domingo, 5 de fevereiro de 2023

A devoção custa caro

 

Sobretudo quando o tempo é escasso para a concretizar: o que assusta é a escassez de tempo para a concretização dos espaços desse evento, prova de um irreparável atabalhoamento nacional, de incúria desastrada e desprezível. O texto de MJA é denunciador, como sempre, de elegância moral, na sua frontalidade sem rebuço.

Algumas precisões

Quantos milhares de jovens não se magoaram com o trânsito público de passa-culpas entre as diversas autoridades? Os poderes esqueceram-se serem eles os destinatários da celebração irrepetível da JMJ?

MARIA JOÃO AVILLEZ, Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 01 fev. 2023, 00:2051

1Há dias, referindo-se a um comentário que eu fizera na CNN sobre as Jornadas Mundiais da Juventude, alguém que conheço reencaminhou-me um sms de um jovem que não conheço que dizia simplesmente “obrigado por ter falado de um milhão de jovens, em vez de um milhão euros”.

Estava tudo dito. Na sua luminosa simplicidade a frase reconduzia um acontecimento ao seu essencial e centrava-o no seu lugar próprio: a manifestação de fé planetária de um milhão de jovens, um encontro do Papa Francisco com um mundo onde todos cabem, um acontecimento que porá Portugal nos écrans globais. Isso: a Jornada Mundial da Juventude – Lisboa 2023 é um evento único.

2Um evento que consegue aliás ser ainda maior do que dizer que será “o maior” de sempre porque (largamente) ultrapassa o mundo católico ou cristão, tem marca “universal”: em Agosto afluirão a Portugal e não apenas a Lisboa, milhares e milhares de jovens e de adultos. A “empreitada” de resto impressiona: acolher, trazer, levar, acomodar, dar mesa e tecto, assegurar higiene, proporcionar segurança, pensar no bem-estar geral, é tarefa hercúlea (não se pode fazer cerimónia com as palavras).

Parece no entanto que é preciso lembrar a toda a hora que fomos nós – nós, país – quem endereçou e muito insistiu neste convite ao Santo Padre: o desafio de realizar a Jornada Mundial da Juventude na capital tem a assinatura de Portugal. O convite não veio de fora, não foi feito no escuro, não resultou de uma sugestão, uma imposição, um acaso, uma proposta sem rosto. Também não parece mas tratou-se de uma decisão consensual e informada no que diz respeito às obrigações do país. Ainda parece menos mas foi um investimento calculado com o respaldo das maiores figuras da nossa laica nação (além do respaldo teve o gáudio, eu lembro-me). E já agora que pensarão os portugueses normalmente constituídos e o país que ainda não endoideceu da maré de equívocos em que se têm afogado as nossas mais altas autoridades e instâncias e de tanta gente a falar do que não conhece (ou pior, do que não percebe?)

3Pego num desses (dispensáveis) equívocos, escolhendo aquele que sempre faz palpitar muita gente porque “mete dinheiro”. Reza o equívoco em curso que o Estado “está a dar dinheiro à Igreja”. O que o Estado está a fazer – através dos municípios ou do Governo – é a injectar dinheiro directamente na economia. Claro que muitos o sabem mas há coisas – imensas coisas – que convém disfarçar enquanto se pode: politique oblige. Mais importante ainda porém é perceber que os milhões anunciados – infraestruturas, palcos, audiovisuais, alimentação e tuttiquanti – entram diretamente para fornecedores, esmagadoramente nacionais. (Ou não entram?)

Outro equívoco, directamente pescado no viveiro onde eles nadam: falo do “ajuste directo” que tanto comove a esquerda e faz lacrimejar comentadores. Só não vê quem não quer que a própria figura do ajuste directo beneficiará o nosso tecido empresarial, um concurso internacional seria a porta aberta para que tal importância voasse para longe daqui. Mais: a criação de valor junto dos prestadores de serviços – transportes, restaurantes, hotelaria, etc. – será dinheiro gasto intramuros e gera emprego. Mais ainda: uma contratação efectuada directamente, elimina automaticamente as (por vezes incontáveis) somas de euros gastas com os intermediários.

4Enfadonha esta prosa? Admito mas é como nos casamentos: para a alegria e para a tristeza. No que me traz é (modestamente) para tentar cortar as ervas nefastamente daninhas de um caminho aberto em nome dos jovens e que se quer fértil e amável. E por isso, caro leitor permita-me uma última varredela em mais um equívoco. Tem sido muito comum a comparação da Jornada Mundial da Juventude com outros grandes acontecimentos que Portugal tem acolhido com júbilo e gasto. Também não é comparável: ao contrário do ocorrido com outros eventos, Portugal não desembolsará um euro em “fee” (valor pago ao detentor da marca ou evento para o poder “dar” em solo pátrio como sucede por exemplo com a Fórmula 1 e que pode ascender a 10 e 30 milhões de euros só para acolher essa prova.) Com valores diferentes, sucede o mesmo com o Rock in Rio, a Web Summit, um Torneio de Ténis da ATP, etc. Na Jornada Mundial da Juventude, não sucede.

Enfim, Lisboa, Loures, Portugal, ganham a requalificação de uma área com 100 hectares para fruição pública. Um terreno à beira rio, onde anteriormente se acumulavam lamas e lixo ganhará uma vida com garantia de futuro. Não é dizer pouco mas sem o motor de arranque da Jornada de Agosto dificilmente o investimento sairia das mentes ou do papel. Last but not least, é obrigatório lembrar aqui que quem está à frente dessa imensa “empreitada – transformadora” chama-se António Lamas. Quantas boas ideias, magnificamente concretizadas por ele, é que Portugal lhe deve? (Já ao cidadão José Sá Fernandes e à sua fantasia ecológico-ambiental (?) contra o Túnel do Marquês que obstaculizou a sua construção por largos meses só podemos desagradecer: as indeminizações pagas pela interrupção da obra custaram 18 milhões de euros ao país. Para quem acalenta o sonho de suceder a Carlos Moedas, não se imagina pior cartão de apresentação).

5Corre tudo bem? Não. O episódio do palco Tejo veio revelar as fragilidades de coordenação entre os diversos, digamos, interlocutores. Houve atrasos? Desde logo e entre outros menores, o não se ter constituído de início uma estrutura profissional, com o melhor que temos em Portugal e o que temos é muito, muito bom. Sei do que falo: trabalhei directamente com alguns desses excelentes profissionais por mais de uma vez, em inesquecíveis e exitosos acontecimentos. E sobretudo, mesmo que ilimitada como é, a generosidade de centenas de voluntários nunca poderia surfar sozinha uma onda com esta dimensão. Dão o seu melhor sem hesitar e de mangas arregaçadas mas… não são profissionais.

E finalmente: tenho pena mas não posso deixar de mencionar o factor humilhação – e de novo não façamos cerimónia com as palavras. Falo de milhares de jovens portugueses e de como se devem ter sentido magoados ou humilhados com o trânsito público de passa-culpas entre diversas autoridades do país onde nasceram. Os poderes esqueceram serem eles os principais destinatários de uma celebração irrepetível: quer a que já trabalha voluntariamente na gigantesca operação das Jornadas quer a que se está a preparar com fé, vitalidade e indizível alegria para a sua realização.

Alguém devia pedir-lhes desculpa.

JMJ 2023    RELIGIÃO    SOCIEDADE

COMENTÁRIOS (de 59)

Filipe Paes de Vasconcellos: Que não falte a Carlos Moedas a determinação e a coragem, sim coragem!, de enxotar a gentinha mesquinha e medíocre que nada fez por Portugal, a não ser gastar mal e apoderar-se do nosso dinheiro.                   Maria da Graça Frazão: Alberico Lopes: Cara Maria João; o que acrescentar ao seu magnífico artigo? Só uma coisa: sinceros parabéns por de maneira tão simples pôr os pontos nos iis! Realmente o salta-pocinhas do sr. Marcelo, para mim ainda foi o que pior se portou! O costume dum cata-vento! José Freitas: Espero que este artigo seja lido por Marcelo, Costa, D. Américo Aguiar. Carlos Moedas assina por baixo este artigo. Sá Fernandes não o deve entender. Obrigado MJA, por mais um excelente artigo       Domingas Coutinho: MJA não sabe que este País é pequenino e pensa pequenino? E fala em vergonha. Também não sabe que uma grande maioria não sabe o que é vergonha? Louvo Carlos Moedas pelo empenho e sentido do dever que está a demonstrar. E já agora a Câmara fez bem em correr com Sá Fernandes.                  F. Mendes: Vou ser irónico, embora não me pronuncie sobre a utilidade deste "evento". Ficamos a saber esta coisa espantosa: os ajustes directos são bons, porque vão para fornecedores nacionais e o dinheiro não sai do País. Brilhante, Maria João: abrimos o coração ao Mundo (e arredores!), mas fechamos os cordões à bolsa! Ora aqui está um excelente exemplo do chico-espertismo nacional, que tão bons resultados tem trazido a este jardim à beira-mar plantado. Já agora, estou para ver quantas das pessoas que alegadamente chegam para o "evento", regressam ao seu país de origem. E quantas vão engrossar a imigração clandestina e descontrolada, que por aqui campeia, como em nenhum outro lugar. Desconfio que serão mais umas largas dezenas de milhar, com sorte. Esclareço que sou Católico. Mas não misturo a religião com o estado, como manifestamente está a acontecer neste evento. Se for criticado por isto que escrevo, paciência.

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