O texto de Alberto Gonçalves. Todavia,
este protelar da legalização da eutanásia deve-se à inteligência astuciosa de
Marcelo Rebelo de Sousa, e por isso fico-lhe grata, conquanto não creia que ele ganhe neste braço
de ferro com os inteligentes defensores da proposta artificiosa. Criminosa por
conta alheia.
A doutrina Marcelo: quanto pior, melhor
À revelia do buraco escuro em que os
portugueses se afundam, a única preocupação do prof. Marcelo é a
“estabilidade”, leia-se a fobia dele a incómodos pessoais e ao desamor das
massas.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 04
fev. 2023, 00:23
Enquanto
chefe de Estado, o prof. Marcelo costuma dividir-se entre dois tipos de
intervenções públicas. A primeira é a que corresponde às corriqueiras
obrigações do cargo (desde que o cargo é ocupado por ele, note-se): viajar
ao estrangeiro, conviver com líderes corruptos e autocráticos, posar para
“selfies”, despir-se à frente das câmaras de televisão, nadar no oceano que se
puser a jeito, assistir a jogos da bola, analisar jogos da bola, etc. O segundo
tipo de intervenções são as que o prof. Marcelo aproveita para dizer coisas tão
escabrosas que uma pessoa ouve aquilo e fica a pensar se realmente ouviu
aquilo.
A
abordagem escabrosa acontece sempre que, confrontado com assuntos sérios e
susceptíveis de lhe beliscarem a popularidade, Sua Excelência não se limita
a despachar os assuntos com uma frase que é um monumento ao narcisismo e ao
desinteresse: “É preciso apurar responsabilidades, doa a quem doer”.
Aconteceu, por exemplo, a propósito dos abusos sexuais na Igreja, quando o
prof. Marcelo considerou que 424 testemunhos não eram um número
“particularmente elevado”. E quando pediu que esquecêssemos a questão dos direitos
humanos no Qatar para nos concentrarmos na selecção de futebol. E quando, em
2017, resolveu a tragédia de Pedrógão em poucos minutos, mediante a lendária
sentença: “O que se fez foi o máximo que se poderia ter feito”.
Na
passada terça-feira, o prof. Marcelo voltou a demonstrar a sua portentosa
incapacidade para avaliar as situações – ou a desastrada habilidade para fugir
delas. Perguntado por jornalistas sobre a profusão de trapalhadas
governamentais, respondeu: “É bom para a democracia haver exigência em antigos
e novos partidos políticos no sistema partidário, na comunicação social. O
contrário é que seria uma situação pantanosa. Mais vale ver se há problemas,
levantá-los, depois uns são, outros não são, e isso é uma democracia viva, a
ser uma democracia pantanosa”.
Se
percebi correctamente, um governo que se esfarela sob o peso de compadrios,
incompetência e desonestidade endémica é sintoma de uma democracia “viva”. E porque não dizer pujante? E porque não
dizer invejável? E porque não dizer gloriosa? Porque ainda há
quem tenha vergonha na cara, a vergonha de habitar um país em que, por meio
de anestesia e propaganda, os desastres são convertidos em proezas. “Pântano”,
a herança do eng. Guterres, hoje é favor. E saudade. Em qualquer lugar do
Ocidente, uma pequenina fracção das misérias perpetradas pela agremiação do dr.
Costa seria suficiente para, num ápice, derrubar a agremiação, o dr. Costa e as
últimas esperanças na reabilitação do sistema político. Em Portugal, o senhor
presidente da República manda-nos agradecer tamanha dádiva.
Toda
a gente suspeita que são as guerras internas no PS a estar na origem da súbita
“exigência”, leia-se a revelação diária dos casos e casinhos que exibem a
verdadeira natureza do partido. E toda a gente suspeita que, à revelia
do buraco escuro em que os portugueses se afundam, a única preocupação do prof.
Marcelo é a “estabilidade”, leia-se a fobia dele a incómodos pessoais e ao
desamor das massas. Porém, é um exercício útil fingir que o levamos a sério
e, até para expor o carácter medonho do seu raciocínio, levarmos o dito às
últimas consequências.
Assim,
se uma sucessão inédita de trafulhices lícitas ou ilícitas mostra que a
democracia está bem, uma quantidade maior de trafulhices mostrará que a
democracia está óptima. É pois
desejável que venham novas e mais arrepiantes notícias dos desvarios no
governo, e que cada uma seja encarada como sinal de maturidade civilizacional.
Já depois das afirmações do prof. Marcelo, aprendemos que o pai de uma ministra
se fazia passar por advogado e que, talvez por isso, acabou indicado pelo PS
para o Conselho do Ministério Público. É positivo, mas pode melhorar, quiçá se
o pai da senhora tivesse currículo no narcotráfico e a senhora, que afinal se
fazia passar por ministra, fosse nomeada PGR.
Em
prol da democracia, tudo pode ser melhorado, incluindo a história do
ex-ministro que aliviou os contribuintes em 3.200 milhões de euros e se esquece
no WhatsApp de indemnizações de 500 mil (o alívio podia ter sido de 15.000
milhões, e a aplicação o TikTok). E imaginem o fulgor democrático se, em vez
de uma dúzia de governantes envolvidos em branqueamento de capitais, fuga ao
fisco ou fraude qualificada houvesse três dúzias metidos em culto satânico e
homicida. Mal surgissem suspeitas de canibalismo no “executivo”, a democracia
atingia o nirvana.
O esforço de terça-feira do prof.
Marcelo, a que por cansaço ou banalização ninguém ligou, pretendia varrer as
polémicas passadas e evitar as futuras, de modo a que desistam de o interrogar
acerca da dissolução da AR e ele possa ir a banhos em paz. Não sei se
funcionou. Sei que, ao decretar que a putrefacção do regime é marca do
respectivo vigor, o prof. Marcelo está a tratar a democracia com o cinismo
com que as peixeiras tratam a sardinha, que juram “vivinha” após ser capturada
e sofrer barbaridades antes de cair na grelha. Há muito que o prof. Marcelo ajuda a preparar as brasas. E, ao
contrário da sardinha, ele regressa ao mar.
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