Voltando sempre à vaca
fria das contestações…
Liberdade não tem mas
É um caminho perigoso que se vai tomando. A democracia é conceito
formal e processual, e não substantivo e programático.
OBSERVADOR, 23
abr. 2024, 00:202
É uma daquelas raridades a que não
estamos habituados. Pedro Passos
Coelho, no podcast de Maria João Avillez, falou sobre os
anos da troika, expôs a sua visão, fez notar divergências, enfim, exerceu a sua
liberdade. Paulo Portas respondeu a
várias das afirmações do ex-Primeiro-ministro e expôs a sua visão, afirmando
que via a troika como um mal necessário ao passo que Passos Coelho a entendia
como um bem virtuoso. E fê-lo, naturalmente, também de forma livre.
Não me compete, por variadíssimas
razões, julgar as duas opiniões. Na verdade, saber quem tem razão, neste caso
em particular, é até de uma irrelevância só capaz de excitar o jornalismo mais
incapaz. O que Passos, primeiro, e Portas, depois, fizeram foi um exercício
de liberdade e de respeito pela memória histórica. De resto, as duas
visões, aparentemente contraditórias, não o eram tanto assim, ou pelo menos visavam
objectivos semelhantes, já que, com
mais ou menos dificuldades, o processo de ajustamento financeiro foi concluído,
o Governo chegou ao fim do seu mandato e a coligação entre os partidos que
ambos lideravam até conseguiu ser a força mais votada nas eleições seguintes –
embora esse resultado se tenha traduzido numa maioria de esquerda, num
movimento de que a direita ainda não recuperou totalmente.
Ambos falaram sem rodeios e, de forma
quase inédita em Portugal, contribuíram para um desenho da História que deve
ser feita com a memória fresca, e, ao contrário do que entre nós é mais
habitual, não colocaram num túmulo as
percepções, as opiniões e os factos. A grande vantagem de se falar
da História recente (ou recentíssima, como é o caso) com todos os
intervenientes vivíssimos da silva é precisamente esta: os factos
podem ser oferecidos ao futuro acompanhados das devidas visões sobre os mesmos,
para que os cidadãos do futuro possam julgar os factos objectivos do passado
com as diversas perspectivas subjectivas diante dos olhos e aí, então, tirar as
conclusões que entenderem.
O nosso hábito tem sido, infelizmente,
mais o de fazer com que saia vitoriosa, uma das narrativas em combate, para que
dela seja cristalizado, então, um facto incontornável. Ora, os factos stricto sensu não podem ser ignorados, mas a
História, a política e a sociedade são mais do que factos. Como
escreveu em tempos Lucas Pires, o regime onde só há factos é uma ditadura.
Sucede
que as democracias modernas, de forma inorgânica e social, têm feito um caminho
perigoso no sentido dos factos absolutos, em detrimento da liberdade de opinião
e de expressão, por exemplo. Foi também esse o caso em que se viu
envolvido o mais recente «livro negro», o tal apresentado por Pedro Passos
Coelho. A velocidade pós-moderna a que circulamos já colocou Identidade e Família num arquivador histórico, mas talvez valha a
pena aqui regressar não ao livro, mas às reacções que o mesmo suscitou. Se
é certo que uma coisa é o conteúdo de cada um daqueles textos, analisado de
forma individual, também é certo que
outra coisa é o direito a que tenham sido escritos e possam ser lidos. Uma coisa é criticar substantivamente um
ou outro texto, em divergência livre e fundamentada; outra coisa é adjectivar
todos os que ali escreveram, culpando-os, incluindo o apresentador do livro, de
serem «de extrema-direita» ou «fascistas» (aliás, um dos factos interessantes a
que assistimos foi à certeza com que tantos acusaram o apresentador do livro de
radicalização, ao passo que, pelo menos, dois dos autores, Manuela Eanes e
Oliveira Martins, sobreviveram aos epítetos). É um caminho perigoso que se vai
tomando. A democracia é conceito formal e processual, e não substantivo e
programático. Se
começamos a tomar como não democratas todos aqueles que, de alguma forma ou
nalgum momento, discordam das verdades oficiais, das opiniões tornadas factos
ou de determinada posição política mais apreciada do que outras, acabaremos
mesmo todos por ser, de alguma forma, não democratas, controlados pelos
alegados verdadeiros democratas, uma casta pura de tiranetes que decide o que
cada um deve ou não pensar. Se há coisa que devíamos fazer, ainda por
cima nesta semana em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, era dedicar
mais tempo a ouvir aqueles de quem discordamos e a responder-lhes com mais substância do que com adjectivos.
Suponho que o país que se diz inteligente e culto não aguente o esforço. Boa
parte do jornalismo, então, era capaz de ter uma apoplexia.
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