pedira “acção directa”, leia-se bordoada na ralé.
12h35 – Ligo o televisor, que não acolhe canais “tradicionais” há meses. A RTP faz um “directo” dos protestos. Por acaso, são na Catalunha. A TVI 24 mostra os manifestantes no Marquês de Lisboa. Gritam “O povo unido jamais será vencido”, ou seja, a extrema-direita recorre a slogans dos comunistas chilenos, blasfémia que prova a ignorância cega dessa gente. A repórter fala em “tensão” e “confusão”. Há notícias de três detidos. Aparentemente, não sobraram muitos mais.
13h00  Leio algures que velhos organizadores de rebeliões boas (“buzinão”, “geração à rasca”) abominam a “falta de politização” dos coletes amarelos (rebelião má), que não traduzem uma agitação “orgânica” e desejam abolir os partidos, os partidos que, coitados, tanto se esforçam pelo bem comum e por alguns bens incomuns. A extrema-direita, sete ou oito biltres, tem imensa lata. Na CMTV, uma jovem manifestante critica “a porcaria que tomou conta do país”. No sofá, peço retoricamente à sirigaita que dobre a língua quando se referir a uma nação que já ocupa o 16º posto no PIB per capita da zona euro e, não esquecer, é a 21º economia com maior crescimento na UE. E isto antes de as forças progressistas que nos governam acabarem de enxotar o que resta do investimento estrangeiro e imperialista.
13h28 – Em Faro, 20 ou 30 insurrectos (os demais, informa o repórter, foram almoçar) vagueiam numa rotunda. Erguem cartazes contra a corrupção. Corrupção? O prof. Freitas, personalidade inapelavelmente digna, veio há dias assegurar a honestidade do ex-banqueiro Salgado. E o dr. Pinho aparece agora na TVI a assegurar a inocência do dr. Pinho nos “casos” (fictícios) EDP e BES. Corrupção?  Só se for a das “toupeiras” do Benfica ou não sei quê, assunto que, na prioridade dos canais, sucede à devastação populista que assola Portugal.
13h30 – O primeiro-ministro deseja que os protestos continuem a correr com “tranquilidade”. O dr. Costa padece de excessiva tolerância. Em paragens completamente democráticas, como em Cuba, na Coreia do Norte, na Venezuela e na saudosa comuna de Jonestown, não há resmungos: há a gratidão dos súbditos perante líderes virtuosos. Apesar de a maioria dos portugueses ser grata, e proceder com respeito e juizinho, pairam por aí “criminosos e infractores” (palavras da radiosa ministra da Saúde) que se queixam de barriga cheia, desafiam o poder e fomentam desavenças. As cadeias servem para quê, afinal? Imito (cruz, credo) os coletes amarelos e parto para almoço, com oração prévia a louvar os senhores que nos tutelam.
15h00 – Regresso à vigilância. Nas televisões há azáfama e excitação. Assusto-me, convencido de que a extrema-direita adoptou a luta armada e desatou a rebentar com propriedade sortida. Imagino helicópteros do INEM a cuidarem do resgate de inocentes, certos de que cada despenhamento abrirá concursos de apuramento da verdade, custe o que custar. À cautela, consulto preços de voos para Caracas (1.026€). Não concluo a transação porque descubro a tempo que o rebuliço televisivo se prende com o Benfica, prestes a perceber se é, ou não é, corrupto. Respiro de alívio.
16h23 – Noto que, a bem da estabilidade, os coletes amarelos sumiram da actualidade noticiosa, com excepção do vídeo em que um PSP despe o colete (de cor distinta) para insultar e oferecer porrada a uns idosos extremistas. Aquele coração mole não os abateu ali, e foi pena.
17h10 – Volto às televisões e aprendo que, à semelhança do dr. Salgado, do dr. Pinho e outros enormes vultos, o Benfica é igualmente inocente. Ao que tudo indica, a extrema-direita bateu em retirada de vez (numa carrinha de nove lugares).
17h15 – Sem querer comentar os coletes amarelos, Sua Excelência, o Presidente da República comenta os coletes amarelos: “Os portugueses não trocam a segurança da democracia pelo aventureirismo de experiências marginais e anti-sistémicas”. Pois não. A que propósito os portugueses trocariam? A que propósito os portugueses reclamariam das estradas que se esfarelam se têm estradas que continuam inteiras? A que propósito os portugueses lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros sobreviventes? A que propósito os portugueses arrasariam à paulada a Protecção Civil que não auxilia nos desastres se esta nos aconselha a vestir agasalhos no Inverno? A que propósito os portugueses chorariam o dinheiro que o Estado lhes tira se podem celebrar o dinheiro que o Estado lhes permite reter? A que propósito os portugueses se envergonhariam do prof. Marcelo se se podem envergonhar do sr. Trump e do sr. Bolsonaro? A que propósito os portugueses protestariam uma situação que é a cara chapada deles próprios? Quanto à liberdade, os portugueses são livres – de obedecer. E quase todos obedecem com gosto a quem os protege do mundo, incluindo das hordas de extrema-direita. O fascismo não passará. Aqui, aliás, não passa nada.
21h10 – Cruzo-me na estrada com um ajuntamento de coletes amarelos. Sinto um nó na garganta. Depressa constato tratar-se de um acidente rodoviário. Fico contente.

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