Que encontro no Blog “Cocó na fralda”, e que tomo a ousadia de transcrever
para o meu blog, penalizada que fiquei ao ouvir a notícia da sua morte, aos 92 anos.
Espero que o autor do blog me perdoe pela liberdade da transcrição abusiva.
Conheci Eugénio Lisboa em Lourenço
Marques, nos anos 60, amigo que era de Rui Knopfli, ex-companheiro liceal do
meu primeiro marido, e com os quais, e respectivas esposas, costumávamos
encontrar-nos na esplanada perto do Café Continental, e onde os dois escritores
se desfaziam em vivos saberes do foro literário ou outros mais mundanais, que
íamos acompanhando tant bien que mal,
chegados recentemente dos nossos cursos coimbrões, a uma cidade onde se
agrupavam intelectualidades de livre ou preciosa expressão - todos nós,
naturalmente, de retorno à pátria mãe, com maior ou menor equilíbrio espiritual,
a quando do findar da consciência nacionalista abrangente, há cerca de cinquenta
anos.
Eis o texto de Eugénio Lisboa, que colho
com o prazer de um reencontro discursivo, pese embora a diferença relativamente
a outras suas obras, retirado dele, é certo, o objectivo de aprofundamento
literário transmitido por essas suas obras, que me serviram, também, de orientação,
noutros contextos:
13 de Setembro, 2012
Uma carta esmagadora, de um homem com
82 anos, crítico literário e ensaísta, que vale mesmo a pena ler.
CARTA ABERTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe
estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação
que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu
costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para
o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro
da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há
que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco,
escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá terem em V. Exa qualquer efeito –
todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo,
inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não
convida à esperança numa reviravolta! – mas antes, para ficar de bem com a
minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa
que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa, e o algum que me inflija será
sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo”
ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê
como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que
falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.
Mas tenho, como disse, 82 anos
e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da
dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência
de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira
tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão
fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão,
no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande
poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice,
encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os
poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva
para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.
A velhice, Senhor Primeiro
Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais –
um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento
dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que
dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria
da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos
contos singulares do seu belíssimo livro intitulado “The Garden Party”: “O velho
Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.”Ser velho é também isto:
acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que
estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu.
Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos.
Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões, apontam
na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de
uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta
de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo
amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas
pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da
nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos
65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela.
Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE,
que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando
longínquo.
Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado,
sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando
mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o
isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do
tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a
incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações
salariais – tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que
é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os
bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas
de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um
Estado que dá oque não é dele e paga o que diz não ter, para que eles
enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa
dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados,
sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para
asilos desguarnecidos, situados, de preferência, em andares altos de prédios
muito altos: de um 14.º andar, explicava, a desolação que se contempla até
passa por paisagem. V. Exa e os do seu governo exibem uma
sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande.
As políticas radicais de V. Exa. e do seu robótico Ministro das Finanças - sim,
porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... – têm
levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente
humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História
não confina a míseras notas de pé de página.
Falei da velhice porque é o
pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o
fundamentalismo ideológico de V. Exa. está a desencadear pelo país fora, afecta
muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as
idades e de todos os caminhos da vida – tudo é queimado no altar ideológico onde
arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados.
Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis.
V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem
pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro
conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira-Ministra
Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos: “Extremismo e conservantismo são termos
contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana,
foi o primeiro membro do primeiro governo deThatcher a ser despedido, sem apelo
nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos
Coelho – quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo.
Claro que não dá.
Alguém observava que os
americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no
governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus
constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra,
no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa.– e com
isto termino – uma pista para um bom entendimento do que se está a passar.
Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.”
Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio
país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se
fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.
De V. Exa., atentamente,
Eugénio Lisboa
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