sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Uma história bem contada


E o enorme prazer da sua leitura.

Os dois líderes que salvaram a Europa

Joe Biden e Volodymyr Zelensky simbolizam hoje o pior dos pesadelos do Presidente russo.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 24/2/23

1. Um ano depois do início da invasão da Ucrânia, é legítimo perguntar se Vladimir Putin teria tomado hoje a mesma decisão. A resposta mais forte e simbólica a esta pergunta foi dada no dia 20 de Fevereiro, numa manhã de sol em Kiev, quando o mundo inteiro viu uma imagem tão inesperada quanto extraordinária – o Presidente Joe Biden, com os seus óculos de aviador, e o Presidente Zelensky, no seu camuflado, caminhando descontraidamente nas ruas de Kiev.

Os dois homens simbolizam o pior dos pesadelos do Presidente russo: o fracasso de uma “operação militar especial” que deveria ter submetido a Ucrânia em meia dúzia de semanas, eliminado o Governo de Kiev e posto fim à “deriva” democrática e europeia de um povo que, na sua visão distorcida da História, nem sequer tem o direito de ser uma nação. Falhou todos os seus cálculos iniciais. Que as tropas russas não encontrariam resistência. Que as divisões na União Europeia e na NATO paralisariam as duas organizações. Que os Estados Unidos não iriam dispersar o seu poder e a sua força na Europa. Que a ofensiva imperial de Moscovo provaria aos olhos do mundo a fraqueza e a decadência irreversível do Ocidente. Resta-lhe a destruição da Ucrânia, somando crimes de guerra, enquanto destrói as vidas de milhares e milhares de soldados russos com uma indiferença arrepiante.

No dia 21, no Kremlin, à distância de segurança de uma plateia rígida e taciturna, Putin não tinha uma única vitória para apresentar. Falou duas horas. Recentrou os objectivos da guerra no Donbass. Disse que a Ucrânia era apenas o aríete de uma guerra da NATO e dos Estados Unidos para “destruir” a Rússia, obrigando-a a defender-se. Elaborou longamente sobre a missão salvífica da Rússia para regenerar os valores cristãos de uma Europa decadente e amoral. Tirou da cartola a “suspensão” do Novo Acordo START (foi assinado em Lisboa, na cimeira da NATO de 2010, por Obama e Medvedev), recorrendo à última arma que lhe resta: espalhar o medo de um conflito nuclear. Nada de novo, portanto, na frente oriental, a não ser a derrota estratégica de Putin e o discurso delirante com que tenta apagá-la.

2. Um ano de guerra permite também algumas conclusões sobre a frente ocidental, onde há muita coisa de novo, graças, em primeiro lugar, à resistência heróica e à força moral do povo ucraniano.

Sobre os Estados Unidos, a presença e o discurso de Biden em Varsóvia oferecem uma imagem bastante fiel da realidade. O Presidente americano falou em nome do mundo livre com a legitimidade de ter conseguido devolver ao seu país a liderança na defesa da ordem internacional liberal que edificou no pós-guerra. Foi o primeiro Presidente americano a deslocar-se a uma zona de guerra onde não há tropas americanas. Para ele, menos do que isso não era suficiente. Em Kiev e em Varsóvia, comprometeu-se com a vitória da Ucrânia, mas disse também que a América não quer destruir a Rússia.

Biden tem de combater noutra frente, igualmente decisiva para a Europa e para o mundo: devolver à democracia americana o seu brilho e a sua influência. Por isso, a palavra mais repetida no seu discurso foi “liberdade”. Por isso, desafiou os americanos a continuar a apoiar a Ucrânia. Por isso, lembrou-lhes que a vitória da Ucrânia vai determinar, em enorme medida, o mundo em que vão viver os seus (e os nossos) filhos e netos. Apelou ao velho orgulho da nação excepcional. Ao ar livre, numa praça pejada de gente, brincou com um grupo de crianças com a naturalidade de um avô, recebeu a ovação de um país cuja história foi também atravessada pela guerra entre impérios, que ficou “do lado errado da História” depois dos Acordos de Ialta – o primeiro a rebelar-se contra o regime soviético. Que está, de novo, na linha da frente do confronto com a Rússia e que não regateia o seu apoio à Ucrânia.

Em Varsóvia, Biden discursou num ambiente marcado pelas cores de três bandeiras: a ucraniana, a americana e a polaca. A ausência absoluta da bandeira azul da União Europeia foi gritante

3. A Polónia é, talvez, o melhor ponto de partida para olhar para a metade da frente ocidental que se chama Europa. Sabemos o que foi positivo e quase inesperado: a União Europeia não se dividiu e tem sido capaz de dar uma resposta cada vez mais forte à invasão russa da Ucrânia. Percebeu duas coisas fundamentais, que se recusou a ver durante demasiado tempo: que a Rússia era uma ameaça directa à sua segurança; que o mundo caminhava em sentido contrário aos seus desejos ou às suas ilusões. Confrontou-se com as suas próprias fraquezas: bastou-lhe imaginar o que teria acontecido sem os Estados Unidos. Valeu-lhe o exemplo heróico da resistência dos ucranianos. A brutalidade criminosa da guerra de Putin impede-a de baixar os braços. Percebeu que a NATO é a única garantia de defesa de que dispõe. Foi reagindo a este choque brutal de realidade. Compreendeu, finalmente, que Kiev tem de vencer esta guerra, também em nome dos seus valores e dos seus interesses. Falta-lhe ainda percorrer um longo caminho.

Em Varsóvia, Biden discursou num ambiente marcado pelas cores de três bandeiras: a ucraniana, a americana e a polaca. A ausência absoluta da bandeira azul da União Europeia foi gritante. Provavelmente, não teria acontecido a mesma coisa na esmagadora maioria das nações europeias que integram a União, incluindo aquelas cujos nove líderes da Europa Central e de Leste formam o Grupo de Bucareste, e que se reuniram com Joe Biden, em Varsóvia, antes do seu regresso a Washington. Estão na fronteira com a Rússia. Precisam do compromisso total dos Estados Unidos com a sua defesa. Ouviram durante demasiado tempo os países da Europa ocidental ignorarem os seus avisos sobre a ameaça russa. O Presidente polaco, Andrzej Duda​, que falou antes de Biden, enalteceu os laços inquebrantáveis com a América. Não pronunciou uma só vez o nome da União Europeia a que o seu país quis aderir, em 2004, e que foi essencial para consolidar a sua transição democrática e para o seu desenvolvimento económico. A deriva iliberal do Governo do PiS é um problema. O seu papel perante o conflito deu-lhe um novo peso na Europa, na NATO e em Washington.

4. Biden sabe quem são os seus principais interlocutores europeus: a Alemanha e a França. Mas reconhece quais são os aliados mais vulneráveis a qualquer tentação aventureira de Putin, agora ou no futuro. Foi, em primeiro lugar, para eles que reafirmou o compromisso “sagrado” da América com o Artigo 5.º do Tratado da Aliança Atlântica. Pelo contrário, um ano depois do início da guerra, os dois países mais poderosos da UE (ainda) não conseguiram convencer os seus parceiros do Grupo de Bucareste de que defendem os seus interesses vitais como defenderiam os seus. Não lideraram a Europa na sua maior crise desde o pós-guerra. Nem Emmanuel Macron nem Olaf Scholz conseguiram desempenhar essa missão.

Joe Biden tem conseguido preencher o vazio. Zelensky ofereceu-lhes – e a nós todos – o estímulo moral. Ursula von der Leyen tem encontrado as palavras e acções que fazem falta em cada momento. Mas falta à União construir um desígnio comum sobre o que quer ser no mundo que vai emergir desta guerra. Regressar ao passado passou a ser impossível.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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