sábado, 8 de dezembro de 2018

Uma novela de Jorge de Sena


Emprestou-me o meu filho Ricardo a 4ª edição de “O FÍSICO PRODIGIOSO” de Jorge de Sena, de 1970, curioso da minha reacção perante uma obra que leu com gosto. A minha reacção foi negativíssima, desinteressada dos motivos de uma sensualidade a que não correspondia, em meu parecer, a beleza de forma, nem de pensamento, além do intuito provocatório contra o regime de Salazar, que mais se observa na segunda parte, de condenação trocista anticlerical e anti situacionista, na movimentação e violência desordeira das multidões, a deixar prever o presente que vivemos, no esfrangalhar de compostura, com o seu universo ora real ora de magia, ora de erotismo e sadismo caóticos, com cantigas de amigo acompanhando o percurso da acção, num estilo propositadamente simplista, como manchas borrando caprichosamente a acção, em remate, acção posicionada num medievo específico de cavalarias e bruxedos vindos dos confins dos tempos é certo, e projectados voluntariamente e rancorosamente para o tempo futuro, por puro ódio aos constrangimentos políticos e religiosos vividos pelo narrador, cuja contra-capa contém a seguinte frase de J.S.: “(…) pouco do que eu alguma vez escrevi é tão autobiográfico como esta mais fantástica das minhas criações totalmente imaginadas”. E estou convencida de que não são só as dores ou raivas políticas que justificam o apodo “autobiográfico”, pois, na descrição do cavaleiro andante com poderes mágicos do seu pacto com o diabo, de dar vida e saúde através das suas orgias vividas com as várias donzelas – sendo Oriana a principal - ou com o diabo ou outras figuras masculinas – são os seus próprios sonhos eróticos ou a sua beleza física que descreve, talvez sonhos da adolescência que com realismo traduz.
Em tempos fiz um estudo sobres “As Lendas de Santos de Eça de Queirós” – e posso dizer que senti igual fascínio ao lê-las, que o que senti na leitura dos seus livros mais realistas ou mesmo de fantasia, como “O Mandarim”. Tive ocasião de vibrar com o estilo lapidar de Eça, tanto como com o universo de magia das suas lendas – de S. Cristóvão, de S. Frei Gil, de Santo Onofre, este último sujeito a tentações e a visões, como o cavaleiro da novela de J.Sena. É por esse motivo que transcrevo dessa última lenda os parágrafos finais que justificam a preferência pela “arte transcendental” do estilo queirosiano:
«Daí, a conclusão de Saraiva (António José) de que a “nudez forte da verdade”, o “mito revolucionário e progressistaatribuído a Eça e às suas ideias, com que pretendeu atacar as instituições sociais do seu tempo mas que continuam vivas hoje, nos apareçam principalmente como temas de arte”, tal como na Correspondência de Fradique Mendes” são pretexto para cartas”. Foi, certamente, reconhecendo o limitado do seu propósito realista, que Eça terá enveredado pela via do fantástico e da fantasia, da sensualidade plástica da forma, nas suas “Lendas de Santos”, que se adaptavam ao seu temperamento de artista e de fantasista. E, todavia, reconhecendo embora o pulsar da vida nas obras dos seus contemporâneos, Dickens, Flaubert, Zola, como não encontramos em Eça, cremos que o mundo por ele criado se reveste de uma elegância, de um sentido trágico da vida, na comicidade da sua ironia, na forma engenhosa do seu conceito, que o definem como um clássico, pelo extraordinário da sua arte imperecível”
Tanto a síntese da novelaO Físico Prodigioso”, como, e sobretudo, o magnífico estudo de Joana Emídio Marques, têm a suficiente clareza para que eu me dispense de o fazer, sendo, este último, uma excelente lição para mim. Só, de facto, não vejo nela a obra prima em que os tempos da severidade comunista a querem converter, propondo-a como obra de leitura integral nas escolas. Nem do ponto de vista didáctico nem do ponto de vista pedagógico a considero tal. Mas costumo falhar nos meus protestos poeirentos.
I - Textos extraídos da Internet
1- «O Físico Prodigioso” é uma novela de Jorge de Sena, publicado pela primeira vez em 1966 na colectânea "Novas Andanças do Demónio" e individualmente em 1977. Como origem desta novela de Jorge de Sena foram usados dois exemplos do "quatrocentista «Orto do Esposo»-
Sinopse
Um jovem e bonito médico da Idade Média possuía poderes extraordinários concedidos pelo demónio, a quem deve favores sexuais, mas que é a sua fonte de obtenção de poderes mágicos e sexuais. Dirige-se a um castelo de uma jovem viúva que morre de amor e que ele cura. Os seus poderes sexuais miraculosos, que ele utiliza para benefício de muitos dos residentes do castelo, inclui os mortos, que o maravilhoso médico ressuscita e restaura os prazeres do amor sexual.
Mas aqui termina o reinado de maravilhas do médico, pois este colide com as forças da ordem estabelecida, representadas pelas antigas figuras inquisicionais. O médico é perseguido, condenado por não exercer a medicina dentro das características do tempo, com um pouco de bruxaria e de ciências ocultas. É torturado para se obter uma confissão e deixado a morrer. O amor triunfa no fim, mas na pessoa de outro físico que emerge para substituir o primeiro .».
“O Físico Prodigioso”: um elogio à sexualidade transgénero na cara da PIDE.  6/1/2018
O triângulo amoroso entre o demónio, um cavaleiro e uma donzela fazem de "O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena, agora reeditado, um dos mais belos manifestos do pan-erotismo da literatura portuguesa.
Jorge de Sena [1919-1978] exilou-se nos ano 50 no Brasil e depois nos EUA.
Wikimedia Commons
Autor: JOANA EMÍDIO MARQUES
Ou não sabemos ou esquecemos: essa grande história de amor bissexual e pan-erótica da literatura portuguesa, escrita em 1964 e publicada em 1966, ali mesmo nas barbas da censura e dos outros vigilantes da moral pública que não deram por nadaO Físico Prodigioso de Jorge de Sena. Uma pequena novela, integrada no livro de contos Novas Andanças do Demónio (Portugália editores), situada numa incerta idade média onde um físico e cavaleiro, uma donzela poderosa e um demónio fascinado pela beleza se envolvem em amores trágicos mas redentores.
Em junho deste 2018 passam 40 anos sobre a morte do poeta, romancista, ensaísta, tradutor, monstro absoluto da literatura portuguesa do século XX, pensador polémico, exímio praticante de ataques à pátria, à língua, à política e à cultura portuguesas e a muitos dos seus pares. Dele poderíamos dizer o que Elias Canetti disse de Karl Krauss, “quando a sua época levantou o dedo contra si própria, ele foi esse dedo”. Falha apenas Portugal por ainda não ter feito esse exercício de auto-crítica que dê a Sena o reconhecimento que ele merece. O editor da Guerra &Paz, Manuel S. Fonseca, dá o mote e, fazendo justiça ao carisma provocador de Sena, lançou em dezembro (mesmo a tempo da quadra natalícia), a novela erótica O Físico Prodigioso, numa edição de luxo e com ilustrações de Mariana Viana.
Em 1964, ano da publicação original, nem todos souberam ler e decifrar (porque também foi para isso que o autor trabalhou) a abundante simbologia erótica de que é feita esta história sobre a qual, poderíamos dizer, com o poeta Rainer Maria Rilke, todo o belo é o começo do terrível, pois quase o mesmo disse, sobre ela, outro poeta E.M. Melo e Castro: “É belíssima, tenebrosa”.
Jorge de Sena era engenheiro civil de formação e oriundo de uma família açoriana Morreu em Sta Bárbara na Califórnia e está sepultado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa
Foi aliás, graças a Melo e Castro que o conto (Sena gostava de lhe chamar “novela”) saiu da obscuridade a que estava remetida toda a obra do autor e, em 1974, inclui o O Físico Prodigioso na Antologia do Conto Fantástico Português, dando, pela primeira vez, a esta história destaque de “obra-prima”. Considerando também esta uma obra singular, pelo seu experimentalismo formal, mas sobretudo pela forma como aborda directamente as várias formas de sexualidade, o poeta e ensaísta e amigo de Jorge de Sena, quando questionado pelo Observador sobre a actualidade deste texto, afirmou:
Quanto a mim, a questão do transgénero, atualmente na moda, que leva a que uma mulher escolha ser homem ou um homem mulher (por achar que está no corpo errado) é ainda uma manifestação de uma conceção binária da sexualidade: ter de escolher ser macho ou fêmea. Na novela do Jorge Sena há algo mais complexo que a bissexualidade ou a transgenericidade: há coexistência, por vezes simultânea, em cada um de nós, de vários géneros, várias sexualidades”.
Jorge de Sena não precisou de ir à Islândia buscar inspiração para esta história. Bastou-lhe, como ele deixará escrito,”a sua biografia” e a leitura da obra quatrocentista Orto do Esposo, onde estão reunidos vários contos populares portugueses. E — ele não o diz, mas nós sabemos — de vários mitos gregos e latinos, esses que sabiam tudo antes de nós e, é claro, Camões e a sua Ilha do Amor, que é o primeiro manifesto moderno de uma sexualidade livre, mas também, como lembra Helder Macedo, um outro poema camoneano, Manda-me Amor que cante docemente, que foi o tema da tese de doutoramento de Sena.
Lançar livros eróticos na época natalícia não tem grande tradição no nosso país. Fazê-lo numa edição de luxo, com direito a capa dourada digna de um manto cardinalício, muito menos. Manuel Fonseca desdramatiza: “Nós, ocidentais, temos desenvolvido um gosto extraordinário pela auto-expiação e não nos dá jeito nenhum, para esse fim incriminatório, ver o que há de pan-erótico no cristianismo, a começar no processo que esse extraordinário Deus trinitário arranjou para seduzir – com voz de anjo – a Virgem Maria. Com o seu exército de anjos, arcanjos, serafins, santos e santas em êxtase místico, o cristianismo, e em particular o catolicismo, quase transbordam de ademanes eróticos, o que a profusão de talha dourada, mantos de seda e cheirinho de incenso só reforçam e excitam. Poderia lá existir este texto de Jorge de Sena, este ‘O Físico Prodigioso’ se não tivesse bebido nesse rio de água benta em que se banha o sagrado e o profano, o invisível Espírito Santo e o tão táctil demónio?”
Cada um com o seu contrário
Se Freud afirmava que todo o ser humano nasce bissexual, a mitologia grega, latina, indiana, as histórias populares arcaicas, as festas pré-cristãs como os rituais das Bacantes, o Carnaval, etc, não deixam de nos dar conta que a questão é ainda mais complexa que isso. Ou, como o expôs Camões, o problema é “cada um com o seu contrário num sujeito”. Ou seja, cada um de nós não é uma identidade estanque, imutável, mas somos um vórtice de contrários a viver neste corpo único que temos, quer seja um corpo masculino ou feminino. E ao contrário de muita literatura sobre as questões sexuais, nomeadamente a homossexualidade ou a bissexualidade, no Físico Prodigioso a ambiguidade sexual é vivida não com nostalgia de uma perfeição perdida, mas como prazer. A fragmentação da identidade não é aqui geradora de nostalgia ou de derrocada da psique, mas como gozo e como caminho para uma identidade mais total.
A obra foi reeditada em 2011 pela Guimarães/Babel que detém os direitos do autor. E faz parte do PML para o ensino secundário.
Nesta diablerie, nesta narrativa de bruxaria, de pacto com o diabo, Sena recorre à forma típica da literatura medieval que era o romance de cavalaria (um cavaleiro, uma donzela, um impedimento amoroso, luta, desenlace), mas, num gesto de grande ousadia formal, junta-lhe cantigas de amigo, poemas, vozes do Consciente e do Inconsciente correndo em paralelo na página, descontinuidades espacio-temporais, modificação os símbolos associados ao feminino e ao masculino, ao bem e ao mal, a deus e ao diabo. Atribui às personagens características incomuns para a época, como a insaciabilidade sexual e o poder feminino, a beleza masculina como geradora de conflito (e não o contrário), o demónio que é invisível ( não Deus) e representa simultaneamente o Bem e o Mal… Desde logo, o uso no título da palavra “físico” que tanto era o nome que se dava aos médicos e curandeiros na idade média, como para designar o corpo.
O Físico Prodigioso tem como fontes duas histórias populares do século XIV.
Para dar a ver um mundo às avessas, mas também uma liberdade radical, e uma sátira ao poder da igreja, Sena usa um vocabulário cheio de palavras desusadas, outras que logo associamos aos textos da idade média. A sua linguagem visa, ela mesma, ser erotizante. Não basta ao autor a narrativa, ele procura também erotizar as palavras e as frases entretecendo-as como corpos em fusão apaixonada. Desde a descrição da paisagem à descrição dos corpos, tudo procura traduzir uma ligação sensorial e amorosa e é ela que diz, implicitamente, o que o autor não pode ou não quis dizer de forma mais explicita. Mas aí reside também o grande valor literário da obra: o seu carácter experimental, híbrido: “Pouco do que alguma vez escrevi é tão autobiográfico como esta a mais fantástica das minhas criações”, escreve Sena no texto introdutório deste livro.
Transexualidade ou o eterno retorno
Sem querer fazer revelações, até porque este conto ou novela tem um final demasiado complexo para ser transformado numa série da Netflix e é, em certa medida, irrepresentável, O Físico Prodigioso tem uma carga metafísica que se torna ainda mais densa no seu final filosófico, uma alegoria sobre a incompletude do ser humano só resolvida pela Natureza nos seus ciclos de renascimento e morte.
O físico, cavaleiro dono de bela figura e de longos cabelos loiros, tem, desde que se conhece, o diabo apaixonado por ele, fazendo-lhe a corte ou tentando possuir-lhe o corpo (e não a alma, como é prerrogativa dos diabos). Neste jogo amoroso, o Diabo dá ao cavaleiro poderes sobrenaturais e um gorro vermelho que lhe permite ficar invisível. Num passeio pelo bosque, três donzelas descobrem o jovem físico nu banhando-se no rio e logo se apoderam dele para um devaneio sexual contado como canção de romança, sonho ou lenda (não esquecer que aqui o grande demónio é mesmo Jorge de Sena a querer enfeitiçar os seus leitores).
As donzelas levam o físico ao castelo de D. Urraca, senhora moribunda daqueles domínios onde só habitam mulheres. Pedem-lhe que a salve, o que ele faz mergulhando-a numa tina onde verteu o seu próprio sangue (inversão dos símbolos, o sangue regenerador, normalmente é associado ao feminino como o sangue menstrual, aqui passa a masculino). É o homem que faz o sacrifício de sangue e não a mulher, como habitualmente acontece nos mitos. Mas o regresso à vida só é realmente feito depois do enlace sexual entre o físico e D.Urraca e o omnipresente mas invisível demónio (afinal um escravo da sua paixão pelo físico).
Quando o físico parte, as donzelas em fúria despedaçam e comem-lhe o cavalo, o físico descobre que elas têm por hábito devorar sexualmente todos os homens que chegam ao castelo e cujos restos mortais jazem numa grande vala comum (aqui novamente a sexualidade feminina a ser investida de um poder muito superior à masculina e não o contrário). De novo o físico ressuscita aqueles mortos e tudo entra numa harmonia primaveril até o jovem que não envelhece nem pode ser maculado pelo tempo ou pela vida, começar a sentir falta de uma outra parte de si mesmo e se tornar finalmente amante assumido do demónio…
A segunda parte da novela ganha contornos mais tenebrosos pois o físico e D. Urraca são presos, julgados e mortos pela igreja. E só aqui aparece Deus, não como entidade do Bem mas como um mero nome que serve para ultrajar os homens. Do que foram seus corpos nascerá uma roseira de leite e sangue, depois uma multidão e por fim um novo tempo.
Jorge de Sena escreveu este conto em 1964, 10 anos antes da revolução de Abril, e este Físico Prodigioso, mais do que uma novela erótica, é o retrato de uma humanidade prometeica e faustica, disposta a tudo para superar a natureza mas sem nunca o conseguir totalmente. Em última instância, é também um texto sobre a Liberdade (não como coisa política) mas como caos, desordem, magias fundamentais ao acto de criação e ao acto de leitura.

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