quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Uma fábula que me escapou


Em tempos publiquei um livro

- “Permanência em fabulário de mudança” -

Que José Pacheco Pereira desconhecerá,

Indiferente naturalmente

A leituras de concidadãos ignorados,

Por não serem os consagrados

No tablado nacional,

Ou por não serem já passados,

Mergulhados

Nesse conforto banal

Do sono da eternidade

Sono que não deixa sombra

E por isso os pode elevar

Sem descrédito, por seu mérito,

A um alto padrão consensual,

Na classificação nacional,

- E quem sabe se universal.

Por isso espero, mas sem prazer,

Que depois do meu passamento,

O meu fabulário venha a merecer

O apoio indispensável

Dos Pereiras de gabarito então,

Sem muito atrito.

Já agora vou transpor

Para, em caso de segunda edição,

- Post-mortem, naturalmente -

Digo-o sem compaixão

De mim - muito diferentemente

Do nosso Cesário Verde,

Que disse tê-la de si, lembrando,

Como justificação da sua emoção,

O professor de Latim,

Pelas esquinas pedindo esmola

Eterno, calvo, sem repouso e velho,

À chuva e ao vento

E ao sol do seu viver

Sem alento -

Mas isso era antigamente,

Porque hoje

Já quase não os há -

- Professores de Latim, digo - por cá…

- “Para o caso da tal segunda edição

- Repito, pois tergiversei

E me arrastei distraidamente -

O livro seja acrescido

Desta fábula hoje forjada

Com muito ou pouco alarido

- Mais certamente, nenhum,

Que o silêncio é mais conforme

Como acabei de exprimir  -

Mas baseada

No mesmo prazer de ler

Que Pacheco Pereira defende

No contexto do seu texto.

Eis a fábula reconhecida

Que a Internet traduz

E P. P. esquematiza

E moraliza

E eu ponho em versalhada

Próxima da prosa criada

Em tradução encontrada

Na Internet actual

Da nossa conveniência,

- Em esclarecimento, afinal,

Bem prestável e amável,

Mau grado ser, ao que se diz,

Não tanto assim confiável

(O que nem sempre condiz

Com a verdade insofismável)

E à qual, pelo contrário,

Deveremos gratos ser.

Eis a fábula em questão

Da minha tradução do texto

Da Internet extraído:

«Numa manhã um Falcão

Apanhou um ninho

De rouxinóis pequeninos

E quis matá-los.

Com brandura e suplicante

A mãe Rouxinol rogou

Que os não matasse e em troca

Prestar-lhe-ia serviço

Em cada dia do ano.

Concordou o Falcão e quis ouvir

O cantar dessa mãe tão aterrada

Que ali mesmo entoou,

O seu canto de assustada.

Mas o Falcão descontente

Começou logo a comê-los

Em represália impudente

Contra um canto desprezível.

Porém o caçador lançou-lhe um laço

Com que o arrastou e o prendeu

Sem esforço nem embaraço

E assim o castigou.»

A moral da fábula não a dá Esopo

Mas fornece-a P. Pereira,

Adepto da ironia contra quem,

Bem ou mal armadilhado,

Vai buscar lã mas sai tosquiado.

Diz ele sem ser em verso

Nem bem nem mal amanhado

Que a fábula é dedicada

Aos predadores contentes

Que distribuem “gasolina”

- Julgo que entre parênteses

Por ser figura de estilo -

E mais aos vários ajudantes

No desgaste da democracia

- Hoje-em-dia -

Pelo ataque à liberdade

Que fazem com acuidade:

Julgo que se refere

Aos destruidores da Ucrânia

Mas não tenho disso a certeza,

Já que por cá também há

Como lá, más fadas, ou seja:

Eles, os tais atacantes,

Distribuem as benesses,

Em vez das russas batalhas,

Mas retiram os poderes,

Com a redução

Da população

A uma idiossincrasia

De mendicidade e insegurança

Na falta de consciência

Sobre a verdadeira dignidade

De uma real Humanidade

Apoiada em esforço e saber

Com a ética por companhia…

O que os clássicos nos dizem sobre os que andam à caça dos outros

Aqui vai uma fábula dedicada aos predadores que por aí andam muito contentes a distribuir gasolina, e aos irresponsáveis que os ajudam a “gastar” a democracia e atacar a liberdade.

JOSÉ PACHECO PEREIRA                    PÚBLICO, 4 de Fevereiro de 2023, 6:46

Todas as semanas passam pelas minhas mãos muitas centenas de livros, quando faço a triagem das entradas para a Biblioteca/Arquivo Ephemera. Já para prevenir as más-línguas, eu disse “passam pelas minhas mãos” e não que os li. Esta semana entrou uma biblioteca muito rica em livros clássicos, literatura e filosofia, em português e francês, muitas vezes bilingues. E eu disse aos meus amigos que me estavam a ajudar: “Não me deixem abrir os livros, porque senão fico a lê-los.”

Hoje, a maioria das pessoas, principalmente os mais novos, num conceito de “novos” semelhante ao Konsomol soviético, não faz a mínima ideia do mundo absolutamente magnífico que está lá dentro. Há nos clássicos greco-latinos uma qualidade lustral, aqueles homens estavam muitas vezes a escrever sobre eventos, pessoas, sentimentos, ideias, problemas, pela primeira vez, que nós saibamos. Há uma frescura única nesses textos, fábulas, poemas, histórias, biografias, ensaios, muitas vezes fragmentados pelo tempo, que não se compara a nada escrito depois.

Mas quando eu pedi que me controlassem, e em bom rigor depois, continuei a ler. Abre-se o livro e as coisas começam logo pelas primeiras palavras, e fica-se preso. Há muitas vezes anacronismos que ensinam muito. Por exemplo, Plutarco na sua biografia de Demóstenes começa citando um texto atribuído a Eurípedes, que afirma que “a primeira condição de felicidade é ter nascido numa cidade célebre”. Hoje ninguém diria isto, embora não seja inteiramente mentira. Plutarco contesta: é “absolutamente indiferente ter nascido numa pátria pobre e obscura ou ter uma mãe feia e baixa”. Parecem trivia, são trivia e são muito mais do que trivia.

Apareceu-me então a edição que eu tinha lido, há muitos e muitos anos, das Fábulas de Esopo. É uma daquelas traduções sem pai nem mãe que fazia a Europa-América, neste caso do inglês!, e é quase impossível encontrar similitudes com outras traduções tanto variam entre si, algumas com o dobro do texto de Esopo, outras com “moralidade” diferente, por aí adiante. Mas não tem importância para o caso, a “fábula” está lá.

Esopo parece ter tido uma vida turbulenta, com fama de ladrão, e acabou executado, segundo Heródoto, sem razão. Mas as suas fábulas, feitas no tempo em que os animais falavam, deviam ser leitura obrigatória para todas as pessoas que lidam com a coisa pública, ou melhor, com o poder. Sejam “da situação”, sejam da oposição, sejam gestores públicos ou estejam à frente de poderosas empresas, porque o poder, real, duro, de mando, não está apenas nos “políticos”– aliás, muitas vezes não está de todo a não ser por ilusão. Esopo também explica porquê.

Nestes tempos de radicalização e agressividade, em que o Governo faz asneiras sobre asneiras com a sua corte de spin doctors inúteis, e a oposição, que pretende chegar ao governo, está irresponsavelmente a fazer a cama de espinhos em que se irá deitar, vale a pena ler Esopo. Todo. Durante milénios as suas fábulas eram ensinadas nas escolas, eram uma leitura popular para todos os que sabiam ler, e, vindas da oralidade e regressadas à oralidade, eram, as mais famosas, muito conhecidas. Não havia escritor, dramaturgo, orador, político, padre laico, professor que não as conhecesse como “histórias”, porque faziam parte da cultura geral que qualquer pessoa que se pretendia “culta” devia ter. Até que nas últimas décadas a ideia de uma cultura geral entrou em decadência e não foi apenas uma mudança de paradigma, como os legitimadores da nova ignorância propalam, para aceitar uma espécie de Realpolitik dessa mesma ignorância.

Aqui vai uma fábula de Esopo sobre um “falcão” e um “rouxinol” dedicada aos predadores que por aí andam muito contentes a distribuir gasolina, e aos irresponsáveis que os ajudam “a gastar” a democracia e atacar a liberdade:

Foto : O Falcão e o Rouxinol Ilustração de Ernest Henry Griset (1844-1907)

0 falcão e o rouxinol

Um dia, um falcão voou até um ramo para espreitar uns coelhos lá em baixo, mas encontrou um ninho de rouxinóis na árvore. Estava prestes a comê-los, quando a mãe rouxinol regressou e lhe pediu que lhes poupasse a vida.

“Muito bem”, disse o falcão. “Canta-me uma canção e, se for boa, eu poupo-lhes a vida.” Estremecendo, o rouxinol cantou para o falcão, mas, quando acabou, este tornou a agarrar nos passarinhos. “Não foi lá muito boa”, disse ele, e preparou-se para devorar os rouxinóis. Neste momento, uma seta voou e trespassou o coração do falcão, que caiu morto no chão.

Moral

Os que andam à caça dos outros devem lembrar-se de que também podem ser caçados.

Não são precisas muitas palavras, toda a gente percebe do que é que se trata menos os falcões.

O autor é colunista do PÚBLICO

Historiador

Tópicos: OPINIÃO   DEMOCRACIA   LITERATURA   CULTURA    MEDIA    GOVERNO    PARTIDOS POLÍTICOS

Nenhum comentário: