sábado, 4 de fevereiro de 2023

Mas a Alemanha vai mandar


Os canhões, ao que parece, a crónica de TS sendo já do mês passado. É de ideias equilibradas, como sempre, a merecer adesão, embora não total, segundo o lema das cabeças e respectivas sentenças, para além de que vivemos numa democracia plena de valores e de possibilidades de os pormos a nu.

Guerra na Ucrânia

O que quer a Alemanha?

Berlim tem uma alternativa: liderar a Europa, pagando o custo que essa liderança comporta.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO. 22 de Janeiro de 2023, 7:15

1. Contrariando quase todas as expectativas, Berlim voltou a mostrar que está muito longe ainda de ser capaz de liderar a Europa. Ou, pelo menos, de a liderar quando isso representa um custo. Muitos observadores anteciparam que a Alemanha acabaria por aceitar o envio de tanques Leopard 2 para a Ucrânia, durante o encontro que decorreu na sexta-feira, em Ramstein, do Grupo de Contacto para a Defesa da Ucrânia. Ou que, pelo menos, levantaria o veto sobre os tanques alemães adquiridos por outros aliados europeus, que estão dispostos a enviá-los. Não foi assim.

O novo ministro da Defesa alemão, que Olaf Scholz foi buscar ao governo do Land da Baixa-Saxónia, provavelmente mais por razões de confiança pessoal do que por qualquer experiência em assuntos de defesa, repetiu a posição do chanceler: não irão tanques alemães para a Ucrânia, nem haverá a autorização para que os 12 países europeus possam enviá-los. Pelo menos, para já. Segundo o ministro, a Alemanha “ainda tem de pesar os ‘prós’ e os ‘contras’ da sua decisão”. Existem cerca de dois mil Leopards entre os aliados europeus. Os países que dispõem deles querem enviá-los já, porque percebem que são essenciais para que a Ucrânia possa conter a ofensiva que a Rússia está a preparar para a Primavera. Quase todos os países europeus estão a preparar novos pacotes de apoio militar para a Ucrânia. Da Finlândia a Portugal.

2. Já não chegam as velhas justificações sobre os traumas alemães decorrentes das duas guerras mundiais. A guerra na Ucrânia é contra o regime que hoje mais se assemelha ao regime nazi, como lembrava Timothy Garton Ash no Guardian – a invasão de um país soberano sem qualquer justificação; a brutalidade das suas tropas; a barbárie que espalha todos os dias entre a população civil. A Ucrânia confronta uma potência autocrática e imperial que se acha com o direito de dominar os países vizinhos, se necessário pela guerra, quando estes têm a veleidade de não aceitar pertencer à sua “esfera de influência”. Que viola a lei internacional e a Carta das Nações Unidas. Que ameaça directamente a segurança europeia, caso não seja travada. Olaf Scholz tem de saber tudo isto. Dois dias depois da invasão, foi ao Bundestag declarar que a Europa e o mundo estavam perante um “Zeitenwende” – um momento de viragem –, a partir do qual nada voltaria a ser igual. Prometeu duplicar o orçamento de defesa alemão.

A cultura política e estratégica alemã pode ajudar a compreender a sua relutância. A Alemanha passou as últimas décadas a desfazer a herança de Hitler. Esteve, com a França, no centro da integração europeia, antes e depois da reunificação. Escolheu afirmar o seu poder através da força da sua economia, porque pôde sempre contar com os EUA para garantirem a sua defesa. Renasceu, na última década do século passado, como a potência central do continente, rodeada de pequenas e médias democracias por todos os lados. Não hesitou em exercer o seu poder na União Europeia, onde nada se pode fazer contra a sua vontade.

Esse tempo de paz e de prosperidade acabou. A questão passou a ser outra: se a Alemanha está em condições de liderar a Europa num tempo de guerra e de instabilidade. Isto significa pagar um preço. Os Estados Unidos pagam um preço elevado pela liderança do mundo livre e pela responsabilidade que detêm na segurança e na estabilidade internacionais. Político, diplomático, militar. A Europa não teve de pagar esse preço graças à aliança transatlântica. A Alemanha foi uma das suas grandes beneficiárias e, certamente, o país que mais ganhou com a integração europeia. Política e economicamente. Teria agora o dever de retribuir.

3. Haverá, talvez, outras razões que podem ter que ver com o que Berlim espera que seja o desfecho desta guerra. Para os seus parceiros e aliados europeus, esse desfecho tem de ser a derrota da Rússia. Será exactamente a mesma coisa para Berlim? O SPD do chanceler, que esteve no Governo de “grande coligação” liderado por Angela Merkel em três dos seus quatro mandatos, defendeu sempre uma política de aproximação a Moscovo, apesar do regime cada vez mais autocrático de Putin, apesar da Geórgia, em 2008, apesar da anexação da Crimeia, em 2014. Os interesses económicos das empresas alemãs na Rússia eram grandes, a energia barata uma vantagem competitiva, as boas relações de vários dos seus dirigentes com o Kremlin conhecidas. Convém lembrar que os dois parceiros de coligação do SPD – os Verdes e o FDP – estão a favor do envio dos Leopards e defendem uma posição de total apoio à Ucrânia. Os jovens liberais manifestam-se nas ruas com cartazes a dizer “Free Leopard”. É, portanto, uma questão do SPD e não da coligação.

Sholz teme um confronto com a NATO? Também não é justificação. As tropas russas não conseguem vencer a Ucrânia. Imagine-se o que seria a aventura de um confronto com a NATO.

Alguns analistas invocam razões materiais e técnicas para a relutância alemã em relação aos Leopards. Dos 300 tanques de que dispõe, muitos estão avariados (o que é comum, dado o estado em que se encontra a Bundeswehr, depois de anos e anos sem o necessário investimento). A Alemanha precisaria de preservar os que estão operacionais em caso de ter de se defender de uma escalada do conflito. Na verdade, estes argumentos caem pela base, quando se trata de deixar que outros países enviem os seus próprios tanques para a Ucrânia e, muito mais ainda, quando se trata da defesa alemã, garantida pela NATO.

A derradeira justificação do chanceler e do seu ministro da Defesa foi a exigência de uma decisão conjunta com os aliados, que, nos cálculos de Scholz, se reduzem a um só: os Estados Unidos. Sem Abrams não haverá Leopards. É um falso pretexto por várias razões, a primeira das quais é de ordem técnica e já foi sobejamente explicada. A outra resume-se a uma pergunta: porquê os tanques americanos, se esta guerra se trava na Europa, é uma ameaça directa à União Europeia, os europeus dispõem de dois mil Leopards, para além de outros modelos, e Zelensky apenas pede 300? Em Ramstein, o secretário da Defesa americano, Loyd Austin, mostrou-se publicamente compreensivo com as hesitações de Berlim. Foi quase paternalista, como se estivesse a lidar com um filho pródigo, relutante em regressar a casa. Mas a paciência americana pode não ser eterna. Até porque Berlim “exige” a Washington que mande os seus tanques defender a Ucrânia e, ao mesmo tempo, não abdica da sua “independência” para negociar livremente com a China.

4. Sabemos que, durante os anos de Merkel, a política externa alemã foi norteada por uma visão geoeconómica do mundo: os negócios e a interdependência económica eram a melhor garantia de estabilidade e de paz. Em relação a Moscovo, eram, mesmo, a melhor forma de moderar os instintos belicistas de Putin e de fazer da Rússia um parceiro fiável da União Europeia. Os países de Leste foram sistematicamente – e, por vezes, rudemente – ignorados, quando avisavam para o perigo de apaziguar Putin. Nem as aventuras belicistas na Geórgia e na Ucrânia, nem os crimes cometidos na Síria, nem a guerra “híbrida” de Putin através da desinformação e do financiamento de forças políticas nacionalistas e populistas nas democracias europeias fizeram soar campainhas suficientemente audíveis para levar Berlim a rever a sua política.

Mas, hoje, a Alemanha já não pode ter qualquer dúvida sobre a natureza do regime de Putin. Hoje, já vários responsáveis políticos alemães (que não Merkel) reconheceram publicamente que se enganaram. Até por isso, o seu apoio à Ucrânia, que paga com sangue esses erros, devia ser total. Aparentemente, no entanto, todas estas lições não chegam para a levar a agir com a responsabilidade que esta guerra exige.

Fica a questão: qual é o resultado do conflito que a Alemanha pretende? O que quer para o futuro da União Europeia? Como olha para o mundo que está a emergir deste conflito? O que espera dos seus parceiros e até que ponto está disponível para levar os seus interesses em consideração? O que quer da aliança transatlântica? Como vê o seu papel no mundo? Sem a presença do Reino Unido, e apesar da França, estas perguntas tornam-se ainda mais cruciais.

A Alemanha pode arrastar a União Europeia para uma posição geopolítica insustentável para a maioria dos seus parceiros. Ou pode dividi-la. Qualquer das alternativas poria termo à integração europeia tal como a conhecemos. A forma como Berlim ignora a vontade dos seus parceiros europeus no que respeita ao envio de Leopards é, certamente, um mau presságio. Berlim tem outra alternativa: liderar a Europa, pagando o custo que essa liderança comporta, pequeno se tivermos em conta os enormes ganhos que lhe pode trazer.

COMENTÁRIOS (de 85):

FMM Experiente:@Tô Flores. Meu caro, a Rússia tem milhares de armas nucleares, suficientes para destruir toda a Europa. Sabemos isso e sabemos que a sua utilização em massa seria catastrófica para o mundo inteiro. Seria a aniquilação total da Humanidade. Também sabemos que a Rússia irá sempre ameaçar qualquer potência que, para se defender, tenha que atacar a própria Rússia. Infelizmente assim é e será. Deus nos livre disso. Mas, depois de a Rússia invadir a Geórgia e a Crimeia e agora a própria Ucrânia, verificamos a sua tentativa de perigosa expansão para o resto da Europa. Nunca ficaremos descansados, enquanto não detivermos esta potência beligerante. O risco é grande mas só há um caminho: derrotá-los e ao seu imperialismo, tal como o fizemos com a Alemanha nazi.              PAULO CARVALHO FREIRE Experiente: To Flores, mesmo que a Rússia ganhe na Ucrânia, continuará a ter armas nucleares, e a ameaçar com elas o próximo que se opuser às suas invasões: Geórgia, Moldova, Estados Bálticos, Polónia, etc. Se a táctica de meter medo resulta agora, mais os inventiva a continuar, pois pode continuar a resultar. Portanto, ceder na Ucrânia não resolve nada, o problema continua sempre.           Moderador: Concordo com a opinião da Teresa de Sousa. Não sabemos muito bem o que vai na cabeça dos alemães. É por estas e por outras que eu nunca gostei, nem gosto desse país. Também ainda não esqueci aquele ministro da finanças que nos fez a vida negra. O que quer a Alemanha, não sabemos, são muito opacos e muito pouco confiáveis. Tenho imensa pena da saída do Reino Unido da UE, que poderia estar agora, cá dentro, a liderar esta questão. Mesmo assim têm sido exemplares. Voltem rápido para a UE, que bem precisam de nós, mas nós, restantes europeus também bem precisamos deles, para garantir um certo equilíbrio na UE. Quanto aos alemães acho que vão acabar de ceder nesta questão, mas entretanto vão causando divisões desnecessárias. Está-lhes no sangue.            Jonas Almeida Experiente: A maioria dos Alemães não quer acender a WW3 com os L2, ou a maioria dos americanos não quer ser polícia do mundo com a NATO, deixa aqui os valentes da grimpa em acusações de nazismo. Nem TdS resiste ao espasmo. É destes estertores que se alimenta hoje o que resta do "europeísmo", agora em edição belicista.                Democrata21 Influente : Faltou invocar, o risco de uso nuclear pela Rússia. Parece-me absolutamente utópico, pensar que a Rússia alguma vez se disponha a sair de mãos a abanar desta guerra, é ainda cedo, mas creio que as negociações terão de considerar a perda da Crimeia, a menos que queiramos assumir o risco de um conflito nuclear mundial. Foi a Europa, não só a Alemanha que criou condições a Putin, colhemos o que semeámos……………

 

Nenhum comentário: