A imitar, seria talvez, o britânico, com duas Câmaras, sem a multiplicidade de partidos, como temos por cá, amantes que somos da confusão, própria de estreiteza de pensamento e da dependência económica que atravessamos, nestes cinquenta anos “democraticamente” individualistas, a fraternidade confundida com o cinismo, ressalvadas sempre as excepções, naturalmente. Por isso se formaram tantos partidos que se guerreiam entre si, todos desejosos de sobrevivência própria, indiferentes à nação e ao seu progresso, ávidos da gamela externa, mal cuidando do recheio interno. É o que me sugere o texto "triste" de António Barreto.
A morte do Parlamento
Temos assim que os dois grandes
partidos do sistema, PS e PSD, pouco se ameaçam ou contrariam reciprocamente,
antes agem em função das margens que comandam cada vez mais o Parlamento.
PÚBLICO, 4 de
Fevereiro de 2023, 6:25
A lei dita da Eutanásia não é a lei da
Eutanásia. É, isso sim, a lei da Morte Medicamente Assistida, com duas
hipóteses: uma, a do Suicídio Medicamente Assistido; outra, a da Eutanásia
praticada, a pedido do doente, pelo Médico Assistente. Quer isto dizer que a eutanásia não solicitada pelo
doente, assim como qualquer outra forma de terminar a vida de alguém, sem
pedido nem acção do doente, está excluída desta lei. Espera-se que para sempre.
A lei foi votada por partidos. Os que votaram a favor, os que se
abstiveram e os que votaram contra foram sempre partidos. Com ou sem declaração
de voto, com ou sem frases sopradas para jornalistas de conveniência à saída de
uma reunião, não se conhecem pensamentos, decisões, deliberações, argumentos ou
sentimentos individuais dos deputados. Sabe-se
o que pretendem os partidos, mas, salvo raríssimas excepções, não se sabe o que
querem os deputados. Cada um dos 230 pensa e diz o que o seu partido
pensa e diz; acredita e vota no que o seu partido acredita e vota. São muito
poucos os que entendem que os seus eleitores têm o direito de saber o que eles
pensam e votam, não apenas os seus partidos. Como é sabido, votar
livremente, de acordo com a sua consciência, pode ser, se for diferente do seu
partido, um gesto muito perigoso para a carreira.
No trânsito entre São Bento e Belém, ida e volta, com
paragem no Palácio Ratton, à Rua do Século e nos seus episódios, sérios uns,
caricatos outros, esta lei revela mais um império partidário: no Tribunal Constitucional vota-se muito
de acordo com os partidos de influência e de origem. Os jornais, solícitos e
atentos, já publicam as estatísticas dos juízes e dos seus votos de acordo com
a distribuição partidária. O que,
para um Tribunal Constitucional, é impensável e degradante. Mas é assim, infelizmente. É possível e por vezes
interessante “classificar” os magistrados constitucionais, saber, por exemplo,
os que são progressistas ou conservadores, crentes ou ateus, liberais ou
reaccionários, defensores da regionalização ou centralistas. Isso é uma coisa.
Que até pode variar e cruzar-se ou não com os partidos parlamentares. Mas não deveria estar garantido que, em
geral, votam conforme os partidos que os designaram.
Poderia pensar-se que estas
fortalezas parlamentares, feitas de tropas obedientes, compostas por deputados
que fazem o possível por não se distinguir e que abdicam da sua
individualidade, são condições de estabilidade e de certeza política.
Paradoxalmente, não é verdade. Apesar de disciplinados e anónimos, os deputados
são sistematicamente tentados pelas iniciativas marginais e pelas invenções
“societais” ou “civilizacionais” com que os activistas (nova e estranha
categoria política…) os distraem ou tentam convencer.
Regresso a São Bento, onde o
Parlamento está a ser comandado pelas suas margens. À direita,
o Chega condiciona o PSD, impõe-lhe regras e reflexos, sugere movimentos,
lidera a sua respiração e estimula os seus reflexos. O PSD, com horroroso pavor
do Chega, tenta fazer o seu serviço, com receio do extinto CDS, da ascendente
IL e sobretudo do surpreendente Chega. Este último, não precisa de pensar,
elaborar, estudar e propor, basta-lhe reagir, reclamar e denunciar. Nunca se viu um partido ganhar tanto
fazendo tão pouco. A cada berro do Chega, o PSD treme. Neste partido, toda a
direita treme. É verdade que o Chega só pensa nisso: destruir o PSD, afastar o
PSD, colher votos do PSD, perturbar deputados do PSD e provocar divisões no
PSD. Mas também é verdade que, no PSD, só se pensa nisso: como se libertar do
Chega, como evitar o Chega e como impedir o Chega de crescer.
À esquerda, as
coisas são diferentes, dado que o PS está no Governo. Mas a semelhança de situações é maior do
que parece. Na verdade, as margens das esquerdas, o PCP e o Bloco, comandam
muito do que o PS é e quer ser. Até já comandam, um pouco, algumas iniciativas
do Governo. Apavorados
com as suas minorias e descrentes nos amanhãs e nas suas gloriosas fantasias,
estes partidos, um de trabalhadores conservadores, outro de burgueses radicais,
têm um só objectivo: desmembrar o PS. Criar
a dúvida e a intranquilidade nos deputados socialistas, seduzi-los com rupturas
radicais e revoluções de costumes e prometer ternura militante e calorosas
bases sociais, são as linhas de acção destes partidos das margens. A verdade é
que conseguem. Muitas das suas propostas sobre a eutanásia, o casamento, o
divórcio, a adopção, a união de facto, a homossexualidade e suas variantes, as
actividades culturais, as campanhas contra o racismo e aquilo a que chamam a
descolonização e a desracialização têm como o objectivo primordial
desestabilizar o PS. O que têm conseguido com brilhantismo. Nunca se viu partidos
tão pequenos e tão insignificantes terem tanta influência no Parlamento e na
vida política nacional.
Temos
assim que os dois grandes partidos do sistema, PS e PSD, pouco se ameaçam ou
contrariam reciprocamente, antes agem em função das margens que comandam cada
vez mais o Parlamento. Ainda não, muito, a vida social e política, mas sim,
cada vez mais, o Parlamento. O que não é pouco. Entregar o Parlamento às margens activistas é meio
caminho andado para tornar o país instável e ingovernável. Há muitos problemas a tratar e tentar resolver com
enorme urgência, como sejam a
educação e o Serviço Nacional de Saúde. Mas tal só se pode conseguir se houver equilíbrio e
algum consenso de ponderação. Nunca se resolverá com as margens radicais.
Entregar
o Parlamento às margens activistas é meio caminho andado para tornar o país
instável e ingovernável
Pode
a liberdade individual fazer perder a qualidade da representação? É bem
possível que seja o contrário a verdade. A escolha faz-se pelo valor intrínseco
do que se diz e promete e pelas garantias oferecidas por um percurso, não pela
autorização partidária e burocrática. Pode a liberdade de candidatura e de voto
aumentar a imprevisibilidade? É provável. Mas a democracia é imprevisível
por definição. E o melhor
caminho para ultrapassar os riscos da imprevisibilidade não é o do arranjo
autoritário, mas sim o do entendimento, da negociação e do diálogo. Será
que a liberdade individual dos deputados é um risco para a estabilidade? É possível
que sim. Mas a liberdade tem preços. Que valem a pena. A livre representação
democrática é uma das figuras ou entidades mais dignas da vida política. É
condição de nobreza da função.
O autor é colunista do PÚBLICO
Sociólogo
TÓPICOS OPINIÃO DEMOCRACIA
PARTIDOS
POLÍTICOS PARLAMENTO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL
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