quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

E é o que se tem visto


Nesta questão da Ucrânia. E percebemos melhor, com esta clara análise de João Marques Almeida, o porquê desta nossa simpatia, nimbada de admiração, por um herói defensor não só da sua terra mas barreira defensiva da nossa. Por enquanto. O certo é que a definição de Vieira continua imorredoira: «É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta…» coisa que também o nosso Nicolau Tolentino satiriza no seu poema A GUERRA, que vale a pena reler - para disfarçar o nosso repúdio da guerra e, no nosso caso de portugueses ,“guerreiros”, actualmente, disfarçarmos o horror da paragem do nosso país pelos nossos heróis do boicote ao trabalho. Daí que coloque algumas quintilhas de Tolentino no fim do texto, para diversão nossa, nesta greve da nossa força guerreira, que a democracia defende sem pejo e em marchas cantadas e apitadas.

Foram os europeus que escolheram

A incapacidade de defesa autónoma dos europeus não resulta de qualquer imperialismo americano ou da expansão dos Estados Unidos. Foi escolha dos governos europeus, e dos eleitorados, de 1945 até hoje.

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 09 fev. 2023, 00:20

A guerra na Ucrânia fez regressar os debates sobre a defesa europeia. Ou melhor, sobre a capacidade europeia de se defender sem a ajuda dos Estados Unidos. Na linguagem diplomática francesa, “a autonomia estratégica europeia.“ Mas a defesa da Europa e a autonomia estratégica são questões diferentes. Há defesa europeia. Chama-se NATO. Desde 1949, a Aliança Atlântica garantiu a defesa da então Europa Ocidental. Hoje, continua a garantir a defesa europeia, como mostraram os finlandeses e os suecos. As tropas russas entraram na Ucrânia e a Finlândia e a Suécia pediram a adesão à NATO.

Mas consegue a União Europeia e os países europeus defenderem-se de um modo autónomo? Não, não conseguem. Continuam a precisar da NATO e dos Estados Unidos. A incapacidade de defesa autónoma dos europeus não resulta de qualquer imperialismo americano ou da expansão dos Estados Unidos. Foi uma escolha dos governos europeus, dos eleitorados europeus, desde 1945 até hoje. E será muito difícil os europeus mudarem as suas escolhas.

A história conta-se facilmente. Depois da segunda guerra mundial, a União Soviética ocupava metade da Europa, com as suas tropas instaladas no centro da Alemanha. A Europa Ocidental estava destruída, empobrecida e, principalmente, esgotada moralmente pela guerra. Os Estados Unidos vieram defender os europeus da ameaça soviética. Os europeus poderiam ter decidido investir na defesa e não dependerem dos norte americanos. Mas não o fizeram. Concentraram os seus recursos no crescimento económico e nas políticas de proteção social.

Com o fim da Guerra Fria, em 1989, a reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética, em 1991, os europeus tiveram uma segunda hipótese para se armarem e conquistarem autonomia militar. De novo, resolveram não o fazer. Foi um americano de origem japonesa que escreveu o Fim da História, mas foram os europeus que acreditaram genuinamente que uma certa história tinha mesmo chegado ao fim. A história das guerras, das competições geopolíticas, das corridas aos armamentos militares. Os europeus acreditaram que a história do mundo seguiria a exemplo da Europa, integração económica, trocas comerciais, cooperação sobre problemas comuns, e reforço da democracia. Durante três décadas, os europeus viveram na ilusão do fim da velha história e do início de uma nova história. Os principais partidos políticos fizeram campanhas eleitorais a dizer isso aos eleitores, os cidadãos europeus votaram nesses programas políticos, e os governos gastaram dinheiro em quase tudo menos em capacidade militar.

Putin e a invasão da Ucrânia acordaram os europeus do seu sonho de décadas. Conta-se que, numa reunião na universidade de Cambridge, um jovem académico apresentou propostas para reformar as regras de funcionamento do seu departamento. Consciente de que algumas das suas ideias poderiam ser vistas como demasiado revolucionárias, acrescentou: “estudei as reformas do nosso departamento durante os últimos dois séculos, e as minhas propostas enquadram-se plenamente no espírito dessas mudanças.” O director do departamento respondeu: “o meu jovem colega não considera que os últimos 200 anos foram verdadeiramente extraordinários?”

As últimas três décadas na Europa também foram extraordinárias. Estamos agora a voltar ao normal. Entretanto, a Europa perdeu a sua soberania militar. Hoje, os países europeus estão endividados, com cargas fiscais elevadas e com compromissos duradouros em relação às proteções sociais. Para manterem o “Estado social”, os países europeus terão que continuar a serem defendidos pelos Estados Unidos. É o resultado de décadas de escolhas políticas dos europeus, eleitores e governos. Nenhum líder político europeu o diz. Mas é a verdade. E todos os líderes europeus o sabem.

DEFESA  UNIÃO EUROPEIA   EUROPA   MUNDO

NOTAS DA INTERNET:

Excertos da sátira “A Guerra” de Nicolau Tolentino:

Receptor: “Musa”

«…Deixa esquipar Inglaterra   cem naus de alterosa popa,   deixa regar sangue a terra.   Que te importa que na Europa   haja paz ou haja guerra?

Que tens tu que ornada história   diga que peitos ferinos,   em sanguinosa vitória,   inumanos, assassinos,   são do mundo a honra e a glória?

As guerras precisas são,    nelas a paz se assegura:   não metas em tudo a mão,   musa louca; por ventura   encomendam-te o sermão?

Deixa que o roto taful,   a quem na pátria foi mal,   vá cruzar de norte a sul;   cubram-lhe o corpo venal   três palmos de pano azul.

Deixa que em tarimba estreita   o desperte a aurora ingrata;   que o duro cabo, que o espreita,   o faça, ao som da chibata,   virar à esquerda e à direita.

Deixa-lhe em sangue envolver   duro pão, que lhe dá Marte;   e, para poder viver,   deixa-lhe aprender esta arte   de matar e de morrer.

Voe-lhe aos ares um pé;   sobre o outro, com valor,   a Plutão cem mortos dê;   arda de raiva e furor   sem nunca saber porquê.

Dizes que uma guerra acesa   é teatro de impiedade;   chamas-lhe crua fereza,   flagelo da Humanidade,   triste horror da natureza.

Pintas um bravo guerreiro,   e a meus olhos vens mostrá-lo,   para ferir mais ligeiro,   metendo o ardente cavalo   sobre o exangue companheiro.

A um lado e a outro lado   a morte mandando vai   co sanguinoso traçado,   até que ele mesmo cai   de um pelouro atravessado.

Co’as cabeças abatidas,   vão de ferro vil marcados,   maldizendo as tristes vidas,   mil cativos manietados,   vertendo sangue as feridas.

Entre horrorosos troféus,   o general desumano   manda falso incenso aos céus,   e de espalhar sangue humano   vai dando louvor a Deus.

Que no frio, vasto norte,   cem Boerhaves eloquentes   enchem de oiro o cofre forte,   porque perdidos doentes   arrancam das mãos da morte.

Que ali mesmo grosso fruto   colhe Saxe entre os soldados,   porque em minado reduto   fez voar, despedaçados,   dez mil homens num minuto.

Tirando então consequências,   zombar dos homens procuras   e das suas vãs ciências:  sempre cheios de loucuras   e cheios de incoerências.

Se a paz, em dias felizes,   à cara pátria os conduz,   dizes que estes infelizes   mostram, rindo, os peitos nus,   cortados de cicatrizes;

Que este reconta aos parentes   como em perigoso passo,   zunindo balas ardentes,   uma lhe quebrou um braço;   outra lhe levou os dentes;

Que outro, da perna cortada   abençoa a horrível chaga,   porque ao peito, pendurada,   trará algum dia, em paga,   inútil fita encarnada.

Dizes que entre os animais   proíbe guerras o instinto;   e que, surdo a tristes ais,   vês com horror o homem tinto   no sangue dos seus iguais.

Musa, não discorres bem:   pois se uns com os outros cabem,   e juntos a um pasto vêm,   é só porque ainda não sabem   a virtude que o ouro tem.

Por preciosos metais   não põem peitos a bravos mares;   traze exemplos mais iguais:   sábios homens não compares   com os brutos animais.

Trazem focinho no chão,   e nós sempre ao alto olhamos;   temos em dote a razão   e por isso levantamos   uns contra os outros a mão.

Se os homens se não matassem   e impunemente crescessem,   pode ser que não achassem   nem fontes de que bebessem   nem campos que semeassem.

Sabe que mil males faz   a mole tranquilidade   e que em seu seio nos traz   brando luxo e ociosidade,   danosos filhos da paz,

Que nos causa ocultos danos,   fingindo rosto inocente;   que a guerra de largos anos   conservou antigamente   a inocência dos Romanos;

Que, enquanto ao duro exercício   eram seus corpos afeitos,   e da paz não houve indício,   não lavrava nos seus peitos   mortal peçonha do vício;

Não havia mãos profanas,   eram suas almas sãs;   e nas símplices cabanas   fiavam grosseiras lãs   as castas moças romanas.

Entre as nações sossegadas   sabe que o ócio arraigado   e as paixões em paz criadas   fazem mais sangue no Estado   que os gumes das espadas.

Deixa pois haver queixumes:   metam-se armadas no fundo,   acenda a guerra os seus lumes,   que assim tornará ao mundo   a inocência dos costumes.

A intacta fé, a verdade   venham com as baterias;   desça do céu a amizade;  e torne   a doirar os dias   de Saturno a antiga idade.

Musa vã, que em ti não cabes,   os guerreiros arraiais   nem vituperes, nem gabes;   e não te metas jamais   a falar no que não sabes.

Haja bloqueio, haja assédio;   o sangue humano espalhado   nem sempre te cause tédio;   que em boa dose tomado,   té o veneno é remédio.

Deixa ir o mundo seu passo,   e contra si mesmo armado   corte c’um braço o outro braço.   Põe na boca um cadeado,   faze o que eu mil vezes faço.

Emprega melhor teu canto;   e, pois queres que te louvem,   das sátiras levanto;   poesias que os homens ouvem   um com riso e cem com pranto.»

 

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