Por Salazar, que amou a sua pátria, até cair da cadeira – e por todos aqueles que amaram essa mesma pátria, com igual zelo, que se aprendia dantes, com as letras. Uma serena análise de Rui Ramos, naturalmente despida da paixão dos velhos, dos que não deixam de manter a sua visão crítica a respeito do mesmo tema, que o OBSERVADOR também nos dá a conhecer, como é o caso de Jaime Nogueira Pinto, desde sempre sem pejo de a demonstrar, na sua obra literária, resultante de uma experiência de vida que a muita leitura acompanhou, fixada nos velhos princípios pátrios, necessários para sentir o absurdo de todas essas teorias de um espalhafato hipócrita e interesseiro – sobretudo dos grandes países seus defensores, fingindo sensibilidade e escondendo a garra ávida. Salazar era dos que soube sempre isso.
25
de Abril: pela democracia ou pela paz? RUI RAMOS, OBSERVADOR,
9/2/23 |
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A revolução
de 25 de Abril de 1974 pôs termo a uma velha ditadura, precisamente quando
começava a chamada “grande inflação” dos anos 1970, depois da crise do
petróleo de 1973. Mas as principais motivações do golpe não tiveram que ver com a
natureza ditatorial do governo de Portugal ou com a subida dos preços do
petróleo, mas com os problemas decorrentes da natureza do estado português
enquanto agregação de territórios em vários continentes. |
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Desde a década de 1950 que tanto os EUA como a União Soviética contestavam
os impérios adquiridos em África e na Ásia pelos estados da Europa ocidental. Ao contrário de outros impérios coloniais, como a própria União Soviética
ou a China comunista, os impérios ocidentais eram facilmente reconhecíveis
por serem territorialmente descontínuos: eram, em geral, ultramarinos. O
“ultramar português” estava nesse caso. |
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A 15 de Dezembro de 1960, a assembleia geral das
Nações Unidas aprovou, por 68 votos a favor, 6 contra e 17 abstenções (entre elas a dos EUA), a resolução 1542 que definia como
“territórios não-autónomos” todos os territórios ultramarinos portugueses. O governo português, que entrara na ONU em 1955,
protestou que tinha sido violada a Carta da organização, a qual estipulava
que cabia a cada Estado membro declarar quais dos seus territórios se
poderiam classificar como não-autónomos. Poucos meses depois, vários partidos independentistas
clandestinos, com base no estrangeiro, iniciavam uma sublevação armada no
norte de Angola. |
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Em 1974, a guerra contra os partidos separatistas
armados no ultramar durava havia treze anos. Em 1973, cerca de noventa mil
jovens oriundos da metrópole cumpriam serviço militar em África – o
equivalente a um por cento da população metropolitana. Não admira que, em
1973, uma sondagem à opinião revelasse que, quando perguntados acerca de qual
era “o objectivo político mais importante para os próximos anos”, 53% dos portugueses
inquiridos tivessem respondido “que haja paz”, e apenas 3,7% “que exista
democracia”. É pela guerra em África que
precisa começar quem quiser perceber o golpe de 25 de Abril de 1974. |
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As culpas da guerra |
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As campanhas portuguesas em África entre 1961 e 1974 representaram o
maior esforço militar alguma vez feito por um país europeu depois do fim da
Segunda Guerra Mundial, em 1945. Cerca de oitocentos mil portugueses europeus
prestaram serviço militar no ultramar. Perto de seis mil morreram lá, cerca
de três mil dos quais em combate. Ao seu lado, estiveram milhares de
africanos, então portugueses. |
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Em 1974, quase metade dos cerca de 150 mil homens do exército português
em África eram recrutas locais. Sobre tudo isto, há décadas que em Portugal
se repetem ideias feitas como se fossem orações. Para uns, tudo não teria
passado de um capricho suicida, arbitrariamente imposto aos portugueses pelo
delírio imperial de um ditador. Para outros, tratou-se da malograda defesa de
um idílio tropical, contra a intromissão subversiva de potência estrangeiras.
É tempo de mudar os termos do debate. |
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Foi a guerra o simples resultado da natureza do regime político português
em 1961, ou da idiossincrasia do seu chefe? Não. Nenhum
governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961 senão enviar
tropas para proteger as populações ameaçadas de limpeza étnica no noroeste de
Angola. Quando o corpo expedicionário chegou a Angola, os seguidores do
partido armado clandestino chamado União dos Povos de Angola tinham chacinado
milhares de pessoas, entre as quais cerca de mil brancos, naquele que foi o
maior massacre de civis europeus em África no século XX. |
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É fácil atribuir todas as culpas à “colonização” portuguesa. Mas não era possível, em 1961, apagar a história dos séculos anteriores. Dever-se-ia ter negociado com os discípulos de Fanon, para os demover do recurso à violência? Tem-se falado muito da suposta intransigência de Salazar, mas pouco da dos independentistas. Nunca quiseram negociar com o governo português a não ser a data da transferência do poder. Como se viu em 1974-1975, jamais lhes passou pela cabeça disputarem eleições. Ao contrário do que insinuava a propaganda salazarista, nem todos eram comunistas. Mas nenhum deles era um simples independentista. Quase sem excepções, eram revolucionários. Tinham sido educados no Ocidente ou segundo processos ocidentais, e todos eles aderiram a uma espécie de teoria da substituição, encarando os novos Estados independentes da África e da Ásia como os sucessores dos Estados europeus, agora supostamente em decadência, na missão de redimir o mundo. |
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As independências faziam
sentido, para eles, como a oportunidade de fazer um “homem
novo”. Neste
quadro, a guerra não lhes repugnava. Concebiam a guerra segundo a doutrina do
movimento comunista internacional, não como a procura de decisões no campo de
batalha, mas como uma “guerra prolongada”, de socialização política das
populações. Era através da “luta” que esperavam “forjar a nova nação”. |
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Além disso, o recurso à violência tinha vantagens políticas
óbvias, a partir do momento em que começara a ser admitido como uma fonte de
legitimidade política. Foi graças à
guerra que os chefes independentistas, nunca eleitos por ninguém, obtiveram
da Organização da Unidade Africana (em 1964-1965) e da Organização das Nações
Unidas (em 1972) o reconhecimento do estatuto oficial de “representantes
legítimos” da população. Assim, nunca teria sido fácil demovê-los da
“luta armada”. A não ser que se lhes tivesse oferecido logo todo o poder,
como acabaria por acontecer em 1974. |
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Não se tratou de um excesso acidental. Os chefes da UPA eram amigos de
Frantz Fanon. Fanon,
uma das coqueluches da esquerda revolucionária mundial, recomendava a
violência contra os “colonos” como forma de resolver o problema do
“colonialismo”: segundo disse num dos seus momentos mais líricos, “para o
colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono”. |
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