sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Gratidão imperecível


Por Salazar, que amou a sua pátria, até cair da cadeira – e por todos aqueles que amaram essa mesma pátria, com igual zelo, que se aprendia dantes, com as letras. Uma serena análise de Rui Ramos, naturalmente despida da paixão dos velhos, dos que não deixam de manter a sua visão crítica a respeito do mesmo tema, que o OBSERVADOR também nos dá a conhecer, como é o caso de Jaime Nogueira Pinto, desde sempre sem pejo de a demonstrar, na sua obra literária, resultante de uma experiência de vida que a muita leitura acompanhou, fixada nos velhos princípios pátrios, necessários para sentir o absurdo de todas essas teorias de um espalhafato hipócrita e interesseiro – sobretudo dos grandes países seus defensores, fingindo sensibilidade e escondendo a garra ávida. Salazar era dos que soube sempre isso. 

25 de Abril: pela democracia ou pela paz?

RUI RAMOS,

OBSERVADOR, 9/2/23

A revolução de 25 de Abril de 1974 pôs termo a uma velha ditadura, precisamente quando começava a chamada “grande inflação” dos anos 1970, depois da crise do petróleo de 1973. Mas as principais motivações do golpe não tiveram que ver com a natureza ditatorial do governo de Portugal ou com a subida dos preços do petróleo, mas com os problemas decorrentes da natureza do estado português enquanto agregação de territórios em vários continentes.

Desde a década de 1950 que tanto os EUA como a União Soviética contestavam os impérios adquiridos em África e na Ásia pelos estados da Europa ocidental. Ao contrário de outros impérios coloniais, como a própria União Soviética ou a China comunista, os impérios ocidentais eram facilmente reconhecíveis por serem territorialmente descontínuos: eram, em geral, ultramarinos. O “ultramar português” estava nesse caso.

A 15 de Dezembro de 1960, a assembleia geral das Nações Unidas aprovou, por 68 votos a favor, 6 contra e 17 abstenções (entre elas a dos EUA), a resolução 1542 que definia como “territórios não-autónomos” todos os territórios ultramarinos portugueses. O governo português, que entrara na ONU em 1955, protestou que tinha sido violada a Carta da organização, a qual estipulava que cabia a cada Estado membro declarar quais dos seus territórios se poderiam classificar como não-autónomos. Poucos meses depois, vários partidos independentistas clandestinos, com base no estrangeiro, iniciavam uma sublevação armada no norte de Angola.

Em 1974, a guerra contra os partidos separatistas armados no ultramar durava havia treze anos. Em 1973, cerca de noventa mil jovens oriundos da metrópole cumpriam serviço militar em África – o equivalente a um por cento da população metropolitana. Não admira que, em 1973, uma sondagem à opinião revelasse que, quando perguntados acerca de qual era “o objectivo político mais importante para os próximos anos”, 53% dos portugueses inquiridos tivessem respondido “que haja paz”, e apenas 3,7% “que exista democracia”. É pela guerra em África que precisa começar quem quiser perceber o golpe de 25 de Abril de 1974.

As culpas da guerra

As campanhas portuguesas em África entre 1961 e 1974 representaram o maior esforço militar alguma vez feito por um país europeu depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Cerca de oitocentos mil portugueses europeus prestaram serviço militar no ultramar. Perto de seis mil morreram lá, cerca de três mil dos quais em combate. Ao seu lado, estiveram milhares de africanos, então portugueses.

Em 1974, quase metade dos cerca de 150 mil homens do exército português em África eram recrutas locais. Sobre tudo isto, há décadas que em Portugal se repetem ideias feitas como se fossem orações. Para uns, tudo não teria passado de um capricho suicida, arbitrariamente imposto aos portugueses pelo delírio imperial de um ditador. Para outros, tratou-se da malograda defesa de um idílio tropical, contra a intromissão subversiva de potência estrangeiras. É tempo de mudar os termos do debate.

Foi a guerra o simples resultado da natureza do regime político português em 1961, ou da idiossincrasia do seu chefe? Não. Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961 senão enviar tropas para proteger as populações ameaçadas de limpeza étnica no noroeste de Angola. Quando o corpo expedicionário chegou a Angola, os seguidores do partido armado clandestino chamado União dos Povos de Angola tinham chacinado milhares de pessoas, entre as quais cerca de mil brancos, naquele que foi o maior massacre de civis europeus em África no século XX.

É fácil atribuir todas as culpas à “colonização” portuguesa. Mas não era possível, em 1961, apagar a história dos séculos anteriores. Dever-se-ia ter negociado com os discípulos de Fanon, para os demover do recurso à violência? Tem-se falado muito da suposta intransigência de Salazar, mas pouco da dos independentistas. Nunca quiseram negociar com o governo português a não ser a data da transferência do poder. Como se viu em 1974-1975, jamais lhes passou pela cabeça disputarem eleições. Ao contrário do que insinuava a propaganda salazarista, nem todos eram comunistas. Mas nenhum deles era um simples independentista. Quase sem excepções, eram revolucionários. Tinham sido educados no Ocidente ou segundo processos ocidentais, e todos eles aderiram a uma espécie de teoria da substituição, encarando os novos Estados independentes da África e da Ásia como os sucessores dos Estados europeus, agora supostamente em decadência, na missão de redimir o mundo.

As independências faziam sentido, para eles, como a oportunidade de fazer um “homem novo”. Neste quadro, a guerra não lhes repugnava. Concebiam a guerra segundo a doutrina do movimento comunista internacional, não como a procura de decisões no campo de batalha, mas como uma “guerra prolongada”, de socialização política das populações. Era através da “luta” que esperavam “forjar a nova nação”.

Além disso, o recurso à violência tinha vantagens políticas óbvias, a partir do momento em que começara a ser admitido como uma fonte de legitimidade política. Foi graças à guerra que os chefes independentistas, nunca eleitos por ninguém, obtiveram da Organização da Unidade Africana (em 1964-1965) e da Organização das Nações Unidas (em 1972) o reconhecimento do estatuto oficial de “representantes legítimos” da população. Assim, nunca teria sido fácil demovê-los da “luta armada”. A não ser que se lhes tivesse oferecido logo todo o poder, como acabaria por acontecer em 1974.

Não se tratou de um excesso acidental. Os chefes da UPA eram amigos de Frantz Fanon. Fanon, uma das coqueluches da esquerda revolucionária mundial, recomendava a violência contra os “colonos” como forma de resolver o problema do “colonialismo”: segundo disse num dos seus momentos mais líricos, “para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono”.

É fácil atribuir todas as culpas à “colonização” portuguesa. Mas não era possível, em 1961, apagar a história dos séculos anteriores. Dever-se-ia ter negociado com os discípulos de Fanon, para os demover do recurso à violência? Tem-se falado muito da suposta intransigência de Salazar, mas pouco da dos independentistas. Nunca quiseram negociar com o governo português a não ser a data da transferência do poder. Como se viu em 1974-1975, jamais lhes passou pela cabeça disputarem eleições. Ao contrário do que insinuava a propaganda salazarista, nem todos eram comunistas. Mas nenhum deles era um simples independentista. Quase sem excepções, eram revolucionários. Tinham sido educados no Ocidente ou segundo processos ocidentais, e todos eles aderiram a uma espécie de teoria da substituição, encarando os novos Estados independentes da África e da Ásia como os sucessores dos Estados europeus, agora supostamente em decadência, na missão de redimir o mundo.

As independências faziam sentido, para eles, como a oportunidade de fazer um “homem novo”. Neste quadro, a guerra não lhes repugnava. Concebiam a guerra segundo a doutrina do movimento comunista internacional, não como a procura de decisões no campo de batalha, mas como uma “guerra prolongada”, de socialização política das populações. Era através da “luta” que esperavam “forjar a nova nação”.

Além disso, o recurso à violência tinha vantagens políticas óbvias, a partir do momento em que começara a ser admitido como uma fonte de legitimidade política. Foi graças à guerra que os chefes independentistas, nunca eleitos por ninguém, obtiveram da Organização da Unidade Africana (em 1964-1965) e da Organização das Nações Unidas (em 1972) o reconhecimento do estatuto oficial de “representantes legítimos” da população. Assim, nunca teria sido fácil demovê-los da “luta armada”. A não ser que se lhes tivesse oferecido logo todo o poder, como acabaria por acontecer em 1974.

Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].

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