Acima de tudo. Não impor regras. Prezar,
democraticamente, a liberdade. Liberdade no vestir, liberdade no agir. Mas o
facto é que as regras foram sempre surgindo, sobre que reflectiam os grandes
pensadores, ajudando à formação dos povos. Com o respeito das regras surge o
respeito por si próprio, e pelo outro, também. No fundo, o vestuário aberrante
é uma forma de exibicionismo e de provocação, como outro qualquer, uma questão
de educação ou de falta dessa, no desprezo pelo outro e no amor exclusivo de si
próprio. Dificilmente tais actuações, implicando exacerbação do ego, se
debruçarão sobre o futuro e a necessidade de o preparar sem desleixo, como pede
o texto de Leonor Galvão. E uma vez
mais, a velha frase “vanitas vanitatum et
omnia vanitas” que percorre os séculos, se impõe hoje, no simples jeito
grotesco de retirar centímetros ao calção. Quem o faz, não se preocupa com o
presente e menos ainda com o futuro. E quem o permite também não. Os Velhos do
Restelo, sim, preocupam-se e serão sempre precisos, Não devem ser excluídos.
Abril e os Velhos do Restelo
Se querem mudar o comportamento, mudem antes a educação, a formação,
os planos curriculares, a aposta na inovação, a aposta na formação de
professores, e deixem lá os centímetros de calções e decotes.
LEONOR GAIÃO Estudante do Mestrado em Psicologia Clínica na
Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 25
abr. 2024, 00:1214
Diz-se que quem conta um conto
acrescenta um ponto. O conto do 25 de
abril não é diferente. Há inúmeras formas de contar a mesma história, e
em cada versão, mudam os vilões, mudam os bons e os maus, muda o final, muda a
moral. Haverá um dia em que ninguém terá vivido o 25 de abril. Eu já não o
vivi, estive longe de o viver. Como serão os 100 anos do 25 de abril? As
memórias já não serão as memórias dos que o viveram, mas dos que ouviram a
história. Será que a história ainda
será contada (da mesma forma)? O que estará escrito nos manuais de História?
A
saudade é quase um símbolo universal da cultura portuguesa. Somos um povo
saudosista, os que acreditam no Quinto Império, que esperam por D. Sebastião,
que sonham acordados com o que já não volta, mas dormimos sobre o futuro,
apagamo-lo como se apagam as noites em que não sonhamos: retidas no
esquecimento.
O
ano de 2024 é uma aparência, a liberdade que desce à rua é, talvez, das mais
complexas de sempre. Nunca tivemos na mão tanta liberdade e tanta escolha, um
privilégio inegável, sem dúvida. No entanto, parece que nunca foi tão fácil
tirar a liberdade a alguém. O que dizemos e fazemos fica manchado
por um lápis cuja cor ainda não conhecemos. Já não temos a PVDE, mas
temos a prisão do politicamente correcto, “os polícias pela verdade”, “a
cultura de cancelamento”. Mas qual
verdade e que cancelamento? É evidente
que não podemos comparar uma polícia do Estado, com métodos de tortura, à
“polícia do politicamente correcto”. Mas que ambições são as nossas se
apenas queremos impedir o regresso do impensável, mas não lutamos pelo progresso
do desejável?
Quando se fala de Estado Novo
fala-se de um regime autoritário, fascista, antidemocrático, entre outras
coisas. Em 2024, usam-se estas palavras como quem usa peças de roupa. Não se
medem as palavras, mede-se o mediatismo. Mas será que ainda se mede a roupa?
No dia 5 de maio de 1941, o governo fez
publicar pelo Ministério do Interior, o Decreto-Lei n.º 31 247, clarificando
que “(…) pertence ao Estado zelar pela
moralidade pública e tomar as providências no sentido de evitar a corrupção dos
costumes”. Numa lei que visava tanto mulheres como homens, às
mulheres era apenas permitido mostrar as costas até 10 centímetros acima da
cintura. O fato de banho masculino teria de ter um comprimento de perna mínimo
de 2 centímetros, e tapar a barriga; o das mulheres tinha de ter um saiote que
cobrisse em pelo menos um centímetro a parte de baixo do calção justo à perna.
Quem diria que a dias do 25 de abril
viria a sair uma notícia onde o Liceu Pedro Nunes pede aos seus alunos que
não utilizem “calções demasiado curtos” nem “excessivo decote”. Sim, eu sei
que a escola não é a praia, mas também ainda não vi alunos de biquíni na escola
(e posso falar com conhecimento de causa). Não é a roupa que determina o
nosso comportamento. Se os alunos se comportam como se estivessem na praia, já
é outra questão. Mas se querem mudar o comportamento, mudem antes a
educação, a formação, os planos curriculares, a aposta na inovação, a aposta na
formação de professores, e deixem lá os centímetros dos calções e das blusas sossegados. Se eu me
vestir de piloto da força área, não faz de mim capaz de pilotar um avião, ou
faz? Se eu mudar a roupa de uma pessoa, não lhe mudo o pensamento nem o
comportamento. E já vi pessoas com
saias até ao chão, ou calças de fato, a ter comportamentos e atitudes
recrimináveis, e muito pouco dignas de quem está numa escola. Toda a vida fui
estudante do ensino público e já ouvi muito disto “vocês não vão a lado nenhum,
são burros, vão trabalhar para caixas de supermercado”. Foi uma
Professora de Francês (no ano de 2014/2015), e nunca me esqueci. Disse isto para uma turma toda de
miúdos dos seus 13, 14 anos, mesmo para aqueles que sonhavam em ser
jornalistas, advogados, escritores, tradutores de francês, quem sabe… Uma
mulher extremamente apresentável, impecavelmente penteada, com roupas sempre a
tapar os joelhos, até os tornozelos. Sempre a achei elegante e
apresentável, isso não está em causa, é pena é que a roupa não lhe tenha
salvado as palavras medíocres. Medir os centímetros da roupa é uma distracção
para resolver o que realmente interessa.
A
liberdade para usar as palavras tornou-se também a liberdade para deixar de as
pensar. Gritamos por liberdade às nossas crianças e aos nossos jovens, falamos
do “homem mau” como se tudo fosse tão simples como a compilação de defeitos
numa só pessoa. E cobrimos as campas do “homem mau” com “caixas de medicamentos
antifascistas”, como fez Bordalo II. É tudo um bocadinho mais
complexo do que isto. Salazar está
longe de ter sido um Hitler, um Mussolini, um Estaline. Mas eles não foram
“homens maus” que apareceram magicamente para tornar o mundo num lugar mau.
Também foram homens apoiados pelo povo, em contextos muito particulares.
Simplificamos as coisas para não termos de falar nas mais complexas.
Tornamos o mundo num lugar do bem e do mal, dividido por datas, e esquecemo-nos
de que o bem e o mal são um contínuo de um pêndulo eternamente a oscilar, e que
nunca pára, nem parará, num ponto fixo.
A vontade de congelar a memória intacta
do 25 de abril será maior do que a vontade de descongelar o que falhou? Uma Europa democrática escrava dos EUA
(um Papão Democrático); da Rússia (um Lobo mascarado de Avozinha); da China
(uma ditadura que ninguém desafia). Somos a sociedade do “made in China”, do
come e cospe, do não é nada connosco. Somos democratas que alimentam ditaduras. Mas
o que pode Portugal contra o mundo? Se calhar não pode nada, mas na descida da
Avenida da Liberdade, quase que parece que podemos tudo, somos a reencarnação
da mudança, do dinamismo, da luta, da revolta. Mas eis que acordamos na manhã
seguinte, ainda adormecidos na calmaria que restou da festa, e tudo se
reorganiza na mesma pasmaceira.
E se é fácil deixarmos de ser reféns do
mundo? Não é. Mas “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser,
muda-se a confiança…”. Nos 500 anos de
Camões, quase ignorámos as celebrações do poeta que, não por acaso, vislumbrou,
com séculos de avanço, essa imagem tão portuguesa: “Oh, maldito o primeiro que,
no mundo, nas ondas vela pôs em seco lenho!” O velho do Restelo que
vive em cada um de nós não deixa morrer o conforto da revolução que já se fez,
mas treme que nem varas de embarcar na próxima.
COMENTÁRIOS (de 16):
António Araujo: Na semana passada entrei num estabelecimento comercial aonde se encontrava
só um cliente e a ser atendido. O sr. vestia camisola sem mangas e de alças muito
estreitas mostrando quase totalmente ombros, costas, peito, axilas e totalmente
os braços. Sendo pessoa de ombros largos provavelmente praticante de ginástica,
a área corporal exposta era significativa. A pele escurecida pelo sol tinha uma
grande concentração de mazelas antigas que lhe conferiam um aspecto pouco
agradável passível de criar nojo e que só eram visíveis por estar descoberto. Também
na mesma semana estava na caixa de um supermercado, uma jovem a pagar, um
indivíduo na fila, mais uma senhora e eu no fim. O indivíduo da fila falava com
outro que estava a 5 ou 6 metros de distância, em voz alta trocando no meio das
palavras um chorrilho de palavrões. Ambos os casos em espaços públicos normais
sem qualquer preocupação com a postura e comportamento. Em ambos os casos
fiquei incomodado. Serei eu que sou preconceituoso e estou errado? Cada qual
pode ter a postura e comportamento que lhe apetece? Até andar nu, porque não? Aonde
estão os limites? Passando para o caso da escola, não há limites na postura nem
nos comportamentos? Pode-se mostrar 2 cm abaixo do umbigo? Ou 5 cm acima? Já
agora porque não 10 cm? Ou até 20? Mais um pouco e dispensa-se a roupa não? A
escola estará errada? Quais são os limites? Deveria estar preocupada com outros
temas mais importantes? A postura e comportamentos não são importantes? Os
jovens de hoje serão os adultos de amanhã. Se não os educam para o bom senso e
isso pode também passar por criar limites, então eu vivi a minha vida
completamente errado. Paulo Cardoso > João Floriano: Não vejo a crónica como polémica. Considero-a uma
crónica profunda. A autora preocupa-se mais com o ser, que com o parecer. Se as
pessoas forem devidamente educadas, não haverá necessidade de regulamentar ou
sugerir a indumentária, porque a pessoa terá outro discernimento para intuir
como ser ou estar. Parece-me a mim que o pensamento da autora, não andará tão
distante do pensamento expressado nos comentários precedentes. Paulo
Cardoso > João Floriano: João. Depois de ler os seus 2 comentários, reli o
artigo. A primeira opinião que tive do mesmo, prevaleceu. O artigo versa sobre
o que parece ser versus o que de facto é. Sobre uma sociedade que
valoriza o parecer e menoriza o ser. A indumentária é um exemplo, dos
vários apontados. A autora usa-o para fazer o contraponto entre a propagada
falta de liberdade anterior a 74 e pretensa existência dela nos dias de hoje,
fazendo um paralelismo entre dois eventos, um acontecido antes o outro depois
do 25 de abril, mostrando que, no que concerne ao respeito pelo liberdade, não
existe muita diferença entre ambos. Mais. Do artigo resulta que, mais
importante que ditar as regras ou os limites da indumentária, é a educação de
quem a usa. Se as pessoas tiverem a devida educação, saberão discernir
entre o que deve ou não ser usado, nesta ou naquela ocasião, não havendo assim
necessidade de regrar o que vestir. Ou seja, a verdadeira liberdade está na
educação. Na educação verdadeira e factual. Não na educação rescrita e adaptada. Paulo
Cardoso: Muitos
parabéns pela lucidez e maturidade do raciocínio. São linhas como estas,
pensadas e escritas por cidadãos ainda ou a poucos anos de terem completado o
primeiro quartel de século de existência, que me fazem olhar o futuro com
esperança. Pobre
Portugal: Sempre impecável. Mais uma fabulosa crónica.
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