Emprestou-me o meu filho Ricardo a 4ª edição de “O FÍSICO PRODIGIOSO” de Jorge
de Sena, de 1970, curioso da minha reacção perante uma obra que leu com
gosto. A minha reacção foi negativíssima, desinteressada dos motivos de uma
sensualidade a que não correspondia, em meu parecer, a beleza de forma, nem de
pensamento, além do intuito provocatório contra o regime de Salazar, que mais
se observa na segunda parte, de condenação trocista anticlerical e anti
situacionista, na movimentação e violência desordeira das multidões, a deixar
prever o presente que vivemos, no esfrangalhar de compostura, com o seu
universo ora real ora de magia, ora de erotismo e sadismo caóticos, com
cantigas de amigo acompanhando o percurso da acção, num estilo propositadamente
simplista, como manchas borrando caprichosamente a acção, em remate, acção posicionada
num medievo específico de cavalarias e bruxedos vindos dos confins dos tempos é
certo, e projectados voluntariamente e rancorosamente para o tempo futuro, por puro
ódio aos constrangimentos políticos e religiosos vividos pelo narrador, cuja
contra-capa contém a seguinte frase de J.S.: “(…) pouco do que eu alguma vez
escrevi é tão autobiográfico como esta mais fantástica das minhas criações
totalmente imaginadas”. E estou convencida de que não são só as dores ou
raivas políticas que justificam o apodo “autobiográfico”, pois, na descrição do
cavaleiro andante com poderes mágicos do seu pacto com o diabo, de dar vida e
saúde através das suas orgias vividas com as várias donzelas – sendo Oriana a
principal - ou com o diabo ou outras figuras masculinas – são os seus próprios
sonhos eróticos ou a sua beleza física que descreve, talvez sonhos da
adolescência que com realismo traduz.
Em tempos fiz um estudo sobres “As Lendas de Santos de Eça de Queirós”
– e posso dizer que senti igual fascínio ao lê-las, que o que senti na leitura
dos seus livros mais realistas ou mesmo de fantasia, como “O Mandarim”. Tive ocasião de vibrar com o estilo lapidar de Eça,
tanto como com o universo de magia das suas lendas – de S. Cristóvão, de S.
Frei Gil, de Santo Onofre, este último sujeito a
tentações e a visões, como o cavaleiro da novela de J.Sena. É por esse motivo que transcrevo dessa última lenda os
parágrafos finais que justificam a preferência pela “arte transcendental” do estilo queirosiano:
«Daí, a conclusão de Saraiva
(António José) de que a “nudez forte
da verdade”, o “mito
revolucionário” e “progressista” atribuído a Eça e às suas
ideias, com que pretendeu atacar as instituições sociais do seu tempo mas que
continuam vivas hoje, nos apareçam “principalmente
como temas de arte”, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são
pretexto para cartas”. Foi, certamente, reconhecendo o limitado do
seu propósito realista, que Eça terá enveredado pela via do fantástico e da
fantasia, da sensualidade plástica da forma, nas suas “Lendas de Santos”, que se adaptavam ao seu temperamento de artista
e de fantasista. E, todavia, reconhecendo embora o pulsar da vida nas obras dos
seus contemporâneos, Dickens, Flaubert, Zola, como não encontramos em Eça,
cremos que o mundo por ele criado se reveste de uma elegância, de um sentido
trágico da vida, na comicidade da sua ironia, na forma engenhosa do seu
conceito, que o definem como um clássico, pelo extraordinário da sua arte
imperecível”
Tanto a síntese da novela “O Físico Prodigioso”, como, e
sobretudo, o magnífico estudo de Joana
Emídio Marques, têm a suficiente clareza para que eu me dispense de o fazer, sendo, este último, uma
excelente lição para mim. Só, de facto, não vejo nela a obra prima em que os
tempos da severidade comunista a querem converter, propondo-a como obra de
leitura integral nas escolas. Nem do ponto de vista didáctico nem do ponto de
vista pedagógico a considero tal. Mas costumo falhar nos meus protestos
poeirentos.
I - Textos extraídos da Internet
1- «O Físico Prodigioso” é uma novela de Jorge de Sena, publicado pela primeira vez
em 1966 na colectânea "Novas Andanças do
Demónio" e individualmente em 1977.
Como origem desta novela de Jorge de Sena foram usados dois exemplos do
"quatrocentista «Orto do Esposo»-
Sinopse
Um jovem e bonito médico da Idade Média possuía poderes extraordinários
concedidos pelo demónio, a quem deve favores sexuais, mas que é a sua fonte de
obtenção de poderes mágicos e sexuais. Dirige-se a um castelo de uma jovem
viúva que morre de amor e que ele cura. Os seus poderes sexuais miraculosos, que ele utiliza para benefício de
muitos dos residentes do castelo, inclui os mortos, que o maravilhoso médico
ressuscita e restaura os prazeres do amor sexual.
Mas aqui termina o reinado de maravilhas do médico, pois este colide
com as forças da ordem estabelecida, representadas pelas antigas figuras
inquisicionais. O médico é perseguido, condenado por não exercer a
medicina dentro das características do tempo, com um pouco de bruxaria e de
ciências ocultas. É torturado para se obter uma confissão e deixado a morrer. O
amor triunfa no fim, mas na pessoa de outro físico que emerge para substituir o
primeiro
.».
2 - LITERATURA
“O Físico Prodigioso”: um elogio à sexualidade transgénero na cara
da PIDE. 6/1/2018
O triângulo amoroso entre o demónio, um cavaleiro e uma donzela fazem
de "O Físico Prodigioso" de Jorge de Sena, agora reeditado, um
dos mais belos manifestos do pan-erotismo da literatura portuguesa.
Jorge
de Sena [1919-1978] exilou-se nos ano 50 no Brasil e depois nos EUA.
Wikimedia
Commons
Autor:
Ou não sabemos ou esquecemos: essa grande história de amor bissexual
e pan-erótica da literatura portuguesa, escrita em 1964 e publicada em 1966,
ali mesmo nas barbas da censura e dos outros vigilantes da moral pública que
não deram por nada, O Físico Prodigioso de Jorge de Sena. Uma pequena
novela, integrada no livro de contos Novas Andanças do Demónio (Portugália editores), situada numa
incerta idade média onde um físico e cavaleiro, uma donzela poderosa e um
demónio fascinado pela beleza se envolvem em amores trágicos mas redentores.
Em junho deste 2018 passam 40 anos sobre a morte do poeta, romancista,
ensaísta, tradutor, monstro absoluto da literatura portuguesa do século XX,
pensador polémico, exímio praticante de
ataques à pátria, à língua, à política e à cultura portuguesas e a muitos dos
seus pares. Dele poderíamos dizer o que Elias Canetti disse de Karl Krauss,
“quando a sua época levantou o dedo
contra si própria, ele foi esse dedo”. Falha apenas Portugal por ainda
não ter feito esse exercício de auto-crítica que dê a Sena o reconhecimento que
ele merece. O editor da Guerra &Paz, Manuel S. Fonseca, dá o mote e, fazendo justiça ao carisma provocador de
Sena, lançou em dezembro (mesmo a tempo da quadra natalícia), a novela erótica O Físico Prodigioso, numa edição de
luxo e com ilustrações de Mariana Viana.
Em 1964, ano da publicação original, nem todos souberam ler e
decifrar (porque também foi para isso que o autor trabalhou) a abundante
simbologia erótica de que é feita esta história sobre a qual, poderíamos dizer,
com o poeta Rainer Maria Rilke, todo o belo é o começo do
terrível, pois quase o mesmo disse, sobre ela, outro poeta E.M.
Melo e Castro: “É belíssima, tenebrosa”.
Jorge
de Sena era engenheiro
civil de formação e oriundo de uma família açoriana Morreu em Sta Bárbara na
Califórnia e está sepultado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa
Foi aliás, graças a Melo e Castro que o conto (Sena gostava de lhe
chamar “novela”) saiu da obscuridade a que estava remetida toda a obra do autor
e, em 1974, inclui o O Físico Prodigioso na Antologia do Conto Fantástico Português,
dando, pela primeira vez, a esta história destaque de “obra-prima”.
Considerando também esta uma obra singular, pelo seu experimentalismo formal,
mas sobretudo pela forma como aborda directamente as várias formas de
sexualidade, o poeta e ensaísta e amigo de Jorge de Sena, quando questionado
pelo Observador sobre a actualidade deste texto, afirmou:
Quanto a mim, a questão do
transgénero, atualmente na moda, que leva a que uma mulher escolha ser homem ou
um homem mulher (por achar que está no corpo errado) é ainda uma manifestação
de uma conceção binária da sexualidade: ter de escolher ser macho ou fêmea. Na
novela do Jorge Sena há algo mais complexo que a bissexualidade ou a
transgenericidade: há coexistência, por vezes simultânea, em cada um de nós, de
vários géneros, várias sexualidades”.
Jorge de Sena não
precisou de ir à Islândia buscar inspiração para esta história. Bastou-lhe,
como ele deixará escrito,”a sua biografia” e a leitura da obra
quatrocentista Orto do Esposo,
onde estão reunidos vários contos populares portugueses. E — ele não o diz, mas
nós sabemos — de vários mitos gregos e latinos, esses que sabiam tudo antes de
nós e, é claro, Camões e a sua Ilha do Amor, que é o primeiro manifesto moderno
de uma sexualidade livre, mas também, como lembra Helder Macedo, um outro poema
camoneano, Manda-me Amor que cante docemente,
que foi o tema da tese de doutoramento de Sena.
Lançar livros eróticos na época natalícia não tem grande tradição no
nosso país. Fazê-lo numa edição de luxo, com direito a capa dourada digna de um
manto cardinalício, muito menos. Manuel
Fonseca desdramatiza: “Nós,
ocidentais, temos desenvolvido um gosto extraordinário pela auto-expiação e não
nos dá jeito nenhum, para esse fim incriminatório, ver o que há de pan-erótico
no cristianismo, a começar no processo que esse extraordinário Deus trinitário
arranjou para seduzir – com voz de anjo – a Virgem Maria. Com o seu exército de
anjos, arcanjos, serafins, santos e santas em êxtase místico, o cristianismo, e
em particular o catolicismo, quase transbordam de ademanes eróticos, o que a
profusão de talha dourada, mantos de seda e cheirinho de incenso só reforçam e
excitam. Poderia lá existir este texto de Jorge de Sena, este ‘O Físico Prodigioso’ se não
tivesse bebido nesse rio de água benta em que se banha o sagrado e o profano, o
invisível Espírito Santo e o tão táctil demónio?”
Cada um com o seu contrário
Se Freud afirmava que todo o ser
humano nasce bissexual, a mitologia grega, latina, indiana, as histórias
populares arcaicas, as festas pré-cristãs como os rituais das Bacantes, o
Carnaval, etc, não deixam de nos dar conta que a questão é ainda mais complexa
que isso. Ou, como o expôs Camões, o problema é “cada um com o seu contrário
num sujeito”. Ou seja, cada um
de nós não é uma identidade estanque, imutável, mas somos um vórtice de
contrários a viver neste corpo único que temos, quer seja um corpo masculino ou
feminino. E ao contrário de muita literatura sobre as questões sexuais,
nomeadamente a homossexualidade ou a bissexualidade, no Físico Prodigioso a ambiguidade sexual é vivida não com nostalgia de uma perfeição
perdida, mas como prazer. A fragmentação da identidade não é aqui geradora
de nostalgia ou de derrocada da psique, mas como gozo e como caminho para uma
identidade mais total.
A obra foi reeditada em 2011 pela Guimarães/Babel que detém os direitos
do autor. E faz parte do PML para o
ensino secundário.
Nesta diablerie, nesta narrativa de
bruxaria, de pacto com o diabo, Sena recorre à forma típica da literatura
medieval que era o romance de cavalaria (um cavaleiro, uma donzela, um
impedimento amoroso, luta, desenlace), mas, num gesto de grande ousadia formal,
junta-lhe cantigas de amigo, poemas, vozes do Consciente e do Inconsciente
correndo em paralelo na página, descontinuidades espacio-temporais, modificação
os símbolos associados ao feminino e ao masculino, ao bem e ao mal, a deus e ao
diabo. Atribui às personagens características incomuns para a época, como a
insaciabilidade sexual e o poder feminino, a beleza masculina como geradora de
conflito (e não o contrário), o demónio que é invisível ( não Deus) e
representa simultaneamente o Bem e o Mal… Desde logo, o uso no título da
palavra “físico” que tanto era o nome que se dava aos médicos e curandeiros na
idade média, como para designar o corpo.
O Físico Prodigioso tem como fontes duas histórias populares do
século XIV.
Para dar a ver um mundo às
avessas, mas também uma liberdade radical, e uma sátira ao poder da igreja,
Sena usa um vocabulário cheio de palavras desusadas, outras que logo associamos
aos textos da idade média. A sua linguagem visa, ela mesma, ser erotizante. Não
basta ao autor a narrativa, ele procura também erotizar as palavras e as frases
entretecendo-as como corpos em fusão apaixonada. Desde a descrição da paisagem
à descrição dos corpos, tudo procura traduzir uma ligação sensorial e amorosa e
é ela que diz, implicitamente, o que o autor não pode ou não quis dizer de
forma mais explicita. Mas aí reside também o grande valor literário da obra: o
seu carácter experimental, híbrido: “Pouco do que alguma vez escrevi é tão
autobiográfico como esta a mais fantástica das minhas criações”, escreve Sena
no texto introdutório deste livro.
Transexualidade ou o eterno retorno
Sem querer fazer revelações, até porque este conto ou novela tem um
final demasiado complexo para ser transformado numa série da Netflix e é, em
certa medida, irrepresentável, O Físico Prodigioso tem
uma carga metafísica que se torna ainda mais densa no seu final filosófico, uma
alegoria sobre a incompletude do ser humano só resolvida pela Natureza nos seus
ciclos de renascimento e morte.
O físico, cavaleiro dono de bela figura e de longos cabelos loiros,
tem, desde que se conhece, o diabo apaixonado por ele, fazendo-lhe a corte ou
tentando possuir-lhe o corpo (e não
a alma, como é prerrogativa dos diabos). Neste jogo amoroso, o Diabo dá
ao cavaleiro poderes sobrenaturais e um gorro vermelho que lhe permite ficar
invisível. Num passeio pelo bosque, três donzelas descobrem o jovem físico nu
banhando-se no rio e logo se apoderam dele para um devaneio sexual contado como
canção de romança, sonho ou lenda (não
esquecer que aqui o grande demónio é mesmo Jorge de Sena a querer enfeitiçar os
seus leitores).
As donzelas levam o físico ao castelo de D. Urraca, senhora
moribunda daqueles domínios onde só habitam mulheres. Pedem-lhe que a salve, o
que ele faz mergulhando-a numa tina onde verteu o seu próprio sangue (inversão
dos símbolos, o sangue regenerador, normalmente é associado ao feminino como o
sangue menstrual, aqui passa a masculino). É o homem que faz o sacrifício de
sangue e não a mulher, como habitualmente acontece nos mitos. Mas o regresso à
vida só é realmente feito depois do enlace sexual entre o físico e D.Urraca e o
omnipresente mas invisível demónio (afinal um escravo da sua paixão pelo
físico).
Quando o físico parte, as
donzelas em fúria despedaçam e comem-lhe o cavalo, o físico descobre que elas
têm por hábito devorar sexualmente todos os homens que chegam ao castelo e
cujos restos mortais jazem numa grande vala comum (aqui novamente a sexualidade
feminina a ser investida de um poder muito superior à masculina e não o
contrário). De novo o físico ressuscita aqueles mortos e tudo entra numa
harmonia primaveril até o jovem que não envelhece nem pode ser maculado pelo
tempo ou pela vida, começar a sentir falta de uma outra parte de si mesmo e se
tornar finalmente amante assumido do demónio…
A segunda parte da novela ganha
contornos mais tenebrosos pois o físico e D. Urraca são presos, julgados e
mortos pela igreja. E só aqui aparece Deus, não como entidade do Bem mas como
um mero nome que serve para ultrajar os homens. Do que foram seus corpos
nascerá uma roseira de leite e sangue, depois uma multidão e por fim um novo
tempo.
Jorge de Sena escreveu este conto em 1964, 10 anos antes da revolução
de Abril, e este Físico Prodigioso, mais do
que uma novela erótica, é o retrato de uma humanidade prometeica e faustica,
disposta a tudo para superar a natureza mas sem nunca o conseguir totalmente.
Em última instância, é também um texto sobre a Liberdade (não como coisa
política) mas como caos, desordem, magias fundamentais ao acto de criação e ao
acto de leitura.
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