Em tempos publiquei um livro
- “Permanência em fabulário de
mudança” -
Que José Pacheco Pereira
desconhecerá,
Indiferente naturalmente
A leituras de concidadãos ignorados,
Por não serem os consagrados
No tablado nacional,
Ou por não serem já passados,
Mergulhados
Nesse conforto banal
Do sono da eternidade
Sono que não deixa sombra
E por isso os pode elevar
Sem descrédito, por seu mérito,
A um alto padrão consensual,
Na classificação nacional,
- E quem sabe se universal.
Por isso espero, mas sem prazer,
Que depois do meu passamento,
O meu fabulário venha a merecer
O apoio indispensável
Dos Pereiras de gabarito então,
Sem muito atrito.
Já agora vou transpor
Para, em caso de segunda edição,
- Post-mortem, naturalmente -
Digo-o sem compaixão
De mim - muito diferentemente
Do nosso Cesário Verde,
Que disse tê-la de si, lembrando,
Como justificação da sua emoção,
O professor de Latim,
Pelas esquinas pedindo esmola
Eterno, calvo, sem repouso e velho,
À chuva e ao vento
E ao sol do seu viver
Sem alento -
Mas isso era antigamente,
Porque hoje
Já quase não os há -
- Professores de Latim, digo - por cá…
- “Para
o caso da tal segunda edição”
- Repito, pois tergiversei
E me arrastei distraidamente -
O livro seja acrescido
Desta fábula hoje forjada
Com muito ou pouco alarido
- Mais certamente, nenhum,
Que o silêncio é mais conforme
Como acabei de exprimir -
Mas baseada
No mesmo prazer de ler
Que Pacheco Pereira defende
No contexto do seu texto.
Eis a fábula reconhecida
Que a Internet traduz
E P. P. esquematiza
E moraliza
E eu ponho em versalhada
Próxima da prosa criada
Em tradução encontrada
Na Internet actual
Da nossa conveniência,
- Em esclarecimento, afinal,
Bem prestável e amável,
Mau grado ser, ao que se diz,
Não tanto assim confiável
(O que nem sempre condiz
Com a verdade insofismável)
E à qual, pelo contrário,
Deveremos gratos ser.
Eis a fábula em questão
Da minha tradução do texto
Da Internet extraído:
«Numa
manhã um Falcão
Apanhou
um ninho
De
rouxinóis pequeninos
E
quis matá-los.
Com
brandura e suplicante
A
mãe Rouxinol rogou
Que
os não matasse e em troca
Prestar-lhe-ia
serviço
Em
cada dia do ano.
Concordou
o Falcão e quis ouvir
O
cantar dessa mãe tão aterrada
Que
ali mesmo entoou,
O seu
canto de assustada.
Mas
o Falcão descontente
Começou
logo a comê-los
Em
represália impudente
Contra
um canto desprezível.
Porém
o caçador lançou-lhe um laço
Com
que o arrastou e o prendeu
Sem
esforço nem embaraço
E assim
o castigou.»
A moral da fábula não a dá Esopo
Mas fornece-a P. Pereira,
Adepto da ironia contra quem,
Bem ou mal armadilhado,
Vai buscar lã mas sai tosquiado.
Diz ele sem ser em verso
Nem bem nem mal amanhado
Que a fábula é dedicada
Aos predadores contentes
Que distribuem “gasolina”
- Julgo que entre parênteses
Por ser figura de estilo -
E mais aos vários ajudantes
No desgaste da democracia
- Hoje-em-dia -
Pelo ataque à liberdade
Que fazem com acuidade:
Julgo que se
refere
Aos destruidores
da Ucrânia
Mas não tenho disso
a certeza,
Já que por cá
também há
Como lá, más
fadas, ou seja:
Eles, os tais
atacantes,
Distribuem as
benesses,
Em vez das russas
batalhas,
Mas retiram os poderes,
Com a redução
Da população
A uma
idiossincrasia
De mendicidade e
insegurança
Na falta de
consciência
Sobre a
verdadeira dignidade
De uma real
Humanidade
Apoiada em
esforço e saber
Com a ética por
companhia…
O que os clássicos nos dizem sobre os
que andam à caça dos outros
Aqui vai uma fábula dedicada aos predadores que por aí
andam muito contentes a distribuir gasolina, e aos irresponsáveis que os ajudam
a “gastar” a democracia e atacar a liberdade.
JOSÉ
PACHECO PEREIRA PÚBLICO, 4 de Fevereiro de 2023,
6:46
Todas as semanas passam pelas minhas mãos muitas
centenas de livros, quando faço a triagem das entradas para a
Biblioteca/Arquivo Ephemera. Já para prevenir as más-línguas, eu disse “passam
pelas minhas mãos” e não que os li. Esta semana entrou uma biblioteca muito
rica em livros clássicos, literatura e filosofia, em português e francês,
muitas vezes bilingues. E eu disse aos meus amigos que me estavam a ajudar:
“Não me deixem abrir os livros, porque senão fico a lê-los.”
Hoje, a maioria das pessoas,
principalmente os mais novos, num conceito de “novos” semelhante ao Konsomol
soviético, não faz a mínima ideia do mundo absolutamente magnífico que está lá
dentro. Há nos clássicos greco-latinos uma qualidade lustral, aqueles homens estavam
muitas vezes a escrever sobre eventos, pessoas, sentimentos, ideias, problemas,
pela primeira vez, que nós saibamos. Há uma frescura única nesses textos,
fábulas, poemas, histórias, biografias, ensaios, muitas vezes fragmentados pelo
tempo, que não se compara a nada escrito depois.
Mas quando eu pedi que me controlassem, e em bom rigor
depois, continuei a ler. Abre-se o livro e as coisas começam logo pelas
primeiras palavras, e fica-se preso. Há muitas vezes anacronismos que ensinam
muito. Por exemplo, Plutarco na sua biografia de Demóstenes começa citando um
texto atribuído a Eurípedes, que afirma que “a primeira condição de felicidade é ter nascido numa cidade célebre”. Hoje ninguém diria isto,
embora não seja inteiramente mentira. Plutarco contesta: é “absolutamente indiferente ter nascido numa
pátria pobre e obscura ou ter uma mãe feia e baixa”. Parecem trivia, são trivia e são muito mais do que trivia.
Apareceu-me então a edição que eu tinha lido, há
muitos e muitos anos, das Fábulas
de Esopo. É uma daquelas traduções sem pai nem mãe que fazia a
Europa-América, neste caso do inglês!, e é quase impossível encontrar
similitudes com outras traduções tanto variam entre si, algumas com o dobro do
texto de Esopo, outras com “moralidade” diferente, por aí adiante. Mas não tem
importância para o caso, a “fábula” está lá.
Esopo parece ter tido uma vida turbulenta, com fama de
ladrão, e acabou executado, segundo Heródoto, sem razão. Mas as suas fábulas,
feitas no tempo em que os animais falavam, deviam ser leitura obrigatória para
todas as pessoas que lidam com a coisa pública, ou melhor, com o poder.
Sejam “da situação”, sejam da oposição, sejam gestores públicos ou estejam à
frente de poderosas empresas, porque o poder, real, duro, de mando, não está
apenas nos “políticos”– aliás, muitas vezes não está de todo a não ser por
ilusão. Esopo também explica porquê.
Nestes tempos de radicalização e agressividade, em que
o Governo faz asneiras sobre asneiras com a sua corte de spin doctors inúteis, e a oposição,
que pretende chegar ao governo, está irresponsavelmente a fazer a cama de
espinhos em que se irá deitar, vale a pena ler Esopo. Todo. Durante milénios as suas
fábulas eram ensinadas nas escolas, eram uma leitura popular para todos os que
sabiam ler, e, vindas da oralidade e regressadas à oralidade, eram, as mais
famosas, muito conhecidas. Não havia escritor,
dramaturgo, orador, político, padre laico, professor que não as conhecesse como
“histórias”, porque faziam parte da cultura geral que qualquer pessoa que se
pretendia “culta” devia ter. Até que nas últimas décadas a ideia de uma
cultura geral entrou em decadência e não foi apenas uma mudança de paradigma,
como os legitimadores da nova ignorância propalam, para aceitar uma espécie de Realpolitik dessa mesma ignorância.
Aqui vai uma fábula de Esopo sobre um “falcão” e um
“rouxinol” dedicada aos predadores que por aí andam muito contentes a
distribuir gasolina, e aos irresponsáveis que os ajudam “a gastar” a democracia
e atacar a liberdade:
Foto : O Falcão e o Rouxinol Ilustração de Ernest Henry
Griset (1844-1907)
0 falcão e o rouxinol
Um dia, um
falcão voou até um ramo para espreitar uns coelhos lá em baixo, mas encontrou
um ninho de rouxinóis na árvore. Estava prestes a comê-los, quando a mãe
rouxinol regressou e lhe pediu que lhes poupasse a vida.
“Muito bem”,
disse o falcão. “Canta-me uma canção e, se for boa, eu poupo-lhes a vida.”
Estremecendo, o rouxinol cantou para o falcão, mas, quando acabou, este tornou
a agarrar nos passarinhos. “Não foi lá muito boa”, disse ele, e preparou-se
para devorar os rouxinóis. Neste momento, uma seta voou e trespassou o coração
do falcão, que caiu morto no chão.
Moral
Os que andam à caça dos
outros devem lembrar-se de que também podem ser caçados.
Não são precisas muitas palavras, toda a gente percebe
do que é que se trata menos os falcões.
O autor é colunista do PÚBLICO
Historiador
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