sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Como será amanhã?


Oxalá seja mentira mais uma dessas novas verdades impostas há um ano - em jeito de celebração a de amanhã - que já é hoje por lá, na Ucrânia; é só o que se ora agora, enquanto se lê o texto de agudeza condenatória de Paulo Tunhas. Mas pensemos positivo neste nosso também já amanhã, nocturno ainda. Oremus.

Amanhã faz um ano que tudo mudou

Novo é o facto de a mentira nos chegar sem qualquer acompanhamento que lhe dê verosimilhança. Como se a sua finalidade fosse a de nos mostrar ostensivamente que é possível dizer o que quer que seja.

PAULO TUNHAS Colunista do Observador

OBSERVADOR, 23 fev. 2023, 00:199

Faz amanhã um ano que tudo mudou. Não é que se tivesse ficado a saber algo que não se sabia. Toda a gente é obrigada a saber que a humanidade é capaz do pior e do melhor e que, quando quer o pior, costuma ser muito eficaz no modo de o atingir. O que mudou foi algo que está para lá do conhecimento teórico que os livros de história, por exemplo, nos transmitem ou do mal ao qual aprendemos a dar nomes que o fixam na linguagem – “nazismo”, “comunismo” – e que, fixando-o, de uma certa maneira nos isolam dele, tornando-o um objecto para o pensamento. O que mudou foi que, subitamente, tivemos um acesso directo à própria coisa que se deu a nós mesmos em toda a sua evidência. E a evidência foi tão plena que era quase inacreditável.

O que mudou não foi o termos descoberto que há amigos da liberdade e inimigos da liberdade. Mais uma vez, isso já o sabíamos muito bem. Conhecemos perfeitamente os argumentos de uns e de outros e podemos traçar a sua evolução ao longo dos tempos. Podemos compará-los e até compreender o medo que o fardo da liberdade inspira a alguns. O que mudou foi termos percebido que quando os inimigos da liberdade iniciam uma cavalgada furiosa contra os seus amigos, os habituais procedimentos que nos servem para lidarmos com as coisas políticas, nomeadamente o diálogo e o uso de argumentos, perdem qualquer significado. O uso das palavras para convencer o outro deixa de fazer sentido. Só há uma solução: combater.

Ninguém são de espírito duvida que a mentira sempre foi uma arma política e até que certas sociedades vivem em boa companhia com a mentira que o Estado propaga. A defunta União Soviética foi disso um duradouro exemplo. A maioria das pessoas tende naturalmente a adaptar-se àquilo que é necessário para sobreviver, por mais alucinada que a mentira seja. Nada de novo aqui, portanto. O que é verdadeiramente novo é o facto de a mentira nos chegar agora sem qualquer espécie de acompanhamento que lhe dê alguma forma de verosimilhança, por mais ténue que seja. Vem em estado puro, incontaminada por qualquer preocupação de disfarce. Como se a sua finalidade não fosse sequer a de nos enganar, mas antes a de nos mostrar ostensivamente que é possível dizer o que quer que seja e que o discernimento e a razão são incapazes de contrariar a perversa liberdade que essa possibilidade oferece.

E o que é novo não é a capacidade de repetir a mentira por aqueles que são inimigos da liberdade e desejam a vitória daqueles que a prometem destruir. Durante várias décadas, o PCP negou a existência do Gulag e gabou os extraordinários feitos de uma das mais monstruosas sociedades que o homem criou, a que Cunhal chamou “o Sol da Terra”. O que é novo é que agora a mentira, prodigiosa de inverosimilhança, é repetida sem a justificação tradicional da obediência a um ideal, por mais nefasto que seja. Agora a repetição da mentira faz-se sem outro motivo que não seja o declarado amor pelo poder bruto e brutal e o ódio à liberdade.

Não é a primeira vez, é claro, que um povo combate heroicamente pela sua liberdade face a uma invasão estrangeira. Temos normalmente dessa luta uma visão romântica que pretende sublinhar o sublime do gesto e dos vários sacrifícios que o acompanham, mesmo quando há ainda memória da dureza da realidade desse combate. O combate, certamente, não é novo. O que é novo hoje é a exposição nua e crua da dor que é parte intrínseca dele, da espécie de maldição que leva à heroicidade e à coragem de afrontar todos os perigos.

Não é a primeira vez que as democracias se unem para combater ditaduras. Aconteceu exemplarmente na Segunda Grande Guerra. E aconteceu outras vezes, de forma mais ou menos violenta. Mas é novo o facto de assistirmos à unidade crescente das democracias nessa luta e à atenuação das diferenças que naturalmente as separam umas das outras, bem como a diminuição relativa da importância dos conflitos que cada uma encontra no seu seio. O que está em jogo é demasiado importante para que tais conflitos concentrem em demasia a nossa atenção.

Há, portanto, coisas novas desde a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin a 24 de Fevereiro de 2022. Mas haverá mesmo? Num certo sentido, tudo o que atrás disse precisa de ser qualificado, porque não se trata em nenhum dos casos de uma novidade absoluta, mas de uma novidade relativa. É novo – para nós. É novo – na nossa experiência. É novo – para a única realidade que conhecemos directamente. Mas esse tipo de novidade vale como um absoluto que nos obriga a levar a nossa situação absolutamente a sério. Não é um pedaço de história destinado a sumir-se no tempo. É a nossa realidade. E, enquanto durar, não há outra. Tudo o que há de essencial está em jogo.

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:
Fernando Silva Correia
: Tudo o que penso, sobre a - empreitada monstruosa - de um “louco varrido”, que se nos apresenta pelos olhos adentro, desde há um ano, até hoje… o meu caro Paulo Tunhas explana-a duma forma clara e com uma sublime arte da escrita. Obrigado Paulo Tunhas!…            Antonio Sennfelt: Magistral artigo e magistrais palavras: "Tudo o que há de essencial está em jogo"! "O uso das palavras para persuadir o outro deixou de fazer sentido! Só há uma solução: combater!"               Ediberto Abreu: Como sempre, muito bom.                  NUNO SILVA: Lapidar, Paulo Tunhas. Muito obrigado.                     João Floriano: As mentiras de Putin e companhia não me causam estranheza ou indignação porque as compreendo. Putin é um antiherói um supervilão trágico subindo degrau a degrau a escada do cadafalso onde será enforcado. Jogou o seu futuro político na Ucrânia e agora faça o que fizer está perdido e mesmo que se em completo desespero de causa usar armas nucleares contra o ocidente, a resposta arrasará a Rússia. A China anda a cozinhá-lo em lume brando porque ainda não é hora de confrontos com os Estados Unidos para decidir quem será a próxima super potência. O que me causa verdadeiro desconforto são as vozes domésticas e hipócritas que enchem o peito e levantam o braço para falar de paz mas uma paz que só eles compreendem porque significa a capitulação perante as atrocidades e os crimes de Putin. Dar-lhe o que ele quer. Essa paz não nos serve porque o vilão voltará sempre para pedir mais e mais. A Segunda Guerra Mundial é o grande marco de referência do Ocidente. Estendeu-se por 6 anos. Como teria sido a nossa vida se ao fim do primeiro ano nos tivéssemos rendido a Hitler?                   Maria Tejo: Excelente crónica. Sintetiza magnificamente: “O uso das palavras para convencer o outro deixa de fazer sentido. Só há uma solução: combater.”                   Jose Augusto Mira Pires Borges: Talvez exista algo de novo na mentira desbragada. Mas, sinceramente, vendo o que se tem passado ultimamente em Portugal com ministros, secretários de estado, primeiro ministro, a mentirem descarada e despudoradamente, não vejo nada assim tão novo nas mentiras do ditador e corja de assassinos russos que o rodeiam. Lá, tal como cá, mentem com todos os dentes porque sabem que a consequência é nenhuma...                  Joaquim Lopes: Já a anexação da Crimeia, foi consentida pela UE e especialmente pela Alemanha, um dos Estados mais apoiantes do regime russo, ainda lá tem a ferida que a Polónia por exemplo tem e essa torna difícil a tomada de decisões. Merkel que se aliou à Rússia que apoiou o escândalo Drosten/Corman, no caso dos testes PCR, aprovados pela OMS, com artigo médico sem revisão pelos pares científicos e que nunca poderia servir de diagnóstico, como qualquer PCR no início da Covid. Merkel, em quem Helmut Kohl confiava, traiu o seu mentor, um Chanceler   de excepção e um bom homem.          José Vaz: Óptima crónica subscrevo inteiramente. A mim de facto é uma coisa que me surpreende sempre, mesmo que infelizmente esteja cada vez mais habituado, a ver que é o facto da mentira nem vir embrulhada em algo que lhe dê um tom de verosímil vomitam as cenas mais surreais e cabeludas e o incrível é que as defendem como se de facto acreditassem.               Vitor Batista: Excelente artigo! Para dedicar aos putinettes e aos que ainda têm dúvidas sobre ambos os lados da guerra, ou deveríamos dizer, operação especial?

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