À dor inerte dos que assistem de longe ao sofrimento por outros vividos. Não se fala, contudo, nas raivas de condenação – embora subentendidas no discurso de Paulo Tunhas, julgo, condenatórias dos que deturpam as causas da guerra, cinicamente por esses atribuídas aos que são guerreados e destruídos – no caso da guerra na Ucrânia - não aos que os destroem e praticam crimes de estarrecer. Um discurso elegante, este de Paulo Tunhas, com um certo rebuscamento, pareceu-me, no velado das afirmações pescadas nas filosofias, o que é meritório e instrutivo. Mas neste momento, preferimos o discurso de ataque às bestialidades praticadas pelos monstros que ainda continuam por aí.
Com e sem intenção
A tendência para atribuir
indiscriminadamente o nosso próprio sofrimento a uma intenção alheia é uma
tendência generalizada. Nos nossos dias, a cultura woke dá uma dignidade
teórica a essa inclinação.
PAULO TUNHAS Colunista do Observador
OBSERVADOR, 16
fev. 2023, 00:19
A
partir de certa idade, estamos particularmente bem colocados para compreender o
sofrimento humano. Qualquer um de nós poderia escrever um livro intitulado
“História das Minhas Calamidades”, mesmo que as calamidades em questão não sejam
tão radicais como as do autor da obra original. Essa nossa experiência
particular do sofrimento, que obviamente varia, na forma e na matéria, de
indivíduo para indivíduo, permite-nos, de uma certa maneira, sentir de dentro o
sofrimento dos outros. Schopenhauer elevou
essa percepção a uma dimensão metafísica que é central na sua filosofia.
Há o sofrimento que faz, de modo inevitável, parte da nossa própria
existência. Aquele que vem da experiência do desamor, por exemplo, da dor dos
que nos são próximos ou da aproximação da morte, particularmente da morte
dolorosa. E há o
sofrimento excepcional provocado pelas
grandes catástrofes. A
guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia e o recente terramoto na Turquia
e na Síria são um bom exemplo desse sofrimento em escala gigantesca. As televisões confrontam-nos com imagens de
destruição e dor e com as de humanos que fazem tudo o que podem para salvar
outros humanos. Podíamos ser nós, se tivéssemos tido a pouca sorte de estar
ali, naquele momento. Qualquer um pensa isto, sem quase se dar conta que o
pensa.
Este
primeiro pensamento é idêntico nos casos da guerra e do terramoto. Os
pensamentos que vêm a seguir são, no entanto, diferentes. No caso do terramoto, esse pensamento é quase o
primeiro e o último. Pode repetir-se, pode ser mais ou menos intenso, mas não
muda na substância. No caso
da guerra, a situação é diversa. É
diversa porque supomos uma intenção humana que está por detrás desse
sofrimento. E a
suposição dessa intenção traz consigo novos pensamentos que, por sua vez,
arrastam outros. E nesse processo vamos fazendo juízos sobre as coisas,
escolhendo valores, e cada nova visão do sofrimento vem mais tingida de juízos
e valores.
É
verdade que, em tempos passados, os grandes desastres naturais faziam-nos igualmente
pensar em Deus e nos pecados dos homens. Mas,
hoje em dia, é uma solução rara e, de resto, não terá sido nunca coisa idêntica
ao que se passa com os pensamentos suscitados pela guerra. Há, no
entanto, em muitos discursos contemporâneos sobre catástrofes naturais, uma
repescagem desse tal esquema antigo sob a forma da atribuição de uma culpa às
acções humanas que estarão na origem das alterações climáticas e, por aí, das
catástrofes naturais. Como se procurava dantes inocentar Deus do sofrimento humano,
procura-se agora inocentar a natureza, designando-nos a nós mesmos como
culpados. E as ciências substituem a teologia. Não é, mais uma vez, a mesma coisa que se passa com
a guerra. Na guerra, a suposição de uma intenção humana por detrás do
sofrimento é directa; no caso da suposição de uma acção humana por detrás das
catástrofes naturais é necessário passar pela longa mediação de uma teoria.
O que é inegável, no entanto, é que
possuímos uma tendência natural para supor intenções, mais ou menos determinadas
e conscientes, por detrás de acontecimentos catastróficos naturais. É uma espécie de ilusão natural da nossa razão, como
se a suposição da intenção fosse a única maneira de fazer sentido das coisas. Nada tem a ver com as ciências nem com a própria
ciência como projecto. Mas corresponde a um modelo arcaico de inteligibilidade
que nos permite a descoberta ilusória de um sentido naquilo que nos causa
sofrimento. E esse sentido ilusório conduz-nos a construir pensamentos que
prolongam o primitivo pensamento “poderia ter sido eu a encontrar-me ali”,
o único que decorre naturalmente do sem-sentido da catástrofe.
Um
teólogo medieval, Gregório de Rimini,
via a teologia como uma disciplina que criava um hábito de acreditar, um habitus
creditivus, que
estimulava o crescimento da fé. Quaisquer que sejam os méritos da
doutrina da origem antropogénica das alterações climáticas (e, em vários casos, ela parece-me de uma enorme
plausibilidade), ela funciona também, à sua maneira, em muita gente, como
a teologia para Gregório de Rimini:
estimula uma crença na ideia de que uma intenção, mais ou menos directa,
preside às catástrofes naturais. A
nossa psique procura em tudo fazer sentido das coisas. O sem-sentido não é por
ela absorvível.
E
isso manifesta-se até no nosso dia-a-dia. A tendência para atribuir
indiscriminadamente o nosso próprio sofrimento a uma intenção alheia é uma
tendência generalizada. Nos nossos dias, a cultura woke dá
uma dignidade teórica a essa inclinação e a paranóia exibe o modelo patológico
por excelência desta atitude. Basta pensarmos um pouco neste caso radical para
nos darmos conta que não devemos usar a nossa faculdade de pensar para lá dos
limites que os casos particulares nos impõem, sob pena de nos enganarmos a nós
mesmos. Até porque esta suposição de intenção
generalizada, ao eliminar ilusoriamente o sem-sentido que preside a muitos
acontecimentos, tem em muita gente o curioso efeito de inibir um verdadeiro
juízo de valor nos casos em que há declaradamente uma intenção consciente na
causa dos acontecimentos. Exemplo dessa inibição é precisamente a atitude de muita gente para com a
responsabilidade exclusiva de Putin na guerra da Ucrânia. À força de
procurar um sentido invisível, tornamo-nos cegos para com o óbvio visível que
está mesmo à nossa frente. E cegos também para o sofrimento humano mais
patente.
COMPORTAMENTO SOCIEDADE CATÁSTROFES ACIDENTE GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA FILOSOFIA CULTURA
COMENTÁRIOS
Seknevasse: Excelente artigo. Mas parece-me compreensivel apenas para quem pensa e são
tantos (e tantas) que só aparentemente têm essa capacidade... Francisco Almeida: Excelente e sobretudo, claro.
Como há anos dizia um professor de Coimbra, a clareza é a boa-fé do filósofo.
Como "fait-divers"
deixo o comentário de alguém, anos atrás, à erupção de um vulcão que causou
estragos e mortes: é a Terra a reagir, a mostrar que ainda está viva. João Floriano: Excelente crónica sobre a
empatia: colocar-nos no lugar do outro e tentar compreender o seu sofrimento.
Não tenho qualquer dúvida que só um desvairado pode dizer que o terramoto na
Turquia e na Síria provocada certamente por deslizamento de placas a grande
profundidade, pode ser causado pelas alterações climáticas. Um abalo com aquela
gravidade tem mesmo a ver com as forças da natureza que não são possíveis de
controlar. Mas o que se segue de apoio às vítimas, de salvamentos, de
verificação da má qualidade das construções, isso já tem a ver com a actividade
humana. Até Tuga, o golden retriever salvo por acaso. Se acordássemos agora de
um sono de mais de um ano e nos mostrassem fotos das cidades destruídas pelo
ataque russo à Ucrânia e fotos da destruição do terramoto na Síria e Turquia, provavelmente
não as diferenciaríamos. bento guerra: !Que las hay,las hay..."
Américo Silva: Uma boa crónica, embora lhe puxe o pé para o chinelo,
como dizia um advogado para o colega: -V. Exa. é uma no cravo, outra na ferradura. -Pudera, se V. Exa. não está
quieto com a pata.
Maria Correia: Bem pensado- se somos todos
culpados, de tudo, nunca é nada nem ninguém específico de nada.
Cisca Impllit: Mais claro do que isto, só
necessário para manhosos ou distraídos.
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