sábado, 25 de fevereiro de 2023

«Vosso livre alvedrio


“isento, forro, poderoso vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais fazer glorioso vosso estado. Deu-vos livre entendimento, e vontade libertada e a memória, que tenhais em vosso tento fundamento, que sois por Ele criada pera a glória.” (A. Da Alma)

É claro que o Homem hoje não vai nessa conversa do Anjo de Gil Vicente, limitado ao foro divino, e deseja antes o livre arbítrio por orgulho e convicção próprios de uma liberdade assumida no simples sentimento de um direito específico. Ainda bem que vão existindo jovens felizes e sabedores, hoje como ontem, que assumem a sua liberdade pessoal, não sujeita a preceitos alheios, mas próprios, desde que fundamentados em parâmetros pessoais, obtidos através do enriquecimento gradual do seu espírito, que Eugénia de Vasconcellos bem reivindica. O mal é quando esses preceitos resultam, não de leituras ou de orientações familiares, mas apenas de uma rebeldia própria, na desmesura e no descontrolo dos egotismos de infantilidade, sem respeito alheio e também sem respeito pessoal. Mas as leituras, quaisquer que elas sejam, que o tempo ajuda a selecionar, permitem desenvolver o carácter e a inteligência, como o prova o texto de EV. Houvesse hoje muitos jovens assim, que não se limitassem à manipulação obsessiva de um telemóvel imparável…

Alma inconquistável

No grande como no pequeno, adultos ou crianças, em comunidade ou individualmente, sejamos insubmissos. Leia-se o livro proibido. Afronte-se o pântano político. Apoie-se quem dá a vida contra a tirania

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaista, escritora           OBSERVADOR, 24 fev. 2023, 00:158

Entre os escabrosos abusos sexuais contra crianças na igreja católica e escabrosa indiferença de algum do seu clero; entre a crise da habitação e o despropositado fait divers do pacote «Mais Habitação», de António Costa; entre a clareza do discurso de Biden e a alienação do discurso de Putin quando passa um ano sobre a invasão russa da Ucrânia; a imprensa e a opinião confluem nos temas, e muito bem. Por isso, escolho não escrever sobre qualquer um destes assuntos para falar de Liberdade.

Em Portugal, a editora Presença acaba de pôr em pré-venda The Bluest Eye, de Toni Morrison, com tradução de Tânia Ganho, O Olhar Mais Azul. Este livro está, mais uma vez, a ser censurado, do Missouri à Flórida, apesar de Toni Morrison ser uma voz poderosa, uma belíssima escritora. Ou por isso mesmo. Os pretextos são obtusos. Não se poder ler, mesmo em tenra idade escolar, é revoltante. Esteja essa proibição ao serviço da agenda woke ou da cartilha.A liberdade de ser passa pela liberdade de pensar e decidir.

A liberdade começa por ser pequena antes de ser maiúscula.

Já aqui contei: estudei durante a infância e a juventude num colégio católico feminino com rigor normativo. Quando éramos apanhadas em falta, se severa, éramos levadas ao gabinete da madre superiora onde, entre o vermelho do damasco de seda escura dos cortinados e diante da secretária de pau-preto de torcidos e tremidos, nos esperava uma conversa em voz perigosamente baixa, inevitavelmente concluída com as «consequências das nossas acções» vertidas em castigo: a manhã de sábado, livre, convertida em horas extra de estudo, páginas e páginas de infindáveis exercícios. Se a coisa extrapolasse, chamavam-se os pais, evento raríssimo. Neste colégio podia ler-se A Queda de um Anjo ou O Crime do Padre Amaro ou, se nos desse na cabeça, o Discurso do Método, na sua macia capa verde e branca, da Guimarães, uma excepção por encadernar entre volumes sérios de filetes dourados. Estavam todos disponíveis na biblioteca. Era um colégio católico. Não era puritano. Em casa, tinha igual liberdade de leitura, portanto, li sistematicamente todos os livros que sabia terem sido proibidos em Portugal, no tempo em que a minha mãe tinha a minha idade, e que haviam chegado às estantes pelas mais equívocas proveniências.

Revolucionária anacrónica por via d´Os Capitães da Areia confesso que me deliciava com a notícia do prémio Lenine na badana da contra-capa dos livros, um dia contrabandeados, de Jorge Amado, por muito que a então União Soviética não me inspirasse confiança, graças ao Muro de Berlim, primeiro, e a John Le Carré depois. Este trânsito literário casa-colégio-casa era bom e, no entanto, um dia, acabou-se. E culpa não foi, a despeito das aparências, nem de D.H. Lawrence, nem do amante da infame Lady Chatterley, nem da minha mãe que me havia advertido, «olha que não é para a tua idade…». A culpa não foi sequer de qualquer uma das irmãs. Foi inteiramente minha: estava a apanhar uma seca diabólica na aula de revisão para o teste de português e meti o adversativo Lawrence entre as páginas do grosso caderno espiral. Distraí-me. Não ouvi a pergunta que a professora me fez. Fui apanhada. E em flagrante. A professora, laica, uma das poucas que então lá ensinavam, começa num desatino de moral e bons costumes que acabou comigo na inquisição, perdão, no gabinete da madre superiora. Em vão protestei que a subversão do Amante de Connie tinha mais de social do que de impropriedade, que ele era pobre e ela mulher. A professora, laica, mas não a cadela enviada para o espaço, rasurava a justificação insistindo na obscenidade e exigia a presença dos pais. A madre superiora dizia que talvez a apreensão do livro e a apresentação de um trabalho extra fossem suficientes. Que não. Que não. E lá veio a minha mãe com a sua linda juventude, de mini-sport verde escuro listrado a preto, inteirar-se das graves circunstâncias. Sim, tinha-se oposto à leitura mas não me proibia a leitura. Não, não achava pernicioso, só desadequado à idade, mas era inútil proibir porque quando se quer ler, lê-se nem que seja de lanterna debaixo das mantas, a derreter de calor. E lá saímos as duas com cartão amarelo. E eu com a proibição materna de voltar a fazer derivas socio-literárias protestativas diante das forças do poder. «Calas-te, ouviste?». Ficava-me bem dizer que este delito de leitura me tinha comprometido com as religiosas do colégio, a madre e as irmãs. Não é verdade, no entanto. Continuei, fora das aulas, nos espaços do colégio, a ler o que queria ler. É a existência da norma que origina a transgressão. Como é a qualidade da norma que define a qualidade da transgressão. Ambas são necessárias e formativas.

No grande como no pequeno, adultos como em crianças, em comunidade como individualmente, sejamos insubmissos. Leia-se o livro proibido. Exija-se responsabilidade à igreja que a recusa. Confronte-se o pântano político. Apoie-se quem, em nome próprio e em nosso nome, dá a vida contra a tirania. Poucas coisas falam melhor de liberdade do que a sua privação. O modo como atravessamos «a noite escura», a das perdas pessoais, prisioneiros da tristeza; ou as trágicas perdas colectivas, com a quebra dos pactos de confiança, a vil exploração dos mais frágeis; a usurpação de vidas, a aniquilação de um povo; oferece-nos o espelho onde nos vemos. Ao que nos falhar respondamos insubmissos: it matters not how strait the gate,/ how charged with punishments the scroll,/ I am the master of my fate,/I am the captain of my soul.

LIBERDADES    SOCIEDADE

COMENTÁRIOS

Domingos Rita: Excelente, é tão bom ler os seus artigos, considero uma lufada de ar puro que me ajuda a respirar neste quotidiano malévolo cheio de armadilhas que nos vão manietando e nos é imposto no nosso querido PAÍS, pelos pseudo governantes sem capacidades para ocupar os cargos, e sempre preocupados com o seu umbigo, e no mundo em geral, pelos líderes poderosos, uns bons outros maus, que não se entendem. Obrigado                      João Ramos: Belo final com a frase de Henley e bonito artigo!              bento guerra: Eu vou continuar assinante do Observador, cuidado com a manipulação das palavras, não chega  Duarte Correia: Diz Walter Jens: "-Nem ele (filme), nem a arte no seu conjunto..., nem a literatura, que, embora seja a mais influente das artes, não conseguiu, em toda a sua história - que consiste num somatório de derrotas -, alcançar uma única vitória de peso - uma vitória momentânea, entenda-se! [...] Mas então, a ser assim, por que razão é tão temida? (in Teoria da Literatura e da Crítica (Cadernos da Colóquio| Letras), Lisboa Fund. Calouste Gulbenkian, s.d. [1982],p.106). «O Crime do padre Amaro», «O Amante de Lady Chatterley», «A Geografia da Fome», etc., livros que se compravam à sorrelfa ali em Campo de Ourique, liamo-los, pois. Mas onde estava o problema? De facto, depois da leitura não íamos deitar abaixo o regime, ficávamos a saber, porque os proibiam, quanto safada é a repressão. Na penumbra dos anos passados, lembro só que, na leitura de "O Amante da Lady", achava piada ao macho garanhão sentir calor nos rins ao ser visitado pela Lady, quando o calor costuma manifestar-se em outro sítio. Os Albions são uns exóticos.                        Maria Nunes: Crónica maravilhosa. Nunca pensei voltar a sentir opressão e falta de liberdade, como estamos a viver. Precisamos de outro 25 de Novembro.                         Maria Nunes Maria Nunes: Como dizia Paul Eluard,"Nasci para te conhecer liberdade."             Filipe Paes de Vasconcellos: Que bom começar o dia a ler as suas crónicas de tão bem escritas e inspiradoras. Quando acabo de a ler fico sem palavras. Obrigado pela sua entrega à causa da Liberdade.              João Floriano: Crónica excelente e belíssima. Por vezes o excelente não coincide com belíssima. Acontece  aqui. Eugénia de Vasconcelos trata frequentemente o tema da liberdade através de assuntos concretos como no caso dos wokes e daquele excelente e comovente texto sobre os cisnes negros iranianos. Desta vez sente a necessidade de o abordar na generalidade. Compreendo-a. Nunca depois do 25 de Novembro vi ameaças tão grandes à liberdade como agora nos passam diante dos olhos. Ingenuidade minha ter pensado que nunca mais em Portugal nos iríamos sentir ameaçados. A corrupção, a impunidade, a violência, a arrogância, a mentira, o abuso, o descaramento corroem a liberdade que já tínhamos assumido como garantida. Façamos uma pequena mudança no famosíssimo e citadissimo «Invictus» e em vez de «I´m the master of my fate, I´m the master of my soul», sugiro «We are the masters of our fate, we are the masters of our soul»: estamos a precisar e muito que nos recordem o que nós somos, o que nós representamos. Para quem não gosta de poesia da era vitoriana, sugiro « We are the Champions» de Fred Mercury, igualmente galvanizante. Vale tudo para nos acordar e fazer-nos acreditar que somos mesmo senhores do nosso destino, da nossa alma nacional.

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