segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O nosso era o “Bazar Vasco da Gama”


Julgo que só uma ou duas vezes, era eu adolescente, fui ao mercado do Xipamanine, com um tio meu e padrinho, que embora morasse na Baixa, onde se situava o “Vasco da Gama” dos nossos hábitos diários, me levou lá, não sei se em satisfação da minha curiosidade, mas esta referência do “economista” H. S. F. veio despertar-me as memórias desse espaço ordeiro e simpático, onde - dizia-se - “tudo era mais barato”. É claro que o Dr. Salles não se limita à questão económica, que o estimula para as ironias contra o processo inflacionário destes tempos por cá, sem Xipamanines de vendedores e compradores menos ávidos, e a sua lição economicista vem naturalmente acompanhada da palmatoada crítica que os tempos de hoje merecem, num mundo cada vez mais ansioso e calculista. Mas agradeço, sobretudo, ao Dr. Salles a evocação de um espaço que formava um bairro – bairro do caniço - e tinha um mercado específico bem conhecido então, a que, certamente, não substituíram o nome, como aconteceu à cidade que o continha – minha cidade natal e dos meus três filhos mais novos – e ao tal bazar, hoje elegantemente apelidado de “Mercado Central do Maputo”, e que a minha mãe costumava gabar pela sua fartura.

DOS PREÇOS - 2

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 19.02.23

Xipamanine era uma praça na periferia urbana de Lourenço Marques. Era ali a fronteira entre a cidade de cimento e o caniço, teria sido um mercado municipal, mas os autarcas devem ter percebido que era mais importante dar largas à economia informal do que espartilhá-la em ridículas, entorpecedoras e quiçá revoltantes licenças e taxas de importância nula na tesouraria municipal. Desde toda a variedade de produtos oriundos das machambas (hortas) circundantes da cidade às especiarias de paladares e aromas exóticos ali trazidos pelos indianos que também vendiam linha de coser a metro e negociavam em câmbios, aquele era o local que todos tínhamos de visitar se queríamos começar a conhecer Moçambique. Não me lembro de ouvir referências a problemas de segurança: na generalidade, o moçambicano é civilizado.

Em Xipamanine reinava a economia informal, aquela não era uma «feira da ladra» nem «Roque Santeiro» onde girassem produtos roubados. Ali, sim, vigoravam os preços verdadeiros, formados sem taxas ou subsídios nem influenciados por «fake news». Mas, como na generalidade dos mercados primitivos, quem tudo definia era a oferta e, mesmo assim, sem orquestração.

Era assim até há 50 anos. Espero que assim continue porque a cidade de Maputo tem tido à sua frente esse verdadeiro sábio que é Eneias Dias Comiche, economista que honra a Universidade do Porto.

Na sua rude dimensão física, a confusão quântica dos mercados primitivos é sinónima de caos e, contudo, foi a partir deles que emergiu a economia livre, ou seja, aquela em que livremente se encontram a oferta e a procura. E aí está ela, a grande diferença entre o primitivismo e a modernidade, a transparência no método de formação dos preços.

Diz-se que um mercado é transparente quando nele se confrontam a oferta e a procura em total liberdade, os agentes actuam sob anonimato e todos os lances são do conhecimento púbico.

A nossa antiquíssima tradição mercantil levou-nos ao baptismo dos dias da semana com a numeração das feiras que, no entanto, se fossilizaram sob o mando da procura com total desprezo pela oferta. Creio que é nesta realidade que assenta parte substancial da inércia secular ao nosso desenvolvimento.

(continua)

Fevereiro de 2023

Henrique Salles da Fonseca

Tags: economia portuguesa

COMENTÁRIOS:

Rui Bravo Martins 20.02.2023 12:44: Texto interessantíssimo, tanto do ponto de vista económico, como histórico, e em especial em homenagem de um povo pouco habituado a que lhe façam elogios, e cada vez mais cobiçado por organizações bem pouco recomendáveis. Cumprimentos Rui Bravo Martins

 

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