Homenageando também. Aplicando conhecimentos
de experiências de leituras e de contactos humanos, levando-nos para uma
América do Sul com os movimentos ricos da sua história, que mal topávamos nos
livros dos escritores conhecidos, de que só tarde tivemos conhecimento, mais
lembrados dos escritores brasileiros da nossa mocidade, como J. Amado e Erico
Veríssimo, a Isabel Allende e os Cem Anos de Solidão lidos mais tardiamente, e
com esses, os costumes e as tradições, dessas nações da conquista espanhola,
tão diferentes dos que nos habituáramos a ler, mais centrados nos clássicos forjados,
de longa data, no continente europeu. Jaime
Nogueira Pinto dá-nos,
assim, a frescura das suas evocações de uma vida naturalmente rica em vivência
e saber - e nobreza de pensamento, que sempre agradeceremos – também pelo confronto,
ainda que subentendido…
Ser um falangista liberal pode ser uma
contradição nos termos. Mas não para um homem único como Juan Velarde, que
olhava o mundo com sabedoria e abertura prezando acima de tudo a justiça e a
liberdade
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 18
fev. 2023, 00:204
É
sempre duro e estranhamente surpreendente vermos partir alguém de quem
gostamos, por mais velho que seja, por mais natural que seja a morte ou por
maior que seja a nossa fé numa vida plena, para além desta.
Juan Velarde Fuertes morreu em Fevereiro deste ano; mas no final de 2022
também tinham já morrido outros dois bons amigos: o Frank Shakespeare,
a 14 de Dezembro, e a Nélida Piñon,
a 17.
O
Frank foi embaixador dos Estados Unidos em Portugal e
na Santa Sé e estive
com ele na Heritage Foundation. Era
um velho e querido amigo, com quem passei muito tempo nos anos finais da Guerra
Fria, em Lisboa, em Roma, em Washington, em Nova Iorque. E partilhámos, ao
longo dos anos, dias e dias de conversa e de lazer no Verão americano, em
Greenwich, Connecticut, em casa da nossa amiga comum Silvia Maria Mello Franco
Nabuco, “Vivi” Nabuco,
neta de Joaquim Nabuco, brasileiro do mundo político e grande paladino
da abolição da escravatura, em 1888.
Frank teve uma vida cheia, até que, aos 97 anos, Deus o veio
buscar.
Três dias depois de Frank Shakespeare
ter partido, morreu aqui em Lisboa outra grande amiga – Nélida
Piñon, a primeira mulher presidente da Academia Brasileira
de Letras. A Nélida era uma mulher muito especial, com quem estávamos, a
Zezinha e eu, sempre que íamos ao Rio ou que ela vinha a Lisboa. Depois de a
Zezinha morrer, continuei a dar-me muito com ela e trouxe-a para o meu círculo
próximo de amizades. Mas também jantávamos muitas vezes sozinhos, no Solar dos
Presuntos ou no Gambrinus, os restaurantes de que a Nélida mais gostava. Tinha
uma sensibilidade epidérmica, uma inteligência viva e um grande sentido de
humor. Nada lhe escapava. Morreu aqui em Lisboa, num sábado, estava eu a
caminho de Pamplona. O seu livro mais conhecido é a República dos Sonhos,
uma saga familiar migratória, mas aquele de que mais gostei e gosto
chama-se Vozes do Deserto, uma recriação das Mil e Uma Noites de uma
perspectiva feminina.
Uma expedição singular
Juan
Velarde Fuertes morreu no
dia 3 de Fevereiro, em Madrid. Era Presidente da Real Academia de Ciencias
Morales y Politicas de Madrid, de que sou sócio correspondente, por seu convite.
Conheci-o
no Outono-Inverno de 1986,
numa expedição singular à América do Sul, ou, mais propriamente, ao Chile de
Pinochet. O regime estava então a estabelecer as regras do seu próprio
termo e de um processo de transição que se concluiria com a saída
de Pinochet em Março de 1990, dezassete
anos depois do golpe militar de Setembro de 1973 que derrubara o presidente
Allende. Era um dos pouquíssimos regimes
ditatoriais a fazer a passagem e Gonzalo Fernández de la Mora, autor de O Crepúsculo das Ideologias e meu amigo dos tempos de exílio
madrileno, de 1976-1978, organizou uma série conferências em Santiago do Chile
sobre “a transição de regimes autoritários para democracias.”
Foi
aí, nesse Verão Austral, nos últimos anos do regime militar chileno, que
conheci Juan Velarde Fuertes.
Poucas
semanas antes da nossa viagem para Santiago, um grupo terrorista de
extrema esquerda,
inspirado pelo Partido Comunista chileno, a Frente
Patriótica Manuel Rodriguez, atentara
contra Pinochet, quando o ditador viajava da sua casa de campo para
Santiago, com o neto de dez anos. Cinco escoltas morreram no ataque e onze
ficaram feridos, mas Pinochet, o neto e o motorista, que seguiam num
carro blindado, escaparam, com ferimentos ligeiros.
Passámos
uma semana em Santiago, e destas expedições de grupos pequenos ficam sempre
amizades mais fundas, ditadas por afinidades electivas. Juan Velarde e eu
fazíamos quase vinte anos de diferença mas como, sendo pessoas de convicções
e lealdades não éramos propriamente sectários, olhávamos com algum humor os que
o eram e divertíamo-nos com isso. Lembro-me, por exemplo, de um inglês,
antigo comunista das Brigadas Internacionais convertido à direita
tatcheriana, que queria que os serviços de Sua Majestade mandassem
cartas-bomba para os “financiadores americanos” do IRA. E Velarde,
furioso, comentava: “Este es de derechas, no como un inglés conservador, sino
como un coronel guatemalteco de la Coca.”
Nesse
mesmo encontro, num jantar na Messe da Marinha, a convite de um oficial
submarinista, quando perguntei se Pinochet se voltaria a apresentar a eleições,
ouvimos de um contra-Almirante:
“Veamos
si el Almirante Merino lo permite! Porque, sabes, Jaime, Pinochet es un
hombre muy liberal, casi un demócrata!”
Depois
desses dias no Chile, passámos a conhecer-nos e a encontrar-nos
com frequência em Madrid, onde eu o
visitava no seu despacho no Tribunal de Contas e conversávamos naqueles longos
almoços madrilenos, que acabam depois das 5 da tarde.
Juan Velarde Fuertes nasceu em 26
de Junho de 1927, em Salas, uma
povoação conhecida como “porta ocidental” das Astúrias, e a sua
expedição pela vida foi também singular.
As
primeiras memórias que tinha, dizia-me, eram da revolta dos
mineiros em Outubro de 1934 e da passagem por ali do general Lopez Ochoa,
enviado pelo governo para a controlar.
Como era da tradição anti-clerical da esquerda peninsular – bem mais pacata do lado de cá do que do lado de
lá – trinta e quatro religiosos tinham sido então assassinados. Tudo se
passara na semana sangrenta, com 58 igrejas e conventos incendiados. Com
sete anos, Juan, que era de família católica, lembrava-se das preocupações
dos mais velhos naqueles dias que seriam o sinal de abertura de um conflito que
viria a dividir e a ensanguentar a Espanha.
Na guerra civil, Juan não tinha ainda
idade para combater; mas o seu sentimento e o seu pensamento não iam nem para o
radicalismo socialista e anarquista, responsáveis pela maioria dos assassinatos
contra os católicos, nem para a reacção nacional-conservadora do franquismo.
Com o fim da guerra e a derrota do Eixo, Franco procurou desligar-se
dos elementos ideológicos e pessoais que pudessem aproximá-lo do totalitarismo
fascista. Ora o falangismo joséantoniano era o modo espanhol do fascismo.
Entretanto, a Guerra Fria e a prioridade para os Estados Unidos de alianças
anticomunistas tornavam o regime espanhol um aliado objectivo de Washington; e,
em Setembro de 1953, viriam os acordos para as bases militares americanas.
Era
um alinhamento claro, em que convergiam as várias famílias e clientelas do
Regime. Mas, ideologicamente, havia fracturas, sobretudo entre o justicialismo
joséantoniano – antimonopolista, anti-latifundiário e intervencionista – e as correntes vindas do integrismo católico, com
os intelectuais tributários da Accion Espanhola, alguns depois ligados ao Opus
Dei.
Em
1953, Juan Velarde, que era falangista e economista, liderou um grupo que tomou
conta da secção de Economia do diário Arriba e da Revista de Economia Política,
do Instituto de Estudios Políticos.
A reforma tributária iria opor a corrente mais liberal, apoiada pelos patrões,
ao sector falangista que, nas palavras de Velarde, queria actuar através dos
impostos “para resolver o problema da distribuição da renda nacional
espanhola”. O grupo por ele liderado vinha do curso de 1947, o
primeiro curso de licenciados pela Faculdade de Ciências Políticas e Económicas
da Universidade Central. Henrique Fuentes Quintana, mais tarde
ministro da Economia na transição pós-franquista, fazia parte do grupo.
A
táctica deste grupo era combater os problemas da sociedade espanhola do
pós-guerra e as suas profundas disparidades sociais numa linha justicialista e
keynesiana. Partiam do pensamento social de José António e eram influenciados
por Keynes e por Beveridge, directamente e através de Manuel Torres, um
valenciano catedrático de Teoria Económica.
“Hay
alguno entre vosotros que se haia asomado a las tierras de España e crea que no
hace falta una reforma agraria?”, perguntara José António. E Fuentes Quintana
denunciava depois as “oligarquias económico-privadas” do carvão, da
electricidade, do cimento e do aço, ligadas ao sistema bancário, à semelhança
de um outro nacionalista radical citado por Velarde, Ramiro Ledesma, revolucionário
de direita fuzilado pelos Rojos em 36.
Os
artigos do grupo, de todos eles – incluindo de Juan Velarde –
eram claramente anticapitalistas e alguns seriam interditados pela Censura,
então dirigida pelo nacional-católico Gabriel Arias Salgado.
Havia
uma velha relação entre o autoritarismo reformista e nacionalista de um
Bismarck e as preocupações sociais do “socialismo catedrático” alemão; e os
pressupostos do intervencionismo keynesiano, ainda que num quadro liberal,
democrático, competitivo, aproximavam-se do falangismo ou do corporativismo
fascista.
Falangista, católico e liberal
Temos
assim, nos anos 50, um Juan Velarde na convergência do
falangismo joséantoniano e dos dirigismos e intervencionismos democráticos de
“Terceira-via” de tipo keynesiano.
Estes intervencionismos de Terceira-via tinham, por outro lado, uma forte
componente doutrinal e histórica baseada no chamado catolicismo social,
escola vinda da reacção católica conservadora ao marxismo, com homens como
Albert de Mun, e confirmada pela Rerum Novarum, de Leão XIII. A Rerum Novarum fora
uma resposta ao socialismo cientista e materialista, mas também uma resposta
dura ao capitalismo, parecendo até alinhar na tese catastrofista dos marxistas:
o abismo crescente entre uns poucos (cada vez menos) donos de tudo, e uns
muitos (cada vez mais) sem quase nada. Isto numa altura em que se estavam a
criar na Europa as classes médias e em que a economia como ciência avançava no
campo da microeconomia.
Juan Velarde reflectiu
sobre todos estes problemas num texto de 7 de Junho de 2021: San Juan
Pablo II y los problemas de la economia; um texto que é também uma reflexão
sobre a evolução do seu pensamento ao longo de 60 anos.
Para
Velarde, São João Paulo II, em Centesimus Annus (no centenário da Rerum Novarum),
teria feito a coisa certa: uma síntese e uma convergência do pensamento da
Igreja com a ciência da economia e a experiência das coisas velhas e novas.
Nesse mesmo artigo, na revista Omnes, Velarde contava que o Papa convidara
para o Vaticano, para o aconselharem, prémios Nobel, como Kenneth Arrow (1972)
e Amartya Sen, e um núcleo de reputados professores europeus, americanos e
japoneses. O próprio João Paulo II participara animadamente nos debates
preparatórios, sublinhando que “o subdesenvolvimento vinha tanto da
precariedade dos direitos civis como dos erros económicos”.
Lembrava
então Velarde que a nova Encíclica
vinha, pela primeira vez naquele século, considerar a possibilidade de um “capitalismo
bom”; um sistema económico que
reconhecia “o papel fundamental e positivo do comércio, do mercado e da
propriedade privada” e da “criatividade humana livre no sector económico”. Para Juan, esse “bom capitalismo” podia ser aquilo
a que os economistas alemães tinham chamado “economia social de mercado”.
Assim
o Velarde falangista dos anos 50, o católico denunciador da “raposa capitalista”
dos anos 60, em choque com os ministros capitalistas liberais católicos de
Carrero Blanco, reconhecia, com João Paulo II, que nem todo o capitalismo era
mau.
Era um “falangista liberal”. Talvez fosse uma contradição nos termos, mas ele
era assim, único. Tendo conhecido bem Juan Velarde, e a sua curiosidade
e a sua admiração pela inteligência do argumento e pela liberdade do
pensamento, não me choca aceitar que alguém pudesse, partindo de princípios de
transcendência e de uma ordem sociopolítica ditada pelo Bem Comum e pela
Justiça, admirar e aceitar, sucessivamente, o romantismo justicialista de José
António e os postulados analíticos de Walras e Pareto. Sobretudo alguém
irrepetível como Velarde, um sábio bom e justo que, por detrás dos seus óculos de
lentes grossas, olhava o mundo com sabedoria e abertura; firme, mas pronto a
espantar-se e a ser surpreendido. Era também alguém que punha o valor e a
competência científica acima das questões ideológicas e que apoiou o comunista
Ramon Tamames e os socialistas Santiago Roldán e Juan Muñoz na carreira
universitária, defendendo-os do regime. Sim, era um falangista
liberal, sobretudo se por “liberal” entendermos alguém que pratica e ama a
Liberdade. Por isto e por tudo, faz cá muita falta.
A SEXTA COLUNA OBITUÁRIO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Alexandre Arriaga e Cunha: Muito interessante, obrigado Carlos Chaves: Caríssimo Jaime Nogueira Pinto,
obrigado por connosco partilhar o seu enorme e rico conhecimento
histórico/político! Tal como o seu amigo Juan Velarde, também prezo acima de
tudo a justiça e a liberdade e aprendo e surpreendo-me com os seus magníficos
textos. Liberdade e justiça, que claramente estão neste momento a serem
cerceadas no nosso país, exigindo de quem ama a democracia uma oposição feroz,
a quem premeditada e estrategicamente a mete em causa. Simplesmente Maria: Todos diferentes, todos iguais. TIM DO Ó: Fica a homenagem e a mensagem de que em política nem
tudo pode ser arrumado em gavetas estanques. Não há essa rigidez.
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