“isento,
forro, poderoso vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais fazer
glorioso vosso estado. Deu-vos livre entendimento, e vontade libertada e a
memória, que tenhais em vosso tento fundamento, que sois por Ele criada pera a
glória.” (A. Da Alma)
É claro que o Homem hoje não vai nessa
conversa do Anjo de Gil Vicente, limitado ao foro divino, e deseja antes o
livre arbítrio por orgulho e convicção próprios de uma liberdade assumida no simples
sentimento de um direito específico. Ainda bem que vão existindo jovens felizes e
sabedores, hoje como ontem, que assumem a sua liberdade pessoal, não sujeita a
preceitos alheios, mas próprios, desde que fundamentados em parâmetros
pessoais, obtidos através do enriquecimento gradual do seu espírito, que Eugénia de Vasconcellos bem
reivindica. O mal é quando esses preceitos resultam, não de leituras ou de
orientações familiares, mas apenas de uma rebeldia própria, na desmesura e no
descontrolo dos egotismos de infantilidade, sem respeito alheio e também sem
respeito pessoal. Mas as leituras, quaisquer que elas sejam, que o tempo ajuda
a selecionar, permitem desenvolver o carácter e a inteligência, como o prova o
texto de EV. Houvesse
hoje muitos jovens assim, que não se limitassem à manipulação obsessiva de um
telemóvel imparável…
Alma inconquistável
No grande como no pequeno, adultos ou
crianças, em comunidade ou individualmente, sejamos insubmissos. Leia-se o
livro proibido. Afronte-se o pântano político. Apoie-se quem dá a vida contra a
tirania
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS Poeta, ensaista, escritora
OBSERVADOR, 24 fev. 2023, 00:158
Entre os escabrosos abusos sexuais
contra crianças na igreja católica e escabrosa indiferença de algum do seu
clero; entre a crise da habitação e o despropositado fait divers do pacote «Mais Habitação», de António Costa; entre a clareza do discurso de Biden e a alienação do discurso de Putin quando
passa um ano sobre a invasão russa da Ucrânia; a imprensa e a opinião
confluem nos temas, e muito bem. Por isso, escolho não escrever sobre qualquer um destes assuntos para falar de
Liberdade.
Em Portugal, a editora Presença acaba de
pôr em pré-venda The Bluest Eye, de Toni Morrison, com tradução de Tânia Ganho, O Olhar Mais Azul. Este
livro está, mais uma vez, a ser censurado, do Missouri à Flórida, apesar de
Toni Morrison ser uma voz poderosa, uma belíssima escritora. Ou por isso mesmo.
Os pretextos são obtusos. Não se poder ler, mesmo em tenra idade escolar, é
revoltante. Esteja essa proibição ao
serviço da agenda woke ou da cartilha.A
liberdade de ser passa pela liberdade de pensar e decidir.
A liberdade começa por ser pequena antes de ser
maiúscula.
Já aqui contei: estudei durante a
infância e a juventude num colégio católico feminino com rigor normativo.
Quando éramos apanhadas em falta, se severa, éramos levadas ao gabinete da
madre superiora onde, entre o vermelho do damasco de seda escura dos cortinados
e diante da secretária de pau-preto de torcidos e tremidos, nos esperava uma
conversa em voz perigosamente baixa, inevitavelmente concluída com as
«consequências das nossas acções» vertidas em castigo: a manhã de sábado,
livre, convertida em horas extra de estudo, páginas e páginas de infindáveis
exercícios. Se a coisa extrapolasse, chamavam-se os pais, evento raríssimo. Neste
colégio podia ler-se A Queda de um Anjo
ou O Crime do Padre Amaro ou, se nos
desse na cabeça, o Discurso do Método,
na sua macia capa verde e branca, da Guimarães, uma excepção por encadernar
entre volumes sérios de filetes dourados. Estavam todos disponíveis na
biblioteca. Era um colégio católico. Não era puritano. Em casa, tinha igual
liberdade de leitura, portanto, li sistematicamente todos os livros que sabia
terem sido proibidos em Portugal, no tempo em que a minha mãe tinha a minha
idade, e que haviam chegado às estantes pelas mais equívocas proveniências.
Revolucionária anacrónica por via d´Os
Capitães da Areia confesso que me deliciava com a notícia do prémio Lenine na
badana da contra-capa dos livros, um dia contrabandeados, de Jorge Amado, por
muito que a então União Soviética não me inspirasse confiança, graças ao Muro de Berlim, primeiro, e a John Le Carré depois. Este trânsito
literário casa-colégio-casa era bom e, no entanto, um dia, acabou-se. E culpa
não foi, a despeito das aparências, nem de D.H.
Lawrence, nem do amante da infame
Lady Chatterley, nem da minha mãe que
me havia advertido, «olha que não é para a tua idade…». A culpa não foi
sequer de qualquer uma das irmãs. Foi inteiramente minha: estava a apanhar uma
seca diabólica na aula de revisão para o teste de português e meti o
adversativo Lawrence entre as páginas
do grosso caderno espiral. Distraí-me. Não
ouvi a pergunta que a professora me fez. Fui apanhada. E em flagrante. A professora, laica, uma das poucas
que então lá ensinavam, começa num desatino de moral e bons costumes que acabou
comigo na inquisição, perdão, no gabinete da madre superiora. Em vão protestei
que a subversão do Amante de Connie tinha mais de social do que de
impropriedade, que ele era pobre e ela mulher. A professora, laica, mas não a
cadela enviada para o espaço, rasurava a justificação insistindo na obscenidade
e exigia a presença dos pais. A madre superiora dizia que talvez a apreensão do
livro e a apresentação de um trabalho extra fossem suficientes. Que não. Que
não. E lá veio a minha mãe com a sua linda juventude, de mini-sport verde
escuro listrado a preto, inteirar-se das graves circunstâncias. Sim, tinha-se oposto à leitura mas não me proibia
a leitura. Não, não achava pernicioso, só desadequado à idade, mas era inútil proibir porque quando se quer
ler, lê-se nem que seja de lanterna debaixo das mantas, a derreter de
calor. E lá saímos as duas com cartão amarelo. E eu com a proibição materna de
voltar a fazer derivas socio-literárias protestativas diante das forças do
poder. «Calas-te, ouviste?». Ficava-me bem dizer que este delito de leitura me
tinha comprometido com as religiosas do colégio, a madre e as irmãs. Não é
verdade, no entanto. Continuei, fora das aulas, nos espaços do colégio, a ler o
que queria ler. É a existência da norma que origina a transgressão. Como é a
qualidade da norma que define a qualidade da transgressão. Ambas são
necessárias e formativas.
No grande como no pequeno,
adultos como em crianças, em comunidade como individualmente, sejamos insubmissos.
Leia-se o livro proibido. Exija-se
responsabilidade à igreja que a recusa. Confronte-se o pântano político.
Apoie-se quem, em nome próprio e em nosso nome, dá a vida contra a tirania. Poucas
coisas falam melhor de liberdade do que a sua privação. O modo como atravessamos «a noite escura»,
a das perdas pessoais, prisioneiros da tristeza; ou as trágicas perdas
colectivas, com a quebra dos pactos de confiança, a vil exploração dos mais
frágeis; a usurpação de vidas, a aniquilação de um povo; oferece-nos o espelho
onde nos vemos. Ao que nos
falhar respondamos insubmissos: it matters not how strait the gate,/ how charged with
punishments the scroll,/ I am the master of my fate,/I am the captain of my
soul.
COMENTÁRIOS
Domingos Rita: Excelente, é tão
bom ler os seus artigos, considero uma lufada de ar puro que me ajuda a
respirar neste quotidiano malévolo cheio de armadilhas que nos vão manietando e
nos é imposto no nosso querido PAÍS, pelos pseudo governantes sem capacidades
para ocupar os cargos, e sempre preocupados com o seu umbigo, e no mundo em
geral, pelos líderes poderosos, uns bons outros maus, que não se entendem.
Obrigado João Ramos: Belo final com a frase de Henley e bonito artigo! bento guerra: Eu vou continuar assinante do Observador, cuidado com a
manipulação das palavras, não chega Duarte Correia:
Diz Walter Jens: "-Nem ele (filme),
nem a arte no seu conjunto..., nem a literatura, que, embora seja a mais
influente das artes, não conseguiu, em toda a sua história - que consiste num
somatório de derrotas -, alcançar uma única vitória de peso - uma vitória
momentânea, entenda-se! [...] Mas então, a ser assim, por que razão é tão
temida? (in Teoria da Literatura e da Crítica (Cadernos da Colóquio|
Letras), Lisboa Fund. Calouste Gulbenkian, s.d. [1982],p.106). «O Crime do padre Amaro», «O Amante de Lady
Chatterley», «A Geografia da Fome», etc., livros que se compravam à sorrelfa
ali em Campo de Ourique, liamo-los, pois. Mas onde estava o problema? De facto, depois da leitura não íamos deitar abaixo o
regime, ficávamos a saber, porque os proibiam, quanto safada é a repressão. Na
penumbra dos anos passados, lembro só que, na leitura de "O Amante da
Lady", achava piada ao macho garanhão sentir calor nos rins ao ser
visitado pela Lady, quando o calor costuma manifestar-se em outro sítio. Os
Albions são uns exóticos.
Maria Nunes: Crónica
maravilhosa. Nunca pensei voltar a sentir opressão e falta de liberdade, como
estamos a viver. Precisamos de outro 25 de Novembro. Maria
Nunes Maria Nunes: Como dizia Paul Eluard,"Nasci para te conhecer
liberdade."
Filipe Paes de Vasconcellos: Que
bom começar o dia a ler as suas crónicas de tão bem escritas e inspiradoras.
Quando acabo de a ler fico sem palavras. Obrigado pela sua entrega à causa da
Liberdade. João
Floriano: Crónica excelente e belíssima. Por vezes
o excelente não coincide com belíssima. Acontece aqui. Eugénia de
Vasconcelos trata frequentemente o tema da liberdade através de assuntos
concretos como no caso dos wokes e daquele excelente e comovente texto sobre os
cisnes negros iranianos. Desta vez sente a necessidade de o abordar na
generalidade. Compreendo-a. Nunca depois do 25 de Novembro vi ameaças tão
grandes à liberdade como agora nos passam diante dos olhos. Ingenuidade minha
ter pensado que nunca mais em Portugal nos iríamos sentir ameaçados. A
corrupção, a impunidade, a violência, a arrogância, a mentira, o abuso, o
descaramento corroem a liberdade que já tínhamos assumido como garantida.
Façamos uma pequena mudança no famosíssimo e citadissimo «Invictus» e em vez de
«I´m the master of my fate, I´m the master of my soul», sugiro «We are the
masters of our fate, we are the masters of our soul»: estamos a precisar e
muito que nos recordem o que nós somos, o que nós representamos. Para quem não
gosta de poesia da era vitoriana, sugiro « We are the Champions» de Fred
Mercury, igualmente galvanizante. Vale tudo para nos acordar e fazer-nos
acreditar que somos mesmo senhores do nosso destino, da nossa alma nacional.
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