sexta-feira, 26 de abril de 2024

Proibir a proibição

 

Acima de tudo. Não impor regras. Prezar, democraticamente, a liberdade. Liberdade no vestir, liberdade no agir. Mas o facto é que as regras foram sempre surgindo, sobre que reflectiam os grandes pensadores, ajudando à formação dos povos. Com o respeito das regras surge o respeito por si próprio, e pelo outro, também. No fundo, o vestuário aberrante é uma forma de exibicionismo e de provocação, como outro qualquer, uma questão de educação ou de falta dessa, no desprezo pelo outro e no amor exclusivo de si próprio. Dificilmente tais actuações, implicando exacerbação do ego, se debruçarão sobre o futuro e a necessidade de o preparar sem desleixo, como pede o texto de Leonor Galvão. E uma vez mais, a velha frase “vanitas vanitatum et omnia vanitas” que percorre os séculos, se impõe hoje, no simples jeito grotesco de retirar centímetros ao calção. Quem o faz, não se preocupa com o presente e menos ainda com o futuro. E quem o permite também não. Os Velhos do Restelo, sim, preocupam-se e serão sempre precisos, Não devem ser excluídos.

Abril e os Velhos do Restelo

Se querem mudar o comportamento, mudem antes a educação, a formação, os planos curriculares, a aposta na inovação, a aposta na formação de professores, e deixem lá os centímetros de calções e decotes.

LEONOR GAIÃO Estudante do Mestrado em Psicologia Clínica na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 25 abr. 2024, 00:1214

Diz-se que quem conta um conto acrescenta um ponto. O conto do 25 de abril não é diferente. Há inúmeras formas de contar a mesma história, e em cada versão, mudam os vilões, mudam os bons e os maus, muda o final, muda a moral. Haverá um dia em que ninguém terá vivido o 25 de abril. Eu já não o vivi, estive longe de o viver. Como serão os 100 anos do 25 de abril? As memórias já não serão as memórias dos que o viveram, mas dos que ouviram a história. Será que a história ainda será contada (da mesma forma)? O que estará escrito nos manuais de História?

A saudade é quase um símbolo universal da cultura portuguesa. Somos um povo saudosista, os que acreditam no Quinto Império, que esperam por D. Sebastião, que sonham acordados com o que já não volta, mas dormimos sobre o futuro, apagamo-lo como se apagam as noites em que não sonhamos: retidas no esquecimento.

O ano de 2024 é uma aparência, a liberdade que desce à rua é, talvez, das mais complexas de sempre. Nunca tivemos na mão tanta liberdade e tanta escolha, um privilégio inegável, sem dúvida. No entanto, parece que nunca foi tão fácil tirar a liberdade a alguém. O que dizemos e fazemos fica manchado por um lápis cuja cor ainda não conhecemos. Já não temos a PVDE, mas temos a prisão do politicamente correcto, “os polícias pela verdade”, “a cultura de cancelamento”. Mas qual verdade e que cancelamento? É evidente que não podemos comparar uma polícia do Estado, com métodos de tortura, à “polícia do politicamente correcto”. Mas que ambições são as nossas se apenas queremos impedir o regresso do impensável, mas não lutamos pelo progresso do desejável?

Quando se fala de Estado Novo fala-se de um regime autoritário, fascista, antidemocrático, entre outras coisas. Em 2024, usam-se estas palavras como quem usa peças de roupa. Não se medem as palavras, mede-se o mediatismo. Mas será que ainda se mede a roupa?

No dia 5 de maio de 1941, o governo fez publicar pelo Ministério do Interior, o Decreto-Lei n.º 31 247, clarificando que “(…) pertence ao Estado zelar pela moralidade pública e tomar as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes”. Numa lei que visava tanto mulheres como homens, às mulheres era apenas permitido mostrar as costas até 10 centímetros acima da cintura. O fato de banho masculino teria de ter um comprimento de perna mínimo de 2 centímetros, e tapar a barriga; o das mulheres tinha de ter um saiote que cobrisse em pelo menos um centímetro a parte de baixo do calção justo à perna.

Quem diria que a dias do 25 de abril viria a sair uma notícia onde o Liceu Pedro Nunes pede aos seus alunos que não utilizem “calções demasiado curtos” nem “excessivo decote”. Sim, eu sei que a escola não é a praia, mas também ainda não vi alunos de biquíni na escola (e posso falar com conhecimento de causa). Não é a roupa que determina o nosso comportamento. Se os alunos se comportam como se estivessem na praia, já é outra questão. Mas se querem mudar o comportamento, mudem antes a educação, a formação, os planos curriculares, a aposta na inovação, a aposta na formação de professores, e deixem lá os centímetros dos calções e das blusas sossegados. Se eu me vestir de piloto da força área, não faz de mim capaz de pilotar um avião, ou faz? Se eu mudar a roupa de uma pessoa, não lhe mudo o pensamento nem o comportamento. E já vi pessoas com saias até ao chão, ou calças de fato, a ter comportamentos e atitudes recrimináveis, e muito pouco dignas de quem está numa escola. Toda a vida fui estudante do ensino público e já ouvi muito disto “vocês não vão a lado nenhum, são burros, vão trabalhar para caixas de supermercado”. Foi uma Professora de Francês (no ano de 2014/2015), e nunca me esqueci. Disse isto para uma turma toda de miúdos dos seus 13, 14 anos, mesmo para aqueles que sonhavam em ser jornalistas, advogados, escritores, tradutores de francês, quem sabe… Uma mulher extremamente apresentável, impecavelmente penteada, com roupas sempre a tapar os joelhos, até os tornozelos. Sempre a achei elegante e apresentável, isso não está em causa, é pena é que a roupa não lhe tenha salvado as palavras medíocres. Medir os centímetros da roupa é uma distracção para resolver o que realmente interessa.

A liberdade para usar as palavras tornou-se também a liberdade para deixar de as pensar. Gritamos por liberdade às nossas crianças e aos nossos jovens, falamos do “homem mau” como se tudo fosse tão simples como a compilação de defeitos numa só pessoa. E cobrimos as campas do “homem mau” com “caixas de medicamentos antifascistas”, como fez Bordalo II. É tudo um bocadinho mais complexo do que isto. Salazar está longe de ter sido um Hitler, um Mussolini, um Estaline. Mas eles não foram “homens maus” que apareceram magicamente para tornar o mundo num lugar mau. Também foram homens apoiados pelo povo, em contextos muito particulares. Simplificamos as coisas para não termos de falar nas mais complexas. Tornamos o mundo num lugar do bem e do mal, dividido por datas, e esquecemo-nos de que o bem e o mal são um contínuo de um pêndulo eternamente a oscilar, e que nunca pára, nem parará, num ponto fixo.

A vontade de congelar a memória intacta do 25 de abril será maior do que a vontade de descongelar o que falhou? Uma Europa democrática escrava dos EUA (um Papão Democrático); da Rússia (um Lobo mascarado de Avozinha); da China (uma ditadura que ninguém desafia). Somos a sociedade do “made in China”, do come e cospe, do não é nada connosco. Somos democratas que alimentam ditaduras. Mas o que pode Portugal contra o mundo? Se calhar não pode nada, mas na descida da Avenida da Liberdade, quase que parece que podemos tudo, somos a reencarnação da mudança, do dinamismo, da luta, da revolta. Mas eis que acordamos na manhã seguinte, ainda adormecidos na calmaria que restou da festa, e tudo se reorganiza na mesma pasmaceira.

E se é fácil deixarmos de ser reféns do mundo? Não é. Mas “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança…”. Nos 500 anos de Camões, quase ignorámos as celebrações do poeta que, não por acaso, vislumbrou, com séculos de avanço, essa imagem tão portuguesa: “Oh, maldito o primeiro que, no mundo, nas ondas vela pôs em seco lenho!” O velho do Restelo que vive em cada um de nós não deixa morrer o conforto da revolução que já se fez, mas treme que nem varas de embarcar na próxima.

25 DE ABRIL       PAÍS

COMENTÁRIOS (de 16):

António Araujo: Na semana passada entrei num estabelecimento comercial aonde se encontrava só um cliente e a ser atendido. O sr. vestia camisola sem mangas e de alças muito estreitas mostrando quase totalmente ombros, costas, peito, axilas e totalmente os braços. Sendo pessoa de ombros largos provavelmente praticante de ginástica, a área corporal exposta era significativa. A pele escurecida pelo sol tinha uma grande concentração de mazelas antigas que lhe conferiam um aspecto pouco agradável passível de criar nojo e que só eram visíveis por estar descoberto. Também na mesma semana estava na caixa de um supermercado, uma jovem a pagar, um indivíduo na fila, mais uma senhora e eu no fim. O indivíduo da fila falava com outro que estava a 5 ou 6 metros de distância, em voz alta trocando no meio das palavras um chorrilho de palavrões. Ambos os casos em espaços públicos normais sem qualquer preocupação com a postura e comportamento. Em ambos os casos fiquei incomodado. Serei eu que sou preconceituoso e estou errado? Cada qual pode ter a postura e comportamento que lhe apetece? Até andar nu, porque não? Aonde estão os limites? Passando para o caso da escola, não há limites na postura nem nos comportamentos? Pode-se mostrar 2 cm abaixo do umbigo? Ou 5 cm acima? Já agora porque não 10 cm? Ou até 20? Mais um pouco e dispensa-se a roupa não? A escola estará errada? Quais são os limites? Deveria estar preocupada com outros temas mais importantes? A postura e comportamentos não são importantes? Os jovens de hoje serão os adultos de amanhã. Se não os educam para o bom senso e isso pode também passar por criar limites, então eu vivi a minha vida completamente errado.               Paulo Cardoso > João Floriano: Não vejo a crónica como polémica. Considero-a uma crónica profunda. A autora preocupa-se mais com o ser, que com o parecer. Se as pessoas forem devidamente educadas, não haverá necessidade de regulamentar ou sugerir a indumentária, porque a pessoa terá outro discernimento para intuir como ser ou estar. Parece-me a mim que o pensamento da autora, não andará tão distante do pensamento expressado nos comentários precedentes.                  Paulo Cardoso > João Floriano: João. Depois de ler os seus 2 comentários, reli o artigo. A primeira opinião que tive do mesmo, prevaleceu. O artigo versa sobre o que parece ser versus o que de facto é. Sobre uma sociedade que valoriza o parecer e menoriza o ser. A indumentária é um exemplo, dos vários apontados. A autora usa-o para fazer o contraponto entre a propagada falta de liberdade anterior a 74 e pretensa existência dela nos dias de hoje, fazendo um paralelismo entre dois eventos, um acontecido antes o outro depois do 25 de abril, mostrando que, no que concerne ao respeito pelo liberdade, não existe muita diferença entre ambos. Mais. Do artigo resulta que, mais importante que ditar as regras ou os limites da indumentária, é a educação de quem a usa. Se as pessoas tiverem a devida educação, saberão discernir entre o que deve ou não ser usado, nesta ou naquela ocasião, não havendo assim necessidade de regrar o que vestir. Ou seja, a verdadeira liberdade está na educação. Na educação verdadeira e factual. Não na educação rescrita e adaptada.               Paulo Cardoso: Muitos parabéns pela lucidez e maturidade do raciocínio. São linhas como estas, pensadas e escritas por cidadãos ainda ou a poucos anos de terem completado o primeiro quartel de século de existência, que me fazem olhar o futuro com esperança.                  Pobre Portugal: Sempre impecável. Mais uma fabulosa crónica.

 

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