Tenho na minha frente a Revista E do Expresso de 17/11/18 que
me preencheu parte do dia de ontem num estendal de leituras de grande
aprazimento, a começar, é certo, pela PLUMA CAPRICHOSA de Clara Ferreira Alves, «A Europa
resiste», modelo de sabedoria e arte de escrita, que não resisto a reter
aqui, pela relevância do flash-back
histórico dos seus registos vividos, ou reflectidos, a partir da referência à
explosão de alegria emotiva aquando da queda
do Muro de Berlim (Novembro de 1989), com o violoncelista russo exilado nos
EUA por perseguição política soviética – Rostropovitch - tocando violoncelo:
«… A queda do muro de Berlim
representou um dos momentos sinfónicos da Europa, quando as cicatrizes das duas
guerras pareciam sarar de vez, deixando um risco na superfície do continente
unido pela união das duas Alemanhas e o colapso da União Soviética»; «Putin era
então um funcionário dos serviços secretos em Dresden e considerou o assalto ao
quartel general da Stasi, a suprema humilhação da Mãe Rússia. Moscovo ficou em
silêncio e ele meteu-se no Trabant e desandou, farejando a derrota. Putin ainda
não existia. Merkel ainda não existia. E Trump, símbolo do egotismo e ganância
de Nova Iorque nos anos 80 dava entrevistas» de já então insensatos e
narcisísticos dizeres megalómanos. «Os actuais donos das democracias iliberais
da Europa do Leste, herdeiros das autocracias que os precederam, massacrados
pela História dupla e triplamente ainda não existiam. Os políticos amados eram
Mandela e o checo Vaclav Havel, um escritor dissidente que se tornou Presidente
da Checoslováquia. O humanismo era o sentimento dominante na Europa e a vitória
da democracia e do capitalismo liberal conduziram a pena de Francis Fukuyama
para o “Fim da História”, título do qual se arrependeu mil vezes. A História
continuou, ou como marcha encenada do Kitsch supremo, como a viu Milan Kundera
em premonição, ou como relação de causa efeito.».
Os anos 80 e a epidemia da Sida, a «planetária
angariação
de fundos para o tratamento e descoberta da vacina», o «Live
Aid e o “We are the World” para ajudar África. Era este o ar do tempo», «o tal
humanismo como gesto natural».
E a narrativa continua, como
lição a recordar: «O optimismo do final dos anos 80, que culminou com a queda do Muro,
fez da década de 90 uma década prodigiosa que começou com a libertação de
Mandela e o fim do apartheid. A primeira Guerra do Golfo não enevoou o
optimismo, e os exércitos americanos deixaram cem mil corpos iraquianos no
deserto julgando ter neutralizado Saddam, sitiado em Bagdade. O conflito
israelo-palestiniano caminhou para os acordos de paz de Oslo. Em África, o
genocídio do Ruanda, em 1994, também não conseguiu destruir a convicção de que
a humanidade caminhava para um amanhã de prosperidade e liberdade.»
«…No dia 11 de Setembro de 2001,
o sonho liberal estilhaçou-se. E a América reagiu como um grande animal ferido.
Em 2007 a crise financeira fez o resto. E, pouco a pouco, começámos a perceber
que o admirável mundo novo não era assim tão admirável. de cidadãos passámos a
consumidores, a nova ordem mundial inverteu-se e perverteu-se com o gigantismo
e o apetite aquisitivo da China, a América das hipotecas deu cabo dos bancos da
Europa e impôs uma austeridade cujas consequências são visíveis no
esfarelamento da União Europeia e no Brexit. Depois do optimismo do alargamento,
o pessimismo da contracção. O médio Oriente veio morrer nas nossas praias. E a
revolução digital aliada à inteligência artificial é usada para controlar uma
humanidade dependente e viciada.
Hoje olhamos para um planeta onde
nos comportamos como o vírus que mata o hospedeiro. A democracia iliberal ganha
eleições, a extrema direita alemã ameaça a Europa, o fascismo ganha em Itália,
e Mr. Trump deixou de vender condomínios. Muitos jornalistas proletarizaram,
trivializaram ou foram decapitados, real e metaforicamente. Os cidadãos
consumidores consomem os conteúdos que eles mesmos ou o seu grupo
insistentemente, neuroticamente, geram. Os políticos perderam prestígio e autoridade.
As pessoas deixaram de se interessar pela verdade. E as artes entraram no
remake, na repetição, na elegia ou na distopia. A biografia comezinha, a que
Alexandre O’Neill chamava a vidinha, é hoje o centro da tragédia. O mundo
parece cada vez menos perceptível e controlável, organicamente administrado por
algoritmos opacos.
Resta a memória. Como se viu
pelas cerimónias do Dia do Armistício, que o Presidente Emmanuel Macron, devoto
do simbolismo, encenou junto ao Arco do Triunfo para mostrar ao mundo que a
Europa resiste.”
Um texto de muita perícia e
saber, impregnado da usual mordacidade da escritora, na sua visão, é certo,
perversamente eufórica e unilateral, no seu entusiasmo, jamais modificado, pela
mudança política do seu país, omissiva das descolonizações e das consequências delas
não só sobre os seus compatriotas atraiçoados, obrigados a abandonar os seus
espaços africanos, mas também sobre os africanos que invadiram ou vieram igualmente
morrer nas praias europeias, e não só o Médio Oriente da sua compaixão unilateral.
Mas muitos outros artigos a Revista E apresenta,
de extremo interesse, e cito os dois de Pedro
Mexia – “Humor e humores” sobre Marcel
Proust, e Bergman aos 100 – a entrevista de Gustavo Costa a João Lourenço, figura discreta mas incisiva
e determinada do actual governo angolano, “A insustentável leveza de ser… europeu”
de Luís Pedro Cabral sobre o
chauvinismo cultural das nações europeias, em que Portugal se afirma entre os
orgulhosos da sua superioridade cultural, no nível 47, ao contrário da Espanha,
modestamente no nível 20, a Grécia o mais elevado – 89 – os países do leste
europeu mais convictos da sua cultura, segundo revela a infografia de Carlos Esteves, dum modo geral os países
mais altamente posicionados do ponto de vista cultural e económico, mais
avessos a demonstrá-lo, perspicazes na consciência do “nihil scitur” da
relatividade humana.
“The
Game” de José Tolentino Mendonça, artigo
de muito interesse igualmente sobre “o
homem novo” desta “era digital”, e, como sempre, a hilariante crónica do Comendador Marques Correia, desta vez com
o título «O grandemente libertador
governo de esquerda que nos foi prometido aí está, por fim!» … E tantos
mais artigos, onde não faltam os de cinema, gastronomia, arte e moda,
enriquecendo a Revista, traduzindo o seu habitual bom gosto e interesse
cultural, que apetece guardar.
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