quinta-feira, 18 de abril de 2024

Um Requiem com muito amor


Quando conhecemos a Celeste, tínhamos nós, respectivamente, 4 e 3 anos, a minha irmã e eu, fôramos de Lourenço Marques, na licença graciosa do meu pai, interrompida com a guerra, e impondo-nos uma estadia em Pinheiro de Lafões por mais seis anos, longe do nosso pai, que voltara para o seu trabalho em África. Dos muitos primos que viríamos a ter, só existiam, então, para além de duas primas nascidas em Moçambique, que mal conhecíamos, três filhos do nosso tio Manuel, irmão da minha mãe, (ambos com mais sete irmãos ainda - três também dispersos por Moçambique, a tia Clara casada no Brasil, e só três permanecendo no Carregal, junto da mãe – a Madrinha do Carregal, já viúva). A Celeste, o Almiro e a Graciete eram então os únicos filhos do tio Manuel, a Amarílis vindo ainda a nascer durante a nossa estadia em Pinheiro. Tinha doze anos, a Celeste, na altura em que a conhecemos, viveu algum tempo connosco, em Pinheiro de Lafões, a frequentar a escola, por proposta do meu pai, que fez sentir ao nosso tio a necessidade de a Celeste frequentar a escola, que não havia no Carregal, nem por perto.

Mas Salazar providenciara mais escolas e em breve a de Reigoso, perto do Carregal, levara-nos a nossa prima que viveu connosco algum tempo, para frequentar a nossa escola de Pinheiro e cantar o hino nacional, em frente à bandeira içada na sacada da escola de Pinheiro, de braço estendido e bem alinhados os alunos, o que se fixaria ad aeternum na minha memória. Outras lembranças da Celeste centram-se na cama de casal, onde dormíamos, as três primas, a Celeste no meio, a minha mãe numa cama mais baixa e pequena, suponho que do meu lado, pois que o fixei. Assim como fixei as histórias ensonadas da Celeste, que eu insistia para que contasse, como a da “Branca-Flor!” “– Minha mãe durma e descanse!” - da resposta da filha.

A Celeste casou – por procuração, primeiro, em casamento formal depois - com o Camilo, que o nosso pai posteriormente chamou para África, através de uma carta de chamada então imposta, o casal viveu algum tempo em nossa casa e era com eles que todos os domingos fazíamos piqueniques, quer na praia de Polana, quer em Marracuene ou na Namaacha, o Camilo único possuidor de carro disponível. Também fazíamos coros de vozes várias, nas caminhadas nocturnas pela estrada da Malanga, nas noites em que a minha mãe flitava a casa toda, por conta dos mosquitos, que a ela sobretudo atacavam. E eram lindos esses coros, de vozes várias, creio que a da minha mãe a superiorizar-se no descante, (que manteve, de resto, quase até ao fim da sua vida, quando cantava na missa, o padre pondo a mão na orelha para escutar melhor o fio de voz que conseguia impor-se).

A vida se encarregaria de nos distanciar, eles na Beira, nós em Lourenço Marques, e por outros sítios, incluindo os que nos trouxe o 25 de Abril, de retorno - nós à beira Tejo, eles, à beira-Vouga ou outros ribeirinhos mais próximos.

Mas a Celeste ficou no meu pensamento, ficou a doçura da sua voz amiga, de uma mulher que, não tendo filhos, viria a ser mãe de muitos deles, amiga inseparável da sua irmã Lilita e dos filhos desta e dos muitos sobrinhos que igualmente a amaram.

Hoje morreu, a Celeste. Tristemente cega. Para ela, a minha recordação – diária - com as lágrimas da minha pena. Mas com o sentimento do alívio, enfim!

COMENTÁRIOS:

AJS comentou em “Um Requiem com muito amor"

Há 10 horas

Que belas lembranças Mãe! Também tenho imensas! Obrigado Celeste pelas gargalhadas, pelo carinho e pela porta sempre aberta para os primos de Lisboa! Belos verões nessa casa de Pinheiro, regada pela frescura da fonte de águas límpidas e saborosas! Onde o caminho para o Vouga era sempre a descer e onde o lanche era preparado para que o dia fosse mais comprido nas margens da pequena barragem... Descansa em paz junto ao Sr. Camilo e à tua Carlinha - Imagino que já estejas com a avó Pureza a cantar hinos de alegria!!!

 

Por AmaisB comentou em "Um Requiem com muito amor"

Há 7 horas

Obrigada, Artur, também recordo esses momentos, que foram imensos, por cá.

 


2 comentários:

AJS disse...

Que belas lembranças Mãe! Também tenho imensas! Obrigado Celeste pelas gargalhadas, pelo carinho e pela porta sempre aberta para os primos de Lisboa! Belos verões nessa casa de Pinheiro, regada pela frescura da fonte de águas límpidas e saborosas! Onde o caminho para o Vouga era sempre a descer e onde o lanche era preparado para que o dia fosse mais comprido nas margens da pequena barragem... Descansa em paz junto ao Sr. Camilo e à tua Carlinha - Imagino que já estejas com a avó Pureza a cantar hinos de alegria!!!

Por AmaisB disse...

Obrigada, Artur, também recordo esses momentos, que foram imensos, por cá.