Oxalá seja mentira mais uma dessas novas
verdades impostas há um ano - em jeito de celebração a de amanhã - que já é
hoje por lá, na Ucrânia; é só o que se ora agora, enquanto se lê o texto de
agudeza condenatória de Paulo
Tunhas. Mas pensemos positivo neste nosso também já amanhã, nocturno ainda.
Oremus.
Amanhã faz um ano que tudo mudou
Novo é o facto de a mentira nos chegar
sem qualquer acompanhamento que lhe dê verosimilhança. Como se a sua finalidade
fosse a de nos mostrar ostensivamente que é possível dizer o que quer que seja.
PAULO TUNHAS Colunista do Observador
OBSERVADOR, 23
fev. 2023, 00:199
Faz amanhã um ano que tudo mudou. Não é
que se tivesse ficado a saber algo que não se sabia. Toda a gente é obrigada
a saber que a humanidade é capaz do pior e do melhor e que, quando quer o pior,
costuma ser muito eficaz no modo de o atingir. O que mudou foi algo que está para lá do conhecimento teórico que os
livros de história, por exemplo, nos transmitem ou do mal ao qual aprendemos a
dar nomes que o fixam na linguagem – “nazismo”, “comunismo” – e que, fixando-o, de uma certa maneira nos isolam
dele, tornando-o um objecto para o pensamento. O que
mudou foi que, subitamente, tivemos um acesso directo à própria coisa que se
deu a nós mesmos em toda a sua evidência. E a evidência foi tão plena que era
quase inacreditável.
O que mudou não foi o termos descoberto
que há amigos da liberdade e inimigos da liberdade. Mais uma vez, isso já o
sabíamos muito bem. Conhecemos perfeitamente os argumentos de uns e de outros e
podemos traçar a sua evolução ao longo dos tempos. Podemos compará-los e até
compreender o medo que o fardo da liberdade inspira a alguns. O que mudou
foi termos percebido que quando os inimigos da liberdade iniciam uma cavalgada
furiosa contra os seus amigos, os habituais procedimentos que nos servem para
lidarmos com as coisas políticas, nomeadamente o diálogo e o uso de argumentos,
perdem qualquer significado. O uso das palavras para convencer o outro deixa de
fazer sentido. Só há uma solução: combater.
Ninguém são de espírito duvida que a mentira sempre foi uma arma política e
até que certas sociedades vivem em boa companhia com a mentira que o Estado
propaga. A defunta União Soviética foi disso um duradouro
exemplo. A maioria das pessoas tende naturalmente a adaptar-se àquilo que é
necessário para sobreviver, por mais alucinada que a mentira seja. Nada de novo
aqui, portanto. O que é verdadeiramente novo é o facto de a mentira nos chegar agora sem qualquer espécie
de acompanhamento que lhe dê alguma forma de verosimilhança, por mais ténue
que seja. Vem em estado puro, incontaminada por qualquer preocupação de
disfarce. Como se a sua finalidade não fosse sequer a de nos enganar, mas antes
a
de nos mostrar ostensivamente que é possível dizer o que quer que seja e que o
discernimento e a razão são incapazes de contrariar a perversa liberdade que
essa possibilidade oferece.
E o que é novo não é a capacidade de
repetir a mentira por aqueles que são inimigos da liberdade e desejam a vitória
daqueles que a prometem destruir. Durante várias décadas, o PCP
negou a existência do Gulag e gabou os extraordinários feitos de uma das mais
monstruosas sociedades que o homem criou, a que Cunhal chamou “o Sol da Terra”. O que é novo é que agora a mentira,
prodigiosa de inverosimilhança, é repetida sem a justificação tradicional da
obediência a um ideal, por mais nefasto que seja. Agora a repetição
da mentira faz-se sem outro motivo que não seja o declarado amor
pelo poder bruto e brutal e o ódio à liberdade.
Não é a primeira vez, é claro, que um povo
combate heroicamente pela sua liberdade face a uma invasão estrangeira. Temos
normalmente dessa luta uma visão romântica que pretende sublinhar o sublime do
gesto e dos vários sacrifícios que o acompanham, mesmo quando há ainda memória
da dureza da realidade desse combate. O combate, certamente, não é novo. O
que é novo hoje é a exposição nua e crua
da dor que é parte intrínseca dele, da espécie de maldição que leva à
heroicidade e à coragem de afrontar todos os perigos.
Não é a primeira vez que as democracias se unem para combater
ditaduras. Aconteceu exemplarmente na Segunda Grande Guerra. E
aconteceu outras vezes, de forma mais ou menos violenta. Mas é novo o facto
de assistirmos à unidade crescente das democracias nessa luta e à atenuação das
diferenças que naturalmente as separam umas das outras, bem como a diminuição
relativa da importância dos conflitos que cada uma encontra no seu seio. O que
está em jogo é demasiado importante para que tais conflitos concentrem em
demasia a nossa atenção.
Há, portanto, coisas novas desde a
invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin a 24 de Fevereiro de 2022. Mas
haverá mesmo? Num certo sentido, tudo o que atrás disse precisa de ser qualificado,
porque não se trata em nenhum dos casos de uma novidade absoluta, mas de uma
novidade relativa. É novo – para nós. É novo – na nossa experiência. É novo
– para a única realidade que conhecemos directamente. Mas esse tipo de
novidade vale como um absoluto que nos obriga a levar a nossa situação
absolutamente a sério. Não é um pedaço de história destinado a sumir-se no
tempo. É a nossa realidade. E, enquanto durar, não há outra. Tudo o
que há de essencial está em jogo.
GUERRA NA UCRÂNIA
UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
Fernando Silva Correia: Tudo o que penso, sobre a - empreitada monstruosa - de um “louco varrido”,
que se nos apresenta pelos olhos adentro, desde há um ano, até hoje… o meu caro
Paulo Tunhas explana-a duma forma clara e com uma sublime arte da escrita.
Obrigado Paulo Tunhas!… Antonio
Sennfelt: Magistral artigo e magistrais
palavras: "Tudo o que há de essencial está em jogo"! "O uso das
palavras para persuadir o outro deixou de fazer sentido! Só há uma solução:
combater!" Ediberto
Abreu: Como sempre, muito bom.
NUNO SILVA: Lapidar, Paulo
Tunhas. Muito obrigado.
João Floriano: As mentiras de Putin e companhia não me causam
estranheza ou indignação porque as compreendo. Putin é um antiherói um
supervilão trágico subindo degrau a degrau a escada do cadafalso onde será
enforcado. Jogou o seu futuro político na Ucrânia e agora faça o que fizer está
perdido e mesmo que se em completo desespero de causa usar armas nucleares
contra o ocidente, a resposta arrasará a Rússia. A China anda a cozinhá-lo em
lume brando porque ainda não é hora de confrontos com os Estados Unidos para
decidir quem será a próxima super potência. O que me causa verdadeiro
desconforto são as vozes domésticas e hipócritas que enchem o peito e levantam
o braço para falar de paz mas uma paz que só eles compreendem porque significa
a capitulação perante as atrocidades e os crimes de Putin. Dar-lhe o que ele
quer. Essa paz não nos serve porque o vilão voltará sempre para pedir mais e
mais. A Segunda Guerra Mundial é o grande marco de referência do Ocidente.
Estendeu-se por 6 anos. Como teria sido a nossa vida se ao fim do primeiro ano
nos tivéssemos rendido a Hitler? Maria Tejo: Excelente crónica. Sintetiza
magnificamente: “O uso das palavras para convencer o outro deixa de fazer
sentido. Só há uma solução: combater.” Jose
Augusto Mira Pires Borges: Talvez exista
algo de novo na mentira desbragada. Mas, sinceramente, vendo o que se tem passado
ultimamente em Portugal com ministros, secretários de estado, primeiro
ministro, a mentirem descarada e despudoradamente, não vejo nada assim tão novo
nas mentiras do ditador e corja de assassinos russos que o rodeiam. Lá, tal
como cá, mentem com todos os dentes porque sabem que a consequência é
nenhuma... Joaquim
Lopes: Já a anexação da Crimeia, foi
consentida pela UE e especialmente pela Alemanha, um dos Estados mais apoiantes
do regime russo, ainda lá tem a ferida que a Polónia por exemplo tem e essa
torna difícil a tomada de decisões. Merkel
que se aliou à Rússia que apoiou o escândalo Drosten/Corman, no caso dos testes
PCR, aprovados pela OMS, com artigo médico sem revisão pelos pares científicos
e que nunca poderia servir de diagnóstico, como qualquer PCR no início da
Covid. Merkel, em quem Helmut Kohl confiava, traiu o seu mentor, um
Chanceler de excepção e um bom homem. José Vaz:
Óptima crónica
subscrevo inteiramente. A mim de facto é uma coisa que me surpreende sempre,
mesmo que infelizmente esteja cada vez mais habituado, a ver que é o facto da
mentira nem vir embrulhada em algo que lhe dê um tom de verosímil vomitam as
cenas mais surreais e cabeludas e o incrível é que as defendem como se de facto
acreditassem. Vitor
Batista: Excelente artigo! Para dedicar aos putinettes e aos
que ainda têm dúvidas sobre ambos os lados da guerra, ou deveríamos dizer,
operação especial?
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