segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Em vésperas de 1919



Na revista E de 8/12 vem uma análise bem expressiva, feita por Luciana Leiderfarb, de George Orwell e o seu «1984» – “O LIVRO DE UM FIM”, cuja epígrafe transcrevo, na decepção de não poder guardar o texto todo:
«Em 1948, na ilha escocesa de Jura, George Orwell pôs o ponto final na obra que lhe ocupou os últimos sopros de vida. E «1984» nascia para marcar o mundo para sempre. Poucas obras foram tão faladas, comentadas e criticadas, recriadas, temidas e admiradas como esta. Porque poucas conseguiram dissecar o totalitarismo de um modo tão assustador e eficaz.»
Um livro que enregela os ossos, na hipótese macabra de criação de sociedades como a descrita, de controle absoluto e absurdo dos seres humanos, até mesmo nas suas relações de amor. É a desintegração da espécie, pelo menos a não manipulável, que sabe reflectir e desejaria seguir parâmetros de liberdade. Já “O Processo” de Kafka fora um livro bem sinistro que incomodava, nesses moldes de manipulação totalitária, que apanhava os homens nas suas malhas infernais, de um poder ilimitado e criminoso.
Vemos esse mundo na distância da História e na distância geográfica, hoje em países do oriente, governados por uma geometria de rigor - bonito de se ver e assustador de se viver. Não assim por cá, no nosso caos desordeiro, de pobreza espiritual até perceptível nos comentários indecorosos, que o artigo de AG motivou, que bem confirmam o pessimismo crítico deste, a respeito do nosso país. Vilezas absolutamente latrinárias de inomináveis e desprezíveis diálogos obscenos, em ficção comentarista, que bem denunciam os tais atributos de menoridade mental de tantos portugueses, Dâmasos Salcedes da sabujice bajuladora, caso daquele por quem AG foi despedido da revista Sábado, onde trabalhava.
O certo é que a estes não sucede mal algum, somos democratas, cristãos ou menos, nenhuma mesa censória ou big brother fiscalizador nos impede de conspurcarmos o espaço de uma escrita virtual em que somos reis, e sem vergonha. No caso de Winston Smith, o protagonista de 1984, ele será filado pelo partido, em que, aliás, trabalha, mas que odeia, infeliz para sempre. Somos, pelo contrário, um povo feliz, livre como as gaivotas em busca de alimento, ainda que seja em lixeiras.

Portugal é uma notícia falsa /premium
OBSERVADOR, 29/12/2018
Se, conforme proclama o Indicador Supremo da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no Natal, não é virtude de Costa, mas defeito dos portugueses. E todos sabem que não nos restam muitos.
Foi a 1 de Abril de 2017, salvo o erro, que recebi o telefonema do sujeito. Eu estava no aeroporto de Orlando, a ver uma pequena tempestade cancelar sucessivos voos para Nova Iorque, e conhecia o sujeito de nome. Dias antes, o sujeito chegara a director, sob ordens do director de facto, da revista para a qual eu escrevia há 13 anos. O telefonema começou com cumprimentos efusivos e terminou, um minuto depois, com o meu afastamento da tal revista. Por isto e por aquilo, não fiquei espantado, ou demasiado aborrecido. Além de ser escusado, não me ocorreu queixar-me, ou questionar o direito de empregadores, sejam proprietários ou capatazes, despacharem empregados, sejam avençados ou “fixos”. Apenas me ocorreu responder ao funcionário da Delta Airlines que entretanto me chamara e, finalmente, apanhar um avião. Houve nuvens negras durante toda a viagem, mas pairavam lá em baixo. Não voltei a pensar no sujeito, e só ocasionalmente voltei a pensar nas consequências do meu breve contacto com ele. A vida, ou lá o que é, continua.
E continuou até 27 de Dezembro de 2018, quando pela primeira vez o Facebook me mostrou a ligação para um artigo do sujeito, publicado nesse dia no site da referida revista. Segui a ligação. Li o artigo. Cito pedaços: “António Costa vai entrar em 2019 com condições políticas invejáveis. Pode ser um ano de sonho. Termina a legislatura com uma popularidade imbatível, pode ganhar as eleições com maioria absoluta ou, no cenário menos bom, escolher o parceiro que quiser para uma nova geringonça.”;A economia permanece numa trajectória de recuperação e os portugueses, como se tem visto nesta quadra natalícia, andam tão felizes nas compras que não nutrem qualquer simpatia pelas profissões que protestam por via da greve”; “(…) a já lendária lucidez de António Costa (…)”. O artigo, cuja parte disponível citei quase na íntegra, não terminava aqui: o resto era reservado a assinantes, coisa que não sou.
Sou, porém, um maluquinho por contemplar as figuras a que alguns se prestam para ganhar o pão de cada dia. Pelo que decidi procurar artigos anteriores do sujeito, que jamais lera. Valeu a pena, e vale a pena insistir nas citações: “António Costa vai acelerar para o seu grande objectivo que é ganhar com maioria absoluta. Por isso, fez uma operação de remodelação e gestão política quase perfeita.”; “Costa afinou a máquina e ela promete ser diabólica na corrida até à meta. Remodelou a tempo para ganhar a sério.”; “(…) o pragmatismo e instinto político de António Costa (…)”; “Os bons resultados da geringonça são de António Costa e do PS”; “A vida de António Costa está cada vez mais fácil. O primeiro-ministro é o pêndulo essencial da política de alianças governativas à esquerda e à direita (…)”; “O primeiro-ministro sabe que, acidentes de percurso à parte, (…) o vento sopra a seu favor. Os portugueses já acabaram 2017 com mais dinheiro no bolso – que bem se viu nas compras de Natal – e vão continuar esse efeito em 2018.”; “Costa cometeu uns erros, disse uns disparates!? É certo que não foi um exemplo de sensibilidade política e social, em certos momentos. Mas é o timoneiro, tem uma enorme popularidade e é reconhecido como o homem certo no lugar certo. Enquanto as contas andarem bem, ninguém o derruba do poleiro. (…) Nas contas, não há político mais realista do que ele…”. Etc. Etc. Etc.
Não identifico o sujeito porque não é preciso e porque não quero personalizar um “estilo” que, na pobreza da linguagem e na curvatura das vértebras, é afinal colectivo e praticamente o padrão-ouro dos comentadores pátrios. O facto de dormirem sossegados é um rombo na indústria dos ansiolíticos. A fim de simular isenção, salpicam pelos comentários críticas a ministros fugazes, lamentam determinadas decisões governamentais ou a falta delas, desancam no “eng.” Sócrates sempre que as directivas mandam, brincam com o ocasional (e raríssimo e humano e perdoável) “deslize” do primeiro-ministro para legitimar (eles, coitados, dizem “credibilizar”) o resultado pretendido: a descarada propaganda do dr. Costa e dos poderes que o dr. Costa representa. É fascinante a jovialidade com que se eleva a um estatuto próximo do génio político alguém que, sob qualquer perspectiva, não passa de uma irrelevância manhosa. Removido o verniz que os seus bajuladores inventaram, quem é o dr. Costa? No máximo, um veterano da pequena intriga partidária, um especialista em tropeçar na verdade e na gramática, um videirinho descarado, um rústico sem noção, o chefe oportuno de um bando repulsivo à vista e à decência. Ou, na ponderada definição dos devotos, “o timoneiro”.
Diga-se que o estado da nação é exactamente o que se esperaria após três anos nas mãos de um timoneiro assim, e o contraponto (tosse prolongada) de uma oposição assado. A bancarrota, já uma tradição popular, volta a espreitar. Estradas, hospitais, justiça, instituições, fronteiras, soberanias desmantelam-se a céu aberto. A forma do debate público raia a demência, e o conteúdo fintou a demência há tempos. As clientelas empanturram-se. As trapaças sucedem-se. O fisco sufoca tudo. Protestos de duas dúzias são ameaçados por jagunços e vigiados por batalhões. Fanáticos e burlões sobem a “personalidades”. O ranço veste-se de progresso. Os vestígios da civilidade fugiram apavorados. E este retrato de uma agonia certa é retocado pelos “media” de serviço de modo a assemelhar-se a um caso de sucesso (juro). Numa imitação fiel da lengalenga oficial e oficiosa, também nos “media” a mentira deixou de ser um recurso para se tornar o processo. Uns e outros presumem a profunda idiotia dos cidadãos. E a maioria dos cidadãos, alheia ao colapso do país e da Europa que segura o país, tende a dar-lhes razão.
Se, conforme proclama o Indicador Supremo da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no Natal, não é virtude de Costa, mas defeito dos portugueses. E um suspiro: todos sabem que não nos restam muitos, embora ninguém queira saber. Enquanto lá fora as “fake news” são uma praga, aqui são um bálsamo. Tenho saudades de aeroportos.

Alguns entre os 383  COMENTÁRIOS
Passos, O senhor 24% > Antonio Fonseca: Com excepção da Irlanda - cujo PIB artificialmente empolado por razões que seria fastidioso abordar aqui, faz baixar a carga fiscal - os países europeus com os quais nos devemos pretender comparar, têm taxas de carga fiscal muito superiores ou superiores à nossa. Exemplos: Luxemburgo, França, Dinamarca, Suécia, Finlândia ou Bélgica. 
Liberal Impenitente > Passos, O senhor 24%: Não nos devemos pretender comparar com países que produzem o dobro ou o triplo por habitante daquilo que produz um português. É esta soberba do guterrismo que é imperdoável: em vez de "vamos brincar aos pobrezinhos", é "vamos fazer de conta que somos ricos".
António Monteiro: Caro Alberto Gonçalves, Gente, como esse senhor de quem transcreve partes de artigos, sem saber se no meu tempo de quarta classe, passariam na prova de redacção, conheci às dezenas ao longo dos meus quarenta anos de trabalho. Falta-lhes a coluna vertebral que nos mantém de pé e de cabeça levantada, transformando-se assim em autênticas marionetes que dançam ao sabor dos seus interesses particulares, curvando-se a qualquer ser que pense poder ser-lhe útil. Ficam normalmente com o olhar toldado para verem o que não existe e não ver com clareza as verdades que se deparam à sua frente. Tornam-se malabaristas de circo, já que daqui a algum tempo vêm dizer exactamente o contrário se lhe for de interesse. Os Radiohead têm uma canção para esse tipo de gente “Creep” (verme) Aprendi na vida que os devemos olhar como se fossem transparentes, por mais opacos que sejam.
Carlos Monteiro: Num país onde a informação é por demais subserviente perante o poder, o Observador (como já afirmei noutro comentário) é uma pedrada no charco. Este artigo de A. Gonçalves é elucidativo da forma como alguns sem pudor chegam a parecer mais papistas que o Papa. Foi noticiado que Sócrates pagava a «blogs» para o elogiar, não sabemos o que se passa agora, mas uma coisa é certa, seja por dinheiro ou por amor, a bajulação chega a ser  ridícula. A anestesia do povo, pode ao acordar, ser muito dolorosa.
José Ramos: Excelente retrato de alguns filhos da pátria - infelizmente muitos - representados por uma personagem que se arrasta, pelo menos desde o séc. XIX, e que vai deixando a sua espessa baba gastropódica e bajulatória transformar o país num sítio particularmente viscoso. A personagem, a lesma em questão, que ao contrário do que se acha está longe de ser "chic a valer", é a queirosiana figura de Dâmaso Salcede, um peralvilho gorducho, estúpido e covarde que vai deixando escorrer muco e ridículo através de Os Maias. Parece que, um século e tal depois, alterou o nome de família (que ele, por covardia, declarava como "bêbada") para Salsábado...
José Carlos Lourenço: Alberto Gonçalves desenha o retrato fiel, rigoroso e destemido deste pindérico cantinho (em termos morais e materiais) liderado pelo "chefe oportuno de um bando repulsivo à vista e à decência".  A manhosice, chico-espertice, inveja ressentida, ignorância funcional, são características idiossincráticas tugas incrementadas e potenciadas por um videirinho manhoso vendedor de banha da cobra, que antes de preparar o assalto ao poder foi um reconhecido e inquestionável devoto e admirador do maior "suposto" corrupto e aldrabão que liderou o país no caminho da última bancarrota.  
As picadas e mordedelas dos apaniguados geringonceiros são o atestado da validade e oportunidade desta crónica. 
Miguel Fernandes: Retrato demolidor da situação em que vive Portugal e sobre o pântano nauseabundo em que tudo isto se tornou. Os caciques suceder-se-ão para criar o "ruído" necessário para bajular o timoneiro. Vivemos tempos absurdos. O meu obrigado ao autor.

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