sábado, 1 de dezembro de 2018

Uma Crónica valiosa e outros textos

Tenho na minha frente a Revista E do Expresso de 17/11/18 que me preencheu parte do dia de ontem num estendal de leituras de grande aprazimento, a começar, é certo, pela PLUMA CAPRICHOSA de Clara Ferreira Alves, «A Europa resiste», modelo de sabedoria e arte de escrita, que não resisto a reter aqui, pela relevância do flash-back histórico dos seus registos vividos, ou reflectidos, a partir da referência à explosão de alegria emotiva aquando da queda do Muro de Berlim (Novembro de 1989), com o violoncelista russo exilado nos EUA por perseguição política soviética – Rostropovitch - tocando violoncelo:
«… A queda do muro de Berlim representou um dos momentos sinfónicos da Europa, quando as cicatrizes das duas guerras pareciam sarar de vez, deixando um risco na superfície do continente unido pela união das duas Alemanhas e o colapso da União Soviética»; «Putin era então um funcionário dos serviços secretos em Dresden e considerou o assalto ao quartel general da Stasi, a suprema humilhação da Mãe Rússia. Moscovo ficou em silêncio e ele meteu-se no Trabant e desandou, farejando a derrota. Putin ainda não existia. Merkel ainda não existia. E Trump, símbolo do egotismo e ganância de Nova Iorque nos anos 80 dava entrevistas» de já então insensatos e narcisísticos dizeres megalómanos. «Os actuais donos das democracias iliberais da Europa do Leste, herdeiros das autocracias que os precederam, massacrados pela História dupla e triplamente ainda não existiam. Os políticos amados eram Mandela e o checo Vaclav Havel, um escritor dissidente que se tornou Presidente da Checoslováquia. O humanismo era o sentimento dominante na Europa e a vitória da democracia e do capitalismo liberal conduziram a pena de Francis Fukuyama para o “Fim da História”, título do qual se arrependeu mil vezes. A História continuou, ou como marcha encenada do Kitsch supremo, como a viu Milan Kundera em premonição, ou como relação de causa efeito.».

 Os anos 80 e a epidemia da Sida, a «planetária angariação de fundos para o tratamento e descoberta da vacina», o «Live Aid e o “We are the World” para ajudar África. Era este o ar do tempo», «o tal humanismo como gesto natural».

E a narrativa continua, como lição a recordar: «O optimismo do final dos anos 80, que culminou com a queda do Muro, fez da década de 90 uma década prodigiosa que começou com a libertação de Mandela e o fim do apartheid. A primeira Guerra do Golfo não enevoou o optimismo, e os exércitos americanos deixaram cem mil corpos iraquianos no deserto julgando ter neutralizado Saddam, sitiado em Bagdade. O conflito israelo-palestiniano caminhou para os acordos de paz de Oslo. Em África, o genocídio do Ruanda, em 1994, também não conseguiu destruir a convicção de que a humanidade caminhava para um amanhã de prosperidade e liberdade.»
«…No dia 11 de Setembro de 2001, o sonho liberal estilhaçou-se. E a América reagiu como um grande animal ferido. Em 2007 a crise financeira fez o resto. E, pouco a pouco, começámos a perceber que o admirável mundo novo não era assim tão admirável. de cidadãos passámos a consumidores, a nova ordem mundial inverteu-se e perverteu-se com o gigantismo e o apetite aquisitivo da China, a América das hipotecas deu cabo dos bancos da Europa e impôs uma austeridade cujas consequências são visíveis no esfarelamento da União Europeia e no Brexit. Depois do optimismo do alargamento, o pessimismo da contracção. O médio Oriente veio morrer nas nossas praias. E a revolução digital aliada à inteligência artificial é usada para controlar uma humanidade dependente e viciada.
Hoje olhamos para um planeta onde nos comportamos como o vírus que mata o hospedeiro. A democracia iliberal ganha eleições, a extrema direita alemã ameaça a Europa, o fascismo ganha em Itália, e Mr. Trump deixou de vender condomínios. Muitos jornalistas proletarizaram, trivializaram ou foram decapitados, real e metaforicamente. Os cidadãos consumidores consomem os conteúdos que eles mesmos ou o seu grupo insistentemente, neuroticamente, geram. Os políticos perderam prestígio e autoridade. As pessoas deixaram de se interessar pela verdade. E as artes entraram no remake, na repetição, na elegia ou na distopia. A biografia comezinha, a que Alexandre O’Neill chamava a vidinha, é hoje o centro da tragédia. O mundo parece cada vez menos perceptível e controlável, organicamente administrado por algoritmos opacos.
Resta a memória. Como se viu pelas cerimónias do Dia do Armistício, que o Presidente Emmanuel Macron, devoto do simbolismo, encenou junto ao Arco do Triunfo para mostrar ao mundo que a Europa resiste.”

Um texto de muita perícia e saber, impregnado da usual mordacidade da escritora, na sua visão, é certo, perversamente eufórica e unilateral, no seu entusiasmo, jamais modificado, pela mudança política do seu país, omissiva das descolonizações e das consequências delas não só sobre os seus compatriotas atraiçoados, obrigados a abandonar os seus espaços africanos, mas também sobre os africanos que invadiram ou vieram igualmente morrer nas praias europeias, e não só o Médio Oriente da sua compaixão unilateral.
Mas muitos outros artigos a Revista E apresenta, de extremo interesse, e cito os dois de Pedro Mexia“Humor e humores” sobre Marcel Proust, e Bergman aos 100 – a entrevista de Gustavo Costa a João Lourenço, figura discreta mas incisiva e determinada do actual governo angolano, “A insustentável leveza de ser… europeu” de Luís Pedro Cabral sobre o chauvinismo cultural das nações europeias, em que Portugal se afirma entre os orgulhosos da sua superioridade cultural, no nível 47, ao contrário da Espanha, modestamente no nível 20, a Grécia o mais elevado – 89 – os países do leste europeu mais convictos da sua cultura, segundo revela a infografia de Carlos Esteves, dum modo geral os países mais altamente posicionados do ponto de vista cultural e económico, mais avessos a demonstrá-lo, perspicazes na consciência do “nihil scitur” da relatividade humana.

“The Game” de José Tolentino Mendonça, artigo de muito interesse igualmente sobre “o homem novo” desta “era digital”, e, como sempre, a hilariante crónica do Comendador Marques Correia, desta vez com o título «O grandemente libertador governo de esquerda que nos foi prometido aí está, por fim!» … E tantos mais artigos, onde não faltam os de cinema, gastronomia, arte e moda, enriquecendo a Revista, traduzindo o seu habitual bom gosto e interesse cultural, que apetece guardar.


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