quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Uma mulher arrojada


E honesta, Maria João Avillez, que se atreve a emitir uma opinião frontal sobre essa Igreja, que defenderá sempre, reconhecendo-a como Mãe Espiritual que foi, através dos tempos, desde os seus primórdios. Não frequento a Igreja, mas também A respeito, nos ensinamentos morais da sua orientação doutrinária, e amo a Bíblia, como manancial de espiritualidade e de materialidade – intemporais - que sempre apreciei ler, na odisseia romanceada desse povo bíblico, como nas suas expansões de subjectividade, profética ou outra, ou nos seus simbolismos miraculosos orientadores da fé dos povos, que lhe seguiram as crenças. O que me parece errado nas convenções católicas é o celibato imposto aos padres, tema de resto já veementemente abordado – e romanceado - por Alexandre Herculano, no seu “Eurico, o Presbítero”. Talvez o matrimónio sacerdotal obstasse a tanto desse vilipêndio de que só hoje – e por iniciativa do Vaticano – se está a tratar, com maior ou menor sinceridade ou hipocrisia, apesar do que tantas vezes tem transparecido mesmo entre personalidades laicas, de que o processo da Casa Pia foi um dos casos, que se arrastou, provando que tais infâmias são, contudo, possíveis, mesmo entre os com matrimónio estatuído. E conhecendo os casos dos povos cujos machos casam com crianças fêmeas, sem o mundo protestar, toda esta estridência, manifestada no único comentário posto pelo Observador, entre os 28 recebidos, provavelmente de estridência maior ainda contra MJA, me parece grotesca, no mundo perverso em que vivemos, de crimes contínuos. MJA revela, não solidariedade com o crime, mas solidariedade com a Igreja, a quem reconhece a dimensão humana, (mau grado os seus muitos erros de que a Inquisição foi prova cabal, igualmente) assumindo a sua posição com a frontalidade e a elegância expositiva de sempre. Maria João Avillez merece respeito, não ironia.

Nunca desistirei da Igreja  

  Apesar de tantas marés baixas ou negras a Igreja aí está e aqui continua, dois mil anos depois. Nunca desistirei dela. Não se confunda a grande floresta com árvores que é preciso arrancar.

MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 15 fev. 2023, 00:2427                    

1Estava prevenida mas logo minutos depois percebi que nunca teria havido prevenção possível. A manhã da passada segunda-feira foi uma das piores na minha vida e não só por motivos confessionais. Vivi-a sozinha, calhou, mas talvez fosse melhor assim. A convocação “daquela” memória que ocorreu no palco da Gulbenkian, não era partilhável. A sordidez não se conversa e menos se partilha. A Comissão encarregue do relatório sobre os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja contra menores à sua guarda não poupou detalhes, não escamoteou pormenores. Escancarou uma história. Tarde, acusam. Mais vale tarde: está contada. Mesmo que parcialmente. (Não vale a pena pensar que se encontrariam todas as vítimas ou que todas elas quisessem contar, e contar-se. Isso nunca ocorreria. Muitas delas preferiram sofrer solitariamente e silenciosamente este cume de vexame que nos autoriza a pensar como tudo foi – e lhes foi – ainda mais insuportavelmente doloroso.)

2Acredito no mea culpa – como belamente titulava o Público ontem – mesmo que tardio e insuficiente – porque talvez não haja “suficiência” que colmate o que ficamos a saber. E face ao que ficámos a saber, o pedido de desculpas não pode de todo ser meramente retórico como a própria hierarquia já o reconheceu. Palavras, leva-as o vento. Muita coisa se seguirá, nada voltará a ser o que foi pela simples razão de que é impossível que volte. Digo-o com a certeza possível que fundamento na consciencialização adquirida pela própria Igreja face a este tremor de terra (enganei-me ou ela própria ficou surpreendida com o grau do abalo?). Fundamento-a na sinceridade constrangida e aflita do mea culpa que ouvi da Igreja, indesligável da sua anunciada decisão de agir e intervir nas diversas frentes de batalha abertas pela revelação feita ao país e à comunidades de crentes e não crentes que somos. Intervindo drasticamente, celeremente. E de um ponto de vista agora confessional, fundamento-a no maior dos maiores valores cristãos que conheço que é o amor e em seu nome, a misericórdia. (Não foi por acaso, muito pelo contrário, que Pedro Stretch, presidente da Comissão Independente responsável por este estudo, terminou a sua intervenção na Gulbenkian citando uma carta de S. Paulo que tratava do amor). Acredito enfim que a terrível revelação que nos fizeram há dois dias será resolutamente apreendida como o ponto de partida para que amanhã seja imperativamente outro dia e não um caso meramente esclarecido através de um relatório entregue. Só uma coisa nos deve interpelar agora, crentes e não crentes: o consolo às vitimas através de um eloquente, nacional e generoso pedido de perdão, a certeza do afastamento célere dos prevaricadores, um cuidado e uma atenção sem limite face a ofensas à dignidade e à vida como as que ocorreram desde há décadas em Portugal. (Sim no mundo também, em todo o lado, mas eu não vivo “em todo lado”. Sou daqui).

Isto dito, deixo registo da minha recusa em entrar no circuitojá em alta velocidade – de sarcásticos cepticismos, antecipações catastróficas, oportunas descontextualizações sobre o que foi sabido e dito. A história já é obscenamente devastadora: não precisa da ajuda da má fá militante nem do serviço dos soldados da guerra contra a Igreja sempre disponíveis e logo em sentido. Contra a corrente? Paciência: estou mais que habituada a ser impopular, treino diariamente.

3A Igreja foi a primeira instituição social portuguesa a ter esta iniciativa. Saudemos isso. A nomear uma comissão, dar toda a liberdade de escolha de formação de uma equipa – e do resto – ao seu presidente Pedro Strech; disponibilizar-lhe os arquivos – gesto raríssimo entre nós – e financiá-la.

Louve-se a dignidade, retenha-se a seriedade do trabalho da Comissão.

Repito: insiste-se muito no “tarde e a más horas” da intervenção da Igreja. Não julgo que a diferença de quatro, cinco anos minorasse significativamente o flagelo e o desastre, antes lamento o círculo (ainda) por vezes semifechado onde a Igreja (ainda) se move, aconchegada entre paredes algumas opacas e os seus altos dignatários. Mais dentro que “em saída” como tanto pede Francisco, o Papa.

Reconhecendo tudo isso, trabalho há anos com a Igreja – em Lisboa e em Óbidos –, colaboro por vezes com a própria hierarquia nalgumas iniciativas. Nunca porém precisei de ser anticlerical e mesmo quando discordo e me preocupo, não quero vingar nada. Sabendo, reconhecendo, lamentando tantas e tantas marés baixas – algumas negras, como bem sabemos – a Igreja aí está e aqui continua, dois mil anos depois. Nunca desistirei dela. O que me deixa perplexa é que o desejo de vingança contra a instituição tenha por aí tanto êxito e que o insulto à sua hierarquia esteja diariamente emoldurado em glória. E ambos – vingança e insulto – mais que nunca na montra da media. Ampliados.

4Julgo que foram pelo menos quatro ou cinco vezes que se ouviu Daniel Sampaio anteontem na apresentação do relatório da Comissão na Gulbenkian, ter uma intervenção decisiva: com a autoridade e o conhecimento que lhe advém da profissão que exerce pediu: “olhem para o resto”. Ele não nomeou mas o resto é a doença da pedofilia a grassar em números avassaladores. Não já na Igreja (sector onde ocorre em muito menor percentagem) mas no seio da família, ou no desporto, para dar dois exemplos, infelizmente verdadeiros. Na entrevista que tive a honra de lhe fazer, no verão passado, o Papa Francisco depois de com rara veemência ter condenado a pedofilia na Igreja, foi de moto próprio direito ao “resto” do assunto. Fê-lo com detalhe, usou de tempo, foi quase lancinante ouvi-lo falar sobretudo da pedofilia no seio das famílias e no silêncio escondido que continua a envolvê-las.

A propósito disto mesmo e conscientes disto mesmo – conscientes do papel que também cabe ao Estado na atenção desse fenómeno perturbado e doentio – deixo duas breves notas que li algures de André Azevedo Alves e Bruno Cardoso Reis, ambos meus colegas nesta “casa”. Retive-as por apreciar a lucidez, a seriedade mas também a serenidade dos seus autores face ao momento que se vive:

Escrevia o André: (o trabalho apresentado pela Comissão nomeada pela Igreja) “deve ser o primeiro passo de um longo caminho a percorrer sobre abusos sexuais dentro e fora da igreja”. Sublinhado meu: dentro e fora da igreja.

E escrevia Bruno Cardoso Reis: “Seria sobretudo bom que o Estado seguisse este bom exemplo e organizasse o seu próprio inquérito ao fenómeno nas instituições do Estado com características semelhantes (internatos e escolas). E ainda a forma como o Estado lida e previne abusos na família que serão os mais frequentes”.

É longo o caminho a percorrer. Tanto caminho.

ABUSOS NA IGREJA   IGREJA CATÓLICA   RELIGIÃO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 28)

Pedro Calvão: Pois eu penso que o que é de estarrecer é ler algumas das reacções de quem defende que os casos de abusos sexuais na igreja católica não são mais do que um ataque exterior à mesma, de "esquerdalhas" e afins (no meu caso é um tiro na água, fica já claro). Explica muito, no entanto, do porquê do silêncio e da duração do mesmo sobre o tema. Para estas pessoas estes casos continuariam a ser tratados internamente na escuridão de uma sacristia, como muito provavelmente gostaria que assim fosse Manuel Linda e os bispos que ainda movem nos bastidores toda e qualquer influência que ainda possam ter para esconder esta podridão, custe o que custar. É também uma moral que apodreceu e não deu por isso a que avalia o fenómeno através de lentes estatísticas ou jurídicas. O drama é humano, são pessoas com vidas arruinadas, e não ocorrências numa amostra ou sujeitos semi-públicos. E a dimensão é avassaladora. Isto não ocorreu apenas em Portugal, foi global e começou a ser revelado já há muito tempo e em países onde os casos fazem os que esta semana ficámos a conhecer parecerem suaves passeios num jardim. Na Irlanda por exemplo foram hediondos e a igreja era igualmente a católica. Quem fica agora chocado por ter sido escancarada a porta de alguns dos casos em Portugal esteve a dormir desde que o fenómeno começou a ser revelado lá fora? Achavam mesmo que a igreja católica em Portugal era diferente?! A Maria João Avilez consegue continuar a defender que a igreja é "a voz dos que não têm voz"? Alguma vez foi?

 


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