São tais histórias de estarrecer, hoje, com
as suas monstruosidades reais, jamais concebidas nos tempos em que ríamos com
as incompreensões de Obélix a respeito dos Romanos. Não, os jovens hoje não se
divertirão mais com as tiradas de Obélix “Ils
sont fous, ces Romains”, uns anjinhos estes, se comparados com as ignomínias
reais praticadas nestes nossos tempos indecorosos, desviados da sanidade física
e mental. Como sempre, JAIME NOGUEIRA PINTO agarra o touro pelos cornos. Bem
haja.
A guerra dos géneros e outras histórias de pasmar
Com o veto do governo inglês à nova lei de “autodeterminação
da identidade e expressão de género” aprovada pelos escoceses, a Guerra
dos Géneros tornou-se uma frente de batalha.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR,11 fev.
2023, 00:1819
Gender
Wars: the Union’s new battle line é o título de capa do Spectator de 21 de
Janeiro. Com a aprovação
pelo parlamento de Edimburgo e o veto do governo inglês da nova lei de
“autodeterminação da identidade e expressão de género”, que agiliza a mudança
de identidade a pedido para maiores de 16 anos, a Guerra dos Géneros tornou-se
a nova frente de batalha no Reino Unido.
Uma frente traçada pela Chefe do Governo escocês,
Nicola Sturgeon, que assim desafia a união do Reino – e assegura um eventual
futuro posto de trabalho nas Nações Unidas como paladina de todos os arco-íris. Mas a batalha ateada por Sturgeon parece também
estar a dividir unionistas, separatistas, trabalhistas, conservadores,
feministas e esquerdas transformistas e os próprios escoceses, cuja população
se opõe maioritariamente à lei (2/3 contra 1/3, segundo o Spectator).
A lei, diz Sturgeon, limita-se
a “desburocratizar” o acesso a um
Gender Recognition Certificate
de todo o cidadão que pretenda autodeterminar a sua identidade. Acesso
que passa a ser facultado também a adolescentes a partir dos 16 anos – sem qualquer
parecer médico, diagnóstico de disforia de género ou o que seja e fora da
tutela parental. Os únicos requisitos são agora a vontade de
autodeterminação identitária e três meses de experiência – ou, mais
propriamente, três meses de “transição social de expressão de género”, em que
os candidatos ou candidatas deverão
viver de acordo com a identidade pretendida.
Posto
isto e a onda de protestos que gerou, o governo do Reino Unido
acabou por exercer, pela primeira vez, o direito de veto; com Nicola Sturgeon a
qualificar o acto do Primeiro-Ministro Rishi Sunak como um ultrajante ataque
frontal ao Parlamento escocês.
Sunak terá estado tentado a ceder e terá sido até
aconselhado a “não morder o isco” da escocesa, mas, entretanto, grupos
de feministas, escoceses e ingleses,
mobilizaram-se, argumentando que a lei permitiria que “predadores
masculinos se declarassem mulheres para ganharem acesso a locais destinados a
proteger as mulheres da violência masculina”; e duas mulheres do Gabinete Sunak, a Ministra da Administração
Interna, Suella Braverman, e a Ministra da Igualdade, Kemi Badenoch, fizeram
pressão para que o Primeiro-ministro vetasse a lei. Se a lei passasse, a Escócia e a Inglaterra teriam
duas definições legais de sexo totalmente diferentes, o que impossibilitaria,
dos dois lados da fronteira, a exclusão legal de “male-bodied trans-women” de
espaços exclusivamente femininos, como celas prisionais, refúgios para vítimas
de abuso sexual ou grupos de apoio a vítimas de violência doméstica.
Era uma vez na América
Têm,
de facto, ocorrido alguns incidentes com “male-bodied trans-women”, sobretudo na América, a terra de todas as
oportunidades. Em Abril de
2022, duas mulheres, detidas numa prisão feminina em Clinton, New Jersey, ficaram
grávidas depois de terem tido “consensual sex with a transgender inmate”.
A
“transgender inmate” responsável pela proeza, de seu self-ID Demi Minor, estava
condenada a 30 anos de cadeia por homicídio e estava em lista de espera para cirurgia
correctiva do sexo que lhe fora “erradamente atribuído à nascença”.
Entretanto, antes da correcção cirúrgica, a natureza, a
irrelevante biologia, uma súbita crise de identidade ou uma opção não-binária
pelo melhor de dois mundos tomaram o seu curso.
As
mulheres-trans – male-bodied ou female-bodied – passaram a ser admitidas nos
estabelecimentos prisionais de New Jersey a partir de 2021 por uma acção
judicial da American Civil Liberties Union, na sequência de queixas de assédio
e de abuso sexual por parte de uma mulher transgender a cumprir pena
numa prisão de homens. Houve, entretanto, outras queixas de outras reclusas
contra a presença em penitenciárias femininas de reclusas de identidade
autodeterminada, mas não terão sido tão atentamente ouvidas.
Demi
Minor, a responsável pelas gravidezes das suas companheiras de género (que não
de sexo), foi depois transferida para a Garden State Youth Correctional
Facility, uma prisão para jovens adultos. Mas ser ali a única mulher (segundo o género),
também lhe trouxe problemas de agressão e maus tratos por parte dos seus
companheiros de sexo biológico; tinha também já estado brevemente na New Jersey
State Prison, onde fora tratada por “he” e por “him”, agressão verbal de que se
queixara.
Até agora, esta e outras histórias aconteciam sobretudo na América,
terra secularmente pródiga em promessas de felicidade mediante
experimentalismos sociais conduzidos por líderes “iluminados”, terra rica em
delirantes seitas e em puritanismos persecutórios, outrora religiosos e
acientíficos, agora ideológicos e igualmente acientíficos, ou de cientificidade
truncada; terra, enfim talhada para ser o paraíso dos Woke. O problema é que, em círculos e instituições influentes
– nas academias, nos media, em instituições ligadas às Forças Armadas – estes
delírios “genéricos” com as suas infinitas especificações e ramificações e com
os seus imprevisíveis (e previsíveis) efeitos colaterais, querem agora
oficializar-se.
Admirável Mundo Novo
Desde
que entrou em vigor a “legislação avançada”
contra o “determinismo biológico”
– forçada por vanguardas esclarecidas perante a temerosa
ou veneradora permissividade de alguns e o alheamento de quase todos – multiplicaram-se os embates com a realidade e
as queixas. É o que vem acontecendo no Reino Unido,
sobre a pressão de lobbies como o Stonewall Equality Limited, fundado em 1989. O Stonewall é o mais importante colectivo LGBT
europeu e o nome inspira-se no famoso motim de 1969, em Greenwich Village, Nova
Iorque, onde houve sérios confrontos entre a polícia nova-iorquina e
homossexuais no Stonewall In; isto num tempo em que as várias
orientações sexuais ainda não questionavam a realidade biológica.
No Reino Unido, a partir do Equality
Act de 2010, que determina que as pessoas trans podem usar “gender separated
spaces” de acordo com a sua identidade de escolha, as queixas têm vindo a
acumular-se. O
mesmo já acontecera numa série de Estados norte-americanos – quinze, ao todo –
que, para obstruir a acção de “sexual predators”, optaram por seguir uma
disposição da Carolina do Norte de 2016, aprovada pelos representantes da
assembleia legislativa local, republicanos e democratas. Entraram então em
vigor as chamadas “bathroom bills”, que obrigam as pessoas trans a frequentar
as casas-de-banho públicas correspondentes ao seu sexo de nascença.
No mundo complexo a que a nova
fé da ideologia de género abriu portas, entram também em choque várias formas
de fundamentalismo e radicalidade. Surgem, como sempre surgem em todas as
comunidades radicais, competições pela ortodoxia e pela pureza e a
correspondente punição de heterodoxos, naquilo que em espaços extremos e não
hierarquizados é sempre a luta pela hegemonia e pela definição da “verdade”. E
depois, há os aproveitamentos políticos de tudo isto, como o de Nicola
Sturgeon.
No Reino Unido o confronto entre as feministas “gender critical” e
os partidários dos “gender-based rights” há muito que se faz ouvir. Em 2003, Sheila Jeffreys, em Unpacking
Queer Politics, acusava as mulheres transsexuais de, na sua obsessão de se
transformarem em homens, mais não fazerem do que capitular perante a misoginia. Jeffreys é uma velha feminista, uma espécie
de Karl Marx do feminismo, com uma larga obra em que se esforça por fazer
equivaler a “opressão exercida pelos homens sobre as mulheres” à opressão
exercida pelos capitalistas sobre os operários, na narrativa marxista. Iniciou mesmo uma campanha crítica do transgendering,
afirmando no seu livro Gender Hurts que as mulheres que procuravam tornar-se
homens eram, no fundo, vítimas de um sistema profundamente sexista. Quanto aos
homens que queriam ser mulheres, fá-lo-iam apenas por “razões de fetichismo
sexual”.
No
combate político concreto, Kemi Badenoch, a actual Ministra britânica para a
Igualdade e uma das candidatas à liderança conservadora que ficou pelo caminho,
além de ter pressionado o Primeiro-ministro Rishi Sunak para que vetasse a lei aprovada pelo parlamento de
Edimburgo, tem vindo a opor-se às polémicas “gender-mental toilets” e a chamar
a atenção para as obstruções à livre expressão em temas como raça, identidade,
ou direitos LGBT. Badenoch, que é de origem nigeriana e foi uma das dirigentes
tory que se demitiram depois do escândalo provocado pela nomeação por Boris
Johnson de Christoffer Pincher (um dirigente implicado em casos de assédio
homossexual), foi alvo de uma intensa campanha de demonização, em que era
acusada de apoiar o grupo LGB Alliance, que, diziam os acusadores, conspirava
com grupos conservadores críticos da existência de clubes LGBT nas escolas.
Percebe-se que a britânica Kemi
Badenoch seja odiada pelos Woke, mas por mais que a escocesa Nicola
Sturgeon tenha passado a ser adorada no mundo da autodeterminação identitária,
o mesmo não tem acontecido no mundo aquém arco-íris, onde a incompreensão
perante este seu insistente abraço ao novo despertar é cada vez maior, até
dentro do seu próprio Partido Nacional Escocês.
Independentemente
dos reais dramas humanos, das reais disforias de género e do real desnorte
generalizado que todos estes enredos, casos e lutas também indiciam e revelam,
a agilização do processo de “autodefinição de identidade de
género”, extensível a maiores de 16 anos,
ainda adolescentes, não deixa de ser uma promessa de felicidade fácil, com a
proposta de um caminho que será tudo menos fácil: o caminho da autodeterminação
ou Self-ID. Um caminho que sugere que o fim do descontentamento,
da insatisfação, da inadaptação, da procura, pode estar à distância de um
certificado ou de um punhado de irreversíveis tratamentos hormonais e
agressivas cirurgias correctivas. Quanto
ao escrutínio do trabalho no terreno das associações e das equipas de
“transição identitária” ou de “reorientação de género”, e às elevadas taxas de
suicídio associadas a estes processos, o silêncio ou silenciamento é quase
absoluto.
Entretanto,
por cá, também temos leis destas ou similares, leis contrabandeadas no
Parlamento perante a temerosa ou veneradora permissividade de alguns e o
alheamento de quase todos. Em nome do Progresso e sem grandes guerras ou
batalhas.
A SEXTA COLUNA TRANSGÉNERO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 19):
José Vaz: Eu que sempre
pensei que era só um simples gajo que gostava de gajas, há uns tempos fiquei a
saber que afinal sou um privilegiado colonizador opressor branco cisgénero não
binário e que trabalha no sector terciário. Ana Maia: Perante a indiferença geral, meia dúzia de frustrados
barulhentos fazem demasiado ruído sem grande oposição. A maioria das pessoas
tem problemas a sério com que se preocupar e as escolhas sexuais dos outros não
são uma preocupação para pessoas equilibradas. Suponho que a maioria das
pessoas reconheça a existência de outras cuja orientação sexual não será a mais
tradicional, mas na realidade não querem saber, é uma questão do foro
pessoal que actualmente foi transformado numa causa essencial por gente
desocupada, sem nada para fazer que certamente não precisa de trabalhar para
viver e vê ali um tema polémico que lhes dará notoriedade e eventualmente a
atenção que os pais não lhes deram na infância. Da mesma forma que, na
realidade, a "masculinidade tóxica" não é imposta a ninguém, é apenas
o modo de organização natural das espécies com o objectivo de se perpetuarem, 2
mulheres ou 2 homens nunca conseguirão esse objectivo, não é uma
"construção social", é um facto. As opções sexuais alternativas e sem
qualquer base científica que as apoie não nos deviam ser impostas e ainda menos
a crianças que ainda não desenvolveram a sua identidade sexual completamente.
Há meia dúzia de anos, cada um tinha a orientação sexual que queria e ninguém
tinha nada a ver com isso. Respeitar os outros deve ser um conceito
universal, independentemente da sua raça, sexo, religião ou cor política,
sugerir que uns merecem mais respeito que outros não é igualdade, é
descriminação pura e geralmente fundamentalista, e isso não devia ser apoiado,
e ainda menos legislado, por ninguém em lado nenhum. M. Nunes da Serra: se eu sentir que o Estado me deve considerar rico, devo
ter direito a um Subsídio especial? Ou o Costa agrava-me o escalão do IRS? além
disso, posso sentir-me velho e pedir já a reforma por inteiro?
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