Que devíamos respeitar, pois tem a sua história que define cada espaço com gente a ele ligada desde que nele se firmou e amando-o por isso. Pena é que nem todos assim pensem, calcando esses espaços pátrios com falsas ideologias desrespeitadoras, ou ambições pessoais aniquiladoras. Mais uma ampla página de esclarecimento orientador e chamamento à razão, por Jaime Nogueira Pinto, um pilar desta pátria, assim o quisessem reconhecer, na amplitude de um raciocínio apoiado em saber e amor pátrio, e conhecimento dos interesses universais que movem os vários mundos, nos seus confrontos e aptidões.
Democracia e Nação
Apesar da
demonização do nacionalismo, nação e democracia parecem continuar a ser
indissociáveis como pilares da modernidade política.
JAIME NOGUEIRA
PINTO,
OBSERVADOR, 25 fev. 2023, 00:1831
Na sua viagem à Europa, o presidente
Biden definiu o conflito que opõe a Rússia à Ucrânia e ao Ocidente como o
centro quente da nova clivagem ideológica que divide o mundo em democracias e
autocracias, numa espécie de reedição de The West and The Rest.
Talvez porque o nacionalismo seja
hoje um conceito particularmente demonizado, também os
contendores invocam razões ideológicas para um conflito que é,
fundamentalmente, um conflito entre nacionalismos: o nacionalismo ofensivo russo
pós-soviético, que vê na afirmação de Moscovo como um poder na
Eurásia a defesa dos interesses nacionais do país, e o nacionalismo defensivo ucraniano que, paradoxalmente, a invasão
russa de há um ano tem vindo a consolidar.
Assim, Putin quer concluir a obra da
grande guerra popular de 1945 e exterminar os “neo-nazis” que ainda pululam na
Ucrânia e, ao mesmo tempo, salvar o Ocidente da decadência; e Zelensky quer
defender a democracia contra o “nazismo” de Putin e conta para isso com “o
Ocidente”, também ele ameaçado pela autocracia russa. Este Ocidente das democracias é
capitaneado pelos Estados Unidos, que patrocinam o nacionalismo defensivo
ucraniano por razões de princípio e de legalidade internacional, por razões
ideológicas, de luta contra as autocracias, mas também, ou sobretudo, por
razões claramente enunciadas de interesse nacional e estratégico – com a ajuda
militar norte-americana à Ucrânia a funcionar, declaradamente, como um
“investimento” para “enfraquecer a Rússia” e neutralizar preventivamente “the
Russian army and navy for next decade.”
Acresce
que, se a distinção entre autocracia e democracia é, em princípio, clara e
inequívoca, estas categorias têm vindo a revelar-se
particularmente fluídas e manipuláveis.
Tanto que, no Verão passado, o presidente dos Estados Unidos não hesitava em
identificar uma ameaça interna à democracia norte-americana, uma ameaça
autocrática, ou “semi-fascista”, protagonizada por mais de 80 milhões de
eleitores, dispostos a votar no Partido Republicano de Donald Trump, numa
eleição democrática.
Lembro,
a propósito, que foi sem grandes estados de alma que a Guerra Fria foi ganha
pelas democracias anglo-saxónicas em aliança decisiva com algumas autocracias,
entre elas a chinesa e a saudita (que, ao aumentar a produção do petróleo,
arruinou, nos anos oitenta, a economia soviética). Lembro ainda que, apesar
da demonização do nacionalismo, nação não é sinónimo de autocracia. Pelo
contrário, nação e democracia são indissociáveis como pilares da modernidade
política, como sublinhou Liah Greenfeld no seu clássico Nationalism: Five
Roads to Modernity.
Globalização democrática
Em
2017, Dani Rodrik, professor
de Economia Internacional em Harvard, escrevendo sobre a contradição
entre a progressiva globalização económico-financeira e a continuidade da
existência de Estados nacionais soberanos e democráticos, afirmava que os poderes discretos e não
escrutináveis que regem um mundo sem fronteiras, tornam mais difícil o
exercício da vontade popular e da soberania nacional. De resto, já antes, num livro de 2011, The
Globalization Paradox: Democracy and the Future of World Economy, Rodrik
desenvolvera mais demoradamente o tema.
Ao
contrário de muitas profecias que, sobretudo a partir do fim da Guerra Fria,
auguravam vida curta para o Estado e para as fronteiras, os Estados
independentes continuaram e são eles que determinam ainda hoje a paz e a
guerra, como é particularmente notório na invasão russa da Ucrânia.
Dentro
da articulação geopolítica de um mundo de Estados soberanos – com mais ou menos
soberania real – houve também uma prescrição ideológica, nascida dos
conflitos do século XX e do seu resultado, de que a Democracia devia ser a
definitiva forma legítima e legal de governo. Urbi et orbi, sem limites, sem
restrições, na Ásia como na Europa, na África como na Oceânia.
O tema da globalização democrática tem uma longa história, que
começa com a intervenção norte-americana na Grande Guerra; intervenção que
determinou a vitória dos Aliados e fez dos Estados Unidos, para todos os
efeitos, os principais, senão os únicos, vencedores. Ou, pelo menos, foram os
norte-americanos os árbitros da Paz.
Foi
o presidente Woodrow Wilson o grande
campeão dessa democratização do mundo pós-guerra. Wilson era um ideólogo
e defendia a ideia do Presidente Monroe de que a América, o Novo Mundo, era
moral e politicamente superior ao velho mundo europeu. Wilson repetia que “the
World must be made safe for democracy”, fazendo disso a sua missão e a
missão da América. Wilson foi
o primeiro presidente americano a viajar para a Europa, onde esteve entre
Janeiro e Junho de 1919, para a conferência da Paz de Paris. Antes de voltar à
América, declarou que era “missão dos Estados Unidos trazer a liberdade, a
justiça e a humanidade aos povos menos civilizados do mundo”, povos esses que
deviam “adoptar princípios americanos”.
Entretanto,
na conferência de Versalhes, Wilson
vetara uma proposta do Japão no sentido do reconhecimento da igualdade racial.
Era da Virgínia, educado na Geórgia e na Carolina do Sul, e fora o primeiro
sulista, desde a Guerra Civil, a ocupar a Casa Branca. Na presidência,
opusera-se à integração racial: saneara altos funcionários negros, criticara a
“Reconstrução” e manifestara-se contra o direito de voto dos negros. No
entanto, insistia em democratizar, civilizar e humanizar a Europa e o mundo.
Parece-me
interessante e importante este prelúdio como introdução ao problema das reais
contradições entre valores; contradições que normalmente são esquecidas. Na democracia há, desde
logo, um conflito entre dois conceitos – o conceito da tradição liberal
anglo-saxónica, que vê a democracia sobretudo como a protecção constitucional e
até pré-constitucional dos direitos e garantias individuais, da liberdade de
expressão ao direito de propriedade; e o conceito rousseauniano continental da
“vontade absoluta da maioria”, em que a maioria pode pôr e dispor do poder.
Teoricamente,
nada impede que estes dois conceitos se coordenem e convirjam, mas, na realidade, há todo um historial de
diferenças. Enquanto os modelos inspirados na ideia rousseauniana da
divinização da maioria e respectiva vontade geral tendem a interpretar
extensivamente os poderes dessa maioria e a suprimir progressiva e
expeditamente as oposições (veja-se o caso hitleriano e dos regimes
comunistas na Europa Oriental),
a tradição anglo-saxónia acautela essas liberdades. Ou acautelava, porque hoje, com o wokismo
e as proibições e cancelamentos daí decorrentes, talvez também estas liberdades
está em risco.
O que aqui quero sublinhar é que a
democracia precisa da nação. Sem nação e sem identidade nacional como valores
comuns identificadores de uma comunidade, torna-se muito difícil que o
eleitorado não se fragmente por linhas de rotura.
Teoria e realidade
Temos
como exemplo as dificuldades da consolidação da democracia em
África. Num estudo de Guy Rossatanga-Regnault,
na revista Afrique Contemporaine, de 2012, intitulado “Identité et démocracie
en Afrique. Entre hypocrisie et faits têtus”, o autor concluía da análise das
lutas políticas em África que, com raras excepções, os conflitos
vinham da questão identitária, isto é, da concorrência permanente entre a identidade
nacional e outas identidades – étnicas, regionais ou religiosas.
Quase todos os Estados do mundo começaram pela identidade tribal,
clânica, social, religiosa. E nem
sequer o argumento das fronteiras artificiais da colonização e da partilha de
África é excepcional: os romanos não tiveram grandes preocupações identitárias
quando dividiram administrativamente o Império; nem nenhum dos dirigentes
imperiais ou imperialistas que lhes sucederam se preocuparam muito com o rigor
histórico-etnológico dessas divisões, a não ser quando lhes facilitavam o
domínio.
Também o modo geral de fazer países na Europa e nas Américas foi a
guerra de independência contra o dominador e, a seguir, a guerra civil. O vencedor, assegurada a vitória, pacificou. Só
depois, ao longo da História, as afinidades do lugar, da língua, das glórias e
dos sacrifícios comuns foram fazendo, pela História e pela memória, a tal
unidade nacional. Por isso também agora, na Ucrânia, é pelo sacrifício comum
que a unidade e a identidade nacional têm vindo a consolidar-se.
A democracia, quer como protecção dos direitos e garantias
individuais, quer como rousseauniana vontade absoluta da maioria, chegou
plenamente no século passado. Durante séculos, o regime foi a monarquia,
primeiro absoluta, depois liberal. E até muito tarde, quase até à primeira
guerra mundial, o sufrágio era censitário e exclusivamente masculino.
Foi
durante esses tempos que se foram formando, na Europa e nas Américas, as
nações, as identidades, as lealdades, as comunidades. Sempre
que outras identidades – por exemplo regionais – sobrevivem em democracia, há
problemas de unidade nacional, como sucede com os separatismos catalão em
Espanha, valão na Bélgica, ou do Quebec, no Canadá.
A maioria dos Estados africanos teve a sua independência no século
XX, na vaga de descolonização iniciada pelos poderes coloniais europeus, na
sequência do fim do mundo eurocêntrico, com a Guerra de 1939-45 e com a sua
substituição, como grandes poderes, pelos Estados Unidos e pela União
Soviética. Ingleses e franceses tentaram, uns
por via económica, outros por via político-militar, manter uma influência e uma
hegemonia neo-colonial. E, durante a Guerra Fria, o destino dos Estados
africanos esteve também, em parte, condicionado pelos respectivos alinhamentos
com as grandes potências (embora, a partir de Bandung, se procurasse criar uma
terceira via, não alinhada).
A Guerra Fria permitiu, em África e no resto do mundo, a
continuidade de Estados não democráticos, mas, com o seu fim, os
poderes vencedores – os Estados liberais anglo-saxões e, entre todos, os Estados Unidos – quiseram, como o
Presidente Wilson depois da Grande Guerra, voltar a impor o seu modelo
político, a democracia multipartidária.
Com maior ou menor esforço, muitos
Estados africanos fizeram pragmaticamente a adaptação, pelo menos na letra da
lei, das suas leis fundamentais. Mas se a democracia foi, na Europa e nas
Américas, um processo de longa formação, um processo de dois séculos, até que
ponto era possível ultrapassar esses condicionalismos e atingir aceleradamente
as condições nacionais e culturais necessárias à democracia?
Entender
a questão é um passo fundamental para tentar lidar com o que é um problema
vital em África e no mundo: encontrar
uma forma estável, justa e pacífica de institucionalizar a soberania nacional e
popular. Soberania que, também na Europa e nas Américas, parece agora ser, cada
vez mais, a melhor forma defender os valores do Ocidente contra as manipulações
das vanguardas esclarecidas.
A SEXTA COLUNA DEMOCRACIA SOCIEDADE GLOBALIZAÇÃO MUNDO
COMENTÁRIOS:
Maria Paula Silva: Uma boa aula! Obrigada! Antonio Oliveira:
Pérolas de um
novo avatar do "nacionalismo" agora em versão "bonzinho": o
problema "valão na Bélgica". Não dá para enumerar os pontapés dados
nos factos, mas o pontapé assinalado acima fez-me rir. Carminda Damiao:
Excelente artigo. Maria Nunes Excelente artigo. Uma grande
lição de História. João
Ramos: Obrigado Jaime,
mais uma bela e esclarecedora lição de História política do último século e
meio, era preciso que os “nossos” políticos (todos) lessem os teus textos,
seria bom para eles e para nós também, pois é sobretudo pela via da ignorância
e do irrealismo que tanta asneira se tem praticado por cá e no mundo… Jorge Carvalho: Mais uma vez obrigado JNP. Ler
estes excelentes artigos de informação histórica de verdade, lucidez e coragem
é um privilégio na desinformação e imundice excrementicia que graça no nosso
Portugal. Carlos
Real: O nacionalismo é a base fundamental do pensamento
humano, mais que as ideologias. Não é por acaso que a União Soviética é impossível
de ser reconstruida. O mesmo se passou com os Balcãs. A União Europeia é um
gigante de pés de barro, porque um europeu não existe. Somos portugueses, nem
ibéricos somos. Estamos em termos de afinidade mais próximos de um catalão do
que um castelhano. Porque será? Porque a história conta. Sejam democracias ou
ditaduras, o povo une-se na língua, nos costumes, na religião, e menos na
economia e na ideologia. João Floriano: Excelente texto. As crónicas de
Jaime Nogueira Pinto são as que mais associo em História com o efeito
borboleta. Uma pequena modificação em certa parte do mundo, pode provocar um
tufão nos antípodas. Assim acontece na História. OS factos históricos não são
acontecimentos desligados e aleatórios. A História é uma cadeia complexa muito
diferente do simplismo a que os wokes a pretendem reduzir, a seu belo prazer e
à conveniência dos seus interesses. Nunca me tinha apercebido da diferente
interpretação de democracia por parte dos anglo-saxónicos e de Rousseau. No
entanto aí está a explicação para muitas coisas, sobretudo a crítica aos
Estados Unidos de imposição dos seus valores democráticos a quem não os aceita:
ou por cultura, tradição ou imaturidade. Rui Lima:
Agradeço por ter
alertado que a democracia precisa da nação , num mundo sem fronteiras não há
democracia . A partir do século XV a Ascensão da Europa leva à sua dominação sobre o
mundo em nome do progresso. Em Moscovo, Istambul, Teerão, Tóquio, Pequim e nos
outros impérios tradicionais, sobreviver significa, portanto, modernizar-se
, por outras palavras, ocidentalizar-se o transplante é um fracasso.
O melhor que se
conseguiu foi , Pahlavi no irão, Kemal na Turquia, Hirohito no Japão, por um
lado, Lênin na Rússia, Mao na China,.. chego à conclusão que a democracia é o
normal para povos ocidentais de matriz cristã não o sendo para outras culturas. João Floriano > Rui Lima: Compreendi perfeitamente o que o Rui Lima escreveu.
Reza Palavi e a sua Soraia já lá vão e agora o Irão, antiga Pérsia está a ferro
e fogo com os aiatolas. Kemal Atatürk na Turquia, o pai de um estado laico,
também só em estátua. Retiro o Japão do grupo. Apesar da adoração à família imperial
o Japão é democrático ainda que condicionado por uma forte tradição familiar. O
Rui reforça a minha afirmação que o propósito americano de levar a democracia
por todo o mundo, semelhante à fúria de evangelização da Europa católica nos
séculos XVI e XVII, falha frequentemente. Total acordo. João Alves > Rui Lima: De matriz cristã católica/protestante. Os povos russos
são de matriz cristã ortodoxa. O que não deixa deter influência no conflito
entre ambos. Rui
Martins: Uma autêntica aula. Bem haja Rui
Guilhoto Loureiro: Magnífico texto - como sempre! Ler JNP é sempre um momento de aprendizagem
e inspiração. Obrigado.
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