Diferenças notórias nos aponta o texto do Dr
Salles, a respeito das regalias humanas distribuídas pelo Estado,
sobretudo nos direitos civis na saúde e no descanso de férias, o sábado e o
domingo sendo as únicas férias para a maioria das gentes de então, exceptuando
os estudantes, que gozavam religiosamente esses direitos às suas férias - e tão
bem que elas sabiam, no tempo da outra Senhora,
de brincadeiras e leituras como prazeres da vida, para os estudantes, que,
esses sim, delas beneficiavam, com as mães em casa, tratando da casa e do
sustento, que os proventos paternos, angariados na sua função pública,
propiciavam. Nessa altura, não se falava em droga, e brincava-se na rua, o
movimento dos carros era escasso, e a liberdade era mais real, porque sem medo.
Agora fala-se em liberdades, e é o medo que vive, em torno dessas… Mas
desviei-me da análise feita pelo Dr. Salles,
que relembra as conquistas desses direitos, em regalias estatais, embora
pensemos que todos esses direitos de que se goza hoje, vêm ensombrados por uma
dívida externa que deixamos para os tempos vindoiros… se é que chegarão esses
tempos, caracterizados estes de hoje por atrocidades humanas e telúricas definitivamente
relativizantes de tudo o que contou e conta para a felicidade humana.
Mas a crónica do Dr. Salles é, como sempre, balsâmica, no evocativo
leve e sagaz do passado, em paralelo com o presente.
DAS SENHORAS
E DOS SEUS TEMPOS
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.02.23
No consulado do Doutor
Salazar, a economia de subsistência era vista mais como uma virtude cristã do
que como um índice subdesenvolvimento e as pessoas trabalhavam até morrerem.
Segurança
Social? Havia umas «Casas do Povo» e umas «Casas de Pescadores» para as quais os respectivos
“beneficiários” descontavam verba simbólica recebendo em retorno algo que
também mais não era mais do que simbólico. As férias eram «coisa» típica de
madraços.
Foi no consulado do Professor Marcelo Caetano que rurais e
pescadores passaram a ter uma Caixa de Previdência assim como muitas outras
profissões que, também elas, andavam ao sabor da Providência Divina, mas sem
Previdência terrena. Foi neste período de autêntica corrida contra o
tempo perdido que as férias
passaram a constituir um direito de quem trabalhara no ano
anterior bem como o respectivo subsídio. Também o Subsídio
de Natal foi então instituído.
Na saúde, havia a ADSE (assistência aos servidores civis do
Estado) e a ADME (para os militares). O resto da população… «saudinha da boa é o que desejo
aos Senhores»…
E assim era «no tempo da outra Senhora».
* * *
«Com esta Senhora» …
… foi instituído o Serviço Nacional de Saúde e as Caixas de Previdência foram nacionalizadas e
fundidas dando origem ao Sistema/Regime
Geral da Segurança Social.
Creio que merece apoio unânime
de que todos os cidadãos têm (obrigatoriamente que ter um
regime de segurança social público complementável por regimes privados caso seja
essa a vontade de cada um. O mesmo se dizendo em relação à saúde.
Contudo, toda a regra tem excepção e esta é a que respeita àqueles
cidadãos que se voluntariaram para servir a Pátria com risco da própria vida – os
militares – a quem podemos/devemos reconhecer o direito de
usufruírem de um regime especial de saúde, a ADME.
Já quanto à ADSE, não vejo qualquer razão que obste à sua absorção
pelo Serviço Nacional de Saúde. A
menos que essa absorção seja financeiramente perigosa para a entidade
absorvente. Mas, nessa eventualidade, lá estará o Estado a tirar de um bolso
para meter noutro,
Ou será que as mordomias são
outras e há cidadãos de primeira e de segunda? É que, se assim for, é a
democracia que se deve sentir defraudada.
Fevereiro de 2023
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Anónimo 10.02.2023 19:53: Não há mais democracia, por isso não
pode ser defraudada, Todos fazemos parte do grupo "Os Defraudados"!
Adriano Miranda Lima 10.02.2023 23:56: Esta reflexão tem a virtude e a oportunidade
de nos relembrar a história do país desde a "outra senhora" e as que
se lhe seguiram no mando da nossa casa comum. Nesse sentido, o Dr. Salles da
Fonseca elegeu a Segurança Social e a Saúde como os dois indicadores mais
importantes para a avaliação do que essas "senhoras" conseguiram ou
puderam realizar em providências que são as mais críticas para o seu bem-estar
material e para a sobrevidência dos seus filhos, dentro dos padrões mínimos da
civilização europeia. Mas foi omitido o consulado das
"senhoras" da nossa primeira experiência republicana. Dado
que essa experiência foi um verdadeiro fracasso, para não dizer um desnorte, em
realizações sociais concretas, porque de proclamação de princípios não se enche
o estômago nem se trata da saúde, é-se levado a concluir que por alguma razão -
precisamente essa - só se podia começar pela "senhora" Salazar.
Pois,
goste-se ou não dessa "senhora", é inegável que ela teve de arrumar a
casa, que estava praticamente virada do avesso e vazia. E é assim que ela fez
alguma coisinha nas áreas em questão, mas o contrário seria quase impossível
porque nada havia.
"Senhora" muito agarrada e com uma visão do mundo algo restrita,
circunscrita e pouco dada ao risco, ficou pelos mínimos dos mínimos. A
"senhora" que lhe sucedeu demonstrou que tempestivamente se podia ter
feito algo mais, muito mais, como bem sabemos. Quanto às "senhoras"
que se seguiram e num regime já a aproximar-se de meio século, todos sabemos
que os nossos padrões evoluíram consideravelmente. Podíamos ter avançado mais?
Provavelmente. Mas a solução depende do esforço conjugado de todos, não apenas
desta ou daquela "senhora" que se senta na cadeira do poder.
Portanto, existe democracia, sendo ela reflexo do que conseguimos todos em
conjunto para a aperfeiçoar e não de intervenções providenciais. E cuidado com
alguns que andam por aí em ensaios ruidosos e descarados para ressuscitar
"senhoras" de má memória! Quanto à questão referente à ADSE, não
me pronuncio porque sou beneficiário da ADME. Mas percebo bem o sentido da
questão. Um abraço Adriano Lima
Antonio Fonseca 11.02.2023 02:15: Sr. Doutor Salles da Fonseca, Gostaria de
deixar aqui uma opinião: Na realidade, existem vários níveis de cidadania,
malgré os propósitos democráticos. Rara é a Democracia onde a igualdade de
Direitos se traduz na garantia mesmo de benefícios mais elementares, como a
garantia de habitação, por exemplo. Mesmo numa democracia as primícias vão
aos governantes, seguem os sindicalizados e assim por diante. Se alguém da
classe desfavorecida chega ao Poder, poderá introduzir reformas, mas a
estrutura permanece infalivelmente piramidal, quiça o ápice mais próximo da
base.
Agradeço a oportunidade de ler os seus blogues pela elegância do estilo e pela
abordagem de assuntos a reflectir. Obrigado.
Anónimo 1.02.202319:40: Caro Henrique, não sei se entendi devidamente a tua posição sobre a ADSE. Se bem percebi, e partindo do princípio de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a ADSE são suportados pelo Estado, então o primeiro deveria absorver a segunda, salvo se a fusão fosse financeiramente arriscada para a entidade absorvente. Se é esta a tua posição, então devo dizer-te que divergimos, o que não deixa de ser estimulante que por vezes isso ocorra. A minha posição, que a seguir explicito, pode estar influenciada por algum pressuposto errado. Se assim for, as minhas desculpas. O Estado assegura constitucionalmente um Serviço de Saúde, tendencialmente gratuito, a todos os cidadãos, sendo ele prestado essencialmente nos Centros de Saúde e em Hospitais Públicos, podendo haver aqui ou ali alguma colaboração com entidades privadas. O tema ideológico do SNS de não recorrer com mais frequência a estas últimas foi amplamente debatido nos últimos tempos, pelo que não o desenvolvo. O mesmo Estado, na sua função de grande empregador, disponibiliza aos seus colaboradores a possibilidade de estes voluntariamente aderirem a um subsistema de saúde, para o qual ambos contribuem. A ADSE negoceia com entidades de saúde, independentemente de serem públicas ou privadas, prestações de serviços, certamente a preços mais módicos dos do mercado, suportando os beneficiários uma parcela desses preços e o Estado outra. Tudo se passa como se fosse um seguro de saúde, habitual em grandes e médias empresas (algumas pequenas empresas também o têm). É um instrumento de atracção e fixação de colaboradores. Portanto, as duas funções são desempenhadas pelo Estado a título distinto, para universos diferentes, e não podem ser fusionadas, pois as condições e os propósitos do SNS são completamente distintos, como evidenciado, dos da ADSE. Abraço amigo. Carlos Traguelho
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