Que “Verba volant, scripta manent”. Relativamente, as primeiras, à larachada de muita da palração actual, os segundos, entre
outros, a este magnífico texto de PAULO RAMOS, para reler e preservar, como
retrato deste nosso mundo vaidosamente palreiro mas cego e surdo às palavras da
modéstia e do bom senso.
Wittgenstein na Feira Popular
Este não é, miseravelmente, o tempo dos cidadãos, mas dos
prestidigitadores da linguagem. Em tempos de retórica total, a real tragédia é
os prestidigitadores condenarem ao exílio os cidadãos do mundo.
PAULO RAMOS Investigador no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa e tradutor
OBSERVADOR, 20
abr. 2024, 00:149
Numa semana em que a disputa pela
liderança da oposição se confundiu com a dos melhores lugares num carrossel – Paulo
Raimundo no seu
muito proletário carrinho dos bombeiros; Pedro Nuno Santos agarrado à chaleira da Alice, obscurecido por Mariana Mortágua quando o seu cavalinho sobe; Ventura,
todo pranto e ranho, berrando que a nave espacial gira muito depressa – o
comentariado, reunido em volta da infantil algaraviada, discutia se, numa
obscura alínea do Programa de Governo, dizia que o alívio fiscal era, estava,
acresce ou será. E assim, foi com gosto que o país viu Daniel Oliveira e Carmo Afonso, besuntados
de algodão doce, com o seu Wittgenstein numa mão
e o balão da Patrulha Pata na
outra, a discutir, enquanto deitavam um olho na canalha, a importância das
proposições na representação do mundo.
O seu proverbial desprezo pela verdade e pelas palavras, contudo, recordou-me a
fragilidade dos fios que nos seguram ao mundo.
Este não é, miseravelmente, o tempo
dos cidadãos, mas dos prestidigitadores da linguagem. Em tempos
de retórica total, de um renovado império da retórica – em que a palavra parece
mais do que nunca ser o destino de cada um e os golpes de Estado se dão ao som
de slogans mais do que de armas – a
verdadeira tragédia é os prestidigitadores condenarem ao exílio os cidadãos do
mundo. Neste sentido, a filologia – o “amor à palavra” – transcende
o significado de mera disciplina especializada e obscuríssima ocupação
académica, e ascende a severo e nobre compromisso de todo o homem que renuncia
ao esquecimento.
Para
que a palavra seja epifânica, sábia e pura, ela deve gerar-se no ventre da
inteligência que sanciona o seu conteúdo. A anorexia do pensamento contemporâneo,
contudo, mais não faz do que paradoxalmente produzir uma hipertrofia de
palavras degeneradas. É necessário redescobrir o rigor da razão,
exercer diligentemente o intus legere, base etimológica de intellegere – essa
leitura atenta e inteligente dos outros e do mundo que exorcize a
superficialidade e a banalidade – para reivindicarmos o mundo, para nos
reencontrarmos nessa forma de resistência inalienável e irreprimível que apenas
a memória consente.
Dissecada
por cientistas, analisada por historiadores, cantada por poetas, a memória
– os gregos chamavam-lhe Mnemósine,
a deusa que em nove noites de amor com Júpiter gerou as nove Musas – é uma dimensão
constitutiva tanto de uma comunidade e de um povo, como de um indivíduo e da
sua interioridade. É na fidelidade ao tempo que o nosso passado,
revelando-se, nos garante um sentido: o homem refaz-se porque, pela filigrana
reinventada da memória, aguarda e permanece sempre e inegociavelmente em todos
os instantes que lhe são oferecidos.
À
medida que “folheamos” o livro da memória, procurando as palavras que se nos
vão tornando imprescindíveis, arrancamos (etimologicamente), uma por uma,
folhas a todas as linguagens que, para nos conseguirmos decifrar no mundo,
foram compondo o nosso intrincado diálogo interior. Mais frequentemente do que
desejávamos, em busca da rosa de Caproni, encontramos apenas espinhos e a
dureza crua do caule.
Esta constante luta com a realidade é
comum a todos os homens: todos nós
lutamos com o real sempre que não conseguimos encontrar palavras para expressar
o mundo que nos rodeia e para nos expressarmos a nós. Sem palavras, vemo-nos
elididos pela realidade: vivos mas ausentes, fósseis; vestígios sem qualquer
consciência do que somos, tudo o que restaria de nós seria o indizível, um
silêncio sinistro e caiado. A mais exacta solidão.
Com
o tempo, tenho percebido que nem sempre são as palavras que precisam de ser
indagadas, mas o seu veredicto: o significado visceral e cristalino, a
ressonância arcaica e perene que exercem sobre nós e sobre a nossa visão do
mundo.
Há muitos anos, num percurso juvenil que
aprendi a conhecer como a palma da mão, dei por mim a subir regularmente umas
Escadinhas da Unidade (uma escadaria íngreme e longa) que conduziam à Rua
Alegre: apenas mais tarde (tarde demais?) me apercebi do quão poética era a ideia de o júbilo repousar no topo de uns degraus
e de aí se reunir o cântico, aquela voz que de outra forma correria o risco de
se tornar demasiado débil e perdida entre a pressa e a negligência, a confusão
e as trevas. Sentir as palavras que ardem dentro de nós nada
mais é do que incendiar o real sem nos contentarmos com as suas cinzas. Se não
conseguirmos suportar o peso da privação, o preço da espera, o pathos da
distância, perdemos os que amamos, perdemo-nos a nós, perdemos a alegria.
E é dessa alegria que nos fala a Odisseia, pois no centro da sua
narrativa em jeito matrioska o que encontramos é uma profundíssima e contínua
exploração da identidade: quem
és tu, Ulisses, se a tua manha, aquele truque que simultaneamente te define e
de que precisas para permanecer vivo, te reduz a “ninguém”? No final
da Odisseia, obtemos as respostas às perguntas que começam a formar-se no
primeiro verso, cuja primeira palavra é andra, “homem”: ser um homem,
um ser humano, extremamente inventivo e criativo, mas inevitavelmente sujeito a
forças terríveis bem para lá do nosso domínio – a morte, por exemplo –
significa ser algo maravilhoso e, ao mesmo tempo, nada.
Se as grandes mudanças se
pressentem antes de mais nas palavras, impõe-se então o imperativo de um novo
léxico – preciso e não mistificador – para nomear este presente tão global e
despedaçado, tão
alheio e invasivo. Lucrécio,
apóstolo da razão, escrevendo em meados do século I a.C. o seu poema De
Rerum Natura, confessava criar, durante a vigília de noites
estreladas, novas palavras (nova verba) que lhe abrissem novos céus e novas
terras, que lhe permitissem difundir as suas novas ideias, a sua “revolução” (novae
res), pela tradicionalista e republicana Roma. Também a
nós se impõe uma vigília por nova verba. Mas terão os meninos do carrossel novae
res a propor?
POLÍTICA PARTIDOS E
MOVIMENTOS SOCIEDADE LÍNGUA CULTURA
COMENTÁRIOS:
Adriana Cardoso: O cronista transpassa a dura
realidade de maneira quase poética, uma prosa que canta e estimula a procura de
algo que vá além dos ditames da moda. Joaquim
Almeida: Magnifica crónica sobre os
prestidigitadores da linguagem, irmãos gémeos dos totalitários da
"novilíngua" - se não
exactamente os mesmos - que, pela perversão do sentido das palavras, pretendem
instilar-nos a má-consciência e a auto-censura castradoras da nossa própria
capacidade de pensar e raciocinar. Reais charlatães de feira popular ocupada
por tendas ideológicas sem substância objectiva , sem as "res
novae" que se exigiriam para "verba nova"
inequívocas. se bem entendi o cronista. Antonio
Sennfelt > Joaquim
Almeida: Caro Joaquim Almeida. Como sabe, quem domina a língua, domina o pensamento.
Assim, com a linguagem introduzida entre nós pelo 25A, o PCP, partido
estalinista dos quatro costados, passou a ser um Partido
"democrático". Receio que futuramente, com o pensamento dito
politicamente correcto, venhamos todos a falar uma língua ainda mais
"livre"; talvez tão "livre" como a novilíngua orwelliana em
que o amor era ódio, a guerra era paz e a liberdade era escravidão. Cumprimentos. Antonio Sennfelt: Segundo a Bíblia, no princípio
tudo era o Verbo! Tempos felizes para filólogos e demais filósofos! Hoje em dia,
porém, com o advento do politicamente correcto, da ideologia do género e da
neo-ciência do wokismo, o Verbo desceu de estatuto e mal sobrevive entre
adjectivos e advérbios. Joaquim
Almeida > Antonio
Sennfelt: Quer dizer, meu caro Sennfeit, que vieram
depois a Torre de Babel e a
novíssima Torre de Babel ainda em construção. Não é isso? bento guerra: Lixei-me, só li isto depois de almoço. Nada como a minha aguardente
velha Pedro
Manuel Moço Ferreira: Que maravilha. Já ativei os
alertas. João
Floriano: A comunicação é fundamental para a sobrevivência e evolução das espécies. Serão mais bem sucedidas
aquelas que melhor souberem comunicar e dentro destas os indivíduos que melhor usarem
as ferramentas da comunicação. Os leões, os lobos e outras espécies predadoras
comunicam para caçar em grupo, muitas aves ganham direitos reprodutivos através
do canto, da exibição das penas e dos presentinhos que trazem para convencer potenciais parceiros. Todo
o mundo comunica de uma ou de outra forma. Esta é uma verdade ainda mais
inescapável no campo da política e terão mais hipóteses de sucesso os lideres
que melhor souberem comunicar as suas ideias. Acontece que as palavras do
costume estão a ficar desgastadas e já não se aplicam aos novos contextos.
Poderá ser esta uma das explicações para o insucesso da extrema-esquerda e do
PS nas últimas eleições. As palavras que habitualmente usavam /usam para
promover o repúdio da direita( tudo o que não é de esquerda), perderam a força.
Muito feliz a comparação dos nossos políticos com o carrossel da antiga Feira
Popular e igualmente onde iriam viajar. Atrevo-me a dar uma sugestão para Montenegro,
porque propositadamente ou por lapso, foi ignorado. Eu pô-lo-ia dentro de um
cisne, porque para já é um Patinho Feio que pede a todos que o deixem trabalhar
porque de futuro será um belo cisne. Coxinho: Respondendo à questão que desponta
no final do artigo, é evidente que só pode ter uma resposta negativa. As
personagens implícitas são as que vêem na extensão da própria sombra o reflexo
inconfundível da sua mediocridade.
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